Figuras que povoam a mente desde a Antiguidade

Nós sabemos tudo o que acontece sobre a terra fecunda…
Homero, Odisseia: Canto XII, 191

A leitura do post “Un été avec Homère” rendeu tantos e-mails louvando Homero e sobretudo, no caso específico, o escritor aventureiro Sylvain Tesson pelo olhar diferenciado que lançou sobre a Illíada e a Odisseia, duas das obras maiores da literatura em todos os tempos. Leitores gostariam que, no blog anterior, tivesse eu me estendido, a comentar Sereias e Ciclopes presentes na Odisseia. Sylvain Tesson menciona-os, mas entendi necessário coloca-los neste post sob outra égide, a voltada às artes, mormente à música, em dois exemplos emblemáticos entre tantos outros.

Se as Sereias, presentes no Canto XII da Odisseia de Homero, têm conotação plena da sedução que leva à morte, a presença dessas divindades do mar que, através de maviosos cantos, hipnotizavam navegantes, levando-os às profundezas, foi igualmente motivo de inspiração para inúmeros compositores, poetas e pintores ao longo do tempo, que não ficaram alheios ao alumbramento que se perpetuou.

Ulisses, esse personagem mitológico maior, avisado por Circe, a feiticeira, previne-se contra o chamamento das Sereias durante seu périplo pelo Mar Egeu. No canto XII da Odisséia tem-se: “Ulisses, todas essas coisas se passaram dessa maneira. Agora, escuta-me, e mais tarde um deus te lembrará minhas palavras. – Primeiramente tu encontrarás as Sereias, sedutoras de todos os homens que delas se aproximam: aquele que, levado pela imprudência, escutar a voz das Sereias, não verá mais sua esposa, tampouco seus filhos queridos, que estariam felizes pelo regresso; as Sereias deitadas na pradaria cativarão o guerreiro com suas vozes harmoniosas. Em torno delas estão ossos e carnes ressecadas das vítimas que elas fizeram sucumbir. Foge dessas margens e tampa os ouvidos de teus companheiros com cera mole, de maneira que nenhum deles ouça. Tu mesmo, se desejares, poderás ouvir as Sereias, mas deixa-te primeiramente ter pés e mãos amarrados ao mastro de teu navio veloz; deixa-te ficar bem atado, a fim de que possas te deliciar ao ouvir a voz das Sereias encantadoras. Se implorares aos teus guerreiros, se tu ordenares que eles te desatem, que eles te amarrem ainda mais ao mastro” (versão de JEM da tradução francesa de Philippe Jaccottet). Seguindo esse estratagema, Ulisses passa com seu barco ao largo da Ilha das Sereias.

Sereia e Ondine foram fontes de inspiração para um número expressivo de compositores. Da primeira, André Michel enumera cerca de cinquenta composições, da segunda há também quantidade significativa. Se as Sereias perpassam a história anteriormente à Odisseia, datada de mais de 25 séculos, Ondine é a versão nórdica e Yara, a indígena brasileira. Ninfas transfiguradas, mas igualmente sedutoras e fatais. Figuras aquáticas enfeitiçando marujos hipnotizados que se atiram nas águas para não mais voltar e inspirando legião de sonhadores de todas as áreas.

Apenas para mencionar alguns exemplos na composição musical, Maurice Ravel escreve Ondine, primeira peça do tríptico para piano Gaspard de la Nuit, (1908), Claude Debussy compõe Ondine, oitavo Prélude do segundo livro (1910-1912) para piano, e Sirènes, para orquestra e coro feminino (oito sopranos e oito mezzo sopranos), sendo o terceiro dos três Nocturnes (1897-1899). Debussy redige o texto quando da primeira audição: “É o mar e seu numeroso ritmo e, pelas ondas prateadas pela lua, ri e passa o canto misterioso das Sereias”. André Michel (La Sirène dans “l’Élement Musical”, 1970) considera: “Significativo observar que, para Debussy, importava o canto das Sereias e não o aspecto. Nada faz pensar que as Sereias fossem para ele aquilo que representavam para os Antigos, metade mulheres, metade pássaros ou, pela tradição mais recente, mulheres peixes”. Em carta ao seu editor, Debussy escreveria ao ver a feiura de banhistas nas praias: “Verdadeiramente todos esses braços, essas pernas que se agitam em ritmos ridículos fariam chorar os peixes. No mar deveriam existir apenas Sereias”. Debussy, amante inconteste do mar, suas ondulações e reflexos, ao escrever Sirènes encontra numa observação do compositor e um de seus biógrafos, Charles Koechlin, preciso conceito, “volúpia mortal”. Essa presença das vozes femininas em cantos sem palavras, plenos de cromatismo, o que realça ainda mais essa “volúpia mortal”, imprime a essa magistral criação de Debussy todo um poder mágico, a dar ao ouvinte – sem necessidade da cera que oblitera os ouvidos – a possibilidade de ouvir as melodias envolventes das Sereias amparadas por um orquestração a dimensionar sensualidades.

Clique para ouvir Sirènes, o terceiro Nocturne de Claude Debussy:

Orquestra de Cleveland, regente Pierre Boulez

https://www.youtube.com/watch?v=gh_u-S7vAOI

 


Sobre os Ciclopes presentes na Odisseia, eram eles seres fortíssimos, enormes e com apenas um olho no meio da testa. Conta a mitologia que originalmente eram três Ciclopes. Ferreiros, forjaram em gratidão a Zeus o célebre raio, assim como o tridente de Poseidon e o elmo do Terror, de Hades. Polifemo, o Ciclope que ganharia maior notoriedade, foi cego por Ulisses. Assim como as Sereias, os Ciclopes também serviram e servem de temas constantes nas artes e na literatura.

Em França, em pleno esplendor do século XVIII, compositores, escultores e pintores renderam homenagens aos personagens e às histórias da mitologia grega. Jean-Philippe Rameau (1683-1764) compôs óperas baseadas em histórias da mitologia. Em suas peças para cravo – Suite em Ré – escreveu duas peças sob essa égide: L’Entretien des Muses e Les Cyclopes. Ao gravar a integral de Rameau para cravo interpretada ao piano (selo belga De Rode Pomp), na peça Les Cyclopes realço o atributo desses ferreiros nessa feérica atividade junto às forjas, salientando as notas mais graves, as célebres fundamentais, tão decantadas pelo compositor em seus escritos teóricos:

Clique para ouvir Les Cyclopes de Jean-Philippe Rameau:

Piano: José Eduardo Martins

https://www.youtube.com/watch?v=c7lyY0pBRkU

Incontestável a atração que as obras-primas Ilíada e Odisseia provocaram na Humanidade. Se as artes e a literatura tanto se voltaram ao conteúdo desses livros, os nomes de deuses, demiurgos, heróis, vilões que percorrem os poemas foram dados, através dos séculos, a muitos milhões de cidadãos, homens e mulheres. Alguma outra obra literária, essencialmente nesse mister, teria sido tão relevante? Poder-se-ia considerar que o alcance da mitologia, talvez por não ter cunho monoteísta, tenha alcançado concordância em religiões e crenças as mais diversas. Talvez…

In response to suggestions from readers and in connection with the post about Tesson’s book “Un été avec Homère”, this post addresses the myth of cyclopes and mermaids, their presence in arts and culture, with focus on the fascination they have always had for classical music composers over time.