Sem a menor possibilidade de melhora

Hoy ya nadie es inculto o, mejor dicho, todos somos cultos.
Ahora todos somos cultos de alguna manera,
aunque no hayamos leído nunca un libro,
ni visitado una exposición de pintura, escuchado un concierto,
ni adquirido algunas nociones básicas de los conocimientos humanísticos,
científicos y tecnológicos del mundo em que vivimos.
Mario Vargas Llosa
(“La Civilización del espectáculo” 2012)

O acúmulo das décadas tende a acurar a observação, realidade multidirecionada a depender do conteúdo de impactos diários que interferem na apreciação. Nas áreas em que o humano atua, transformações naturais, no decorrer dos decênios, servem de balizamento no todo. Poder-se-ia dizer que a observação, essa qualidade benfazeja, acentuada com o passar dos anos, preferencialmente conduz a um saudosismo. É natural, sempre foi assim. Quantas e quantas vezes a frase “No meu tempo…” é dita para atribuir vantagens ao passado que não mais volta? Sim, temos de nos adequar. Tenho como exemplo meu saudoso pai, que, ao completar 100 anos, comprou um computador, escrevendo na nova engenhoca seu sétimo livro, que deveria ser lançado uma semana após uma queda que sofreria e que o levaria ao óbito meses após. Sua observação era diariamente atualizada. Creio que exceção absoluta.

Não compro jornais e revistas há mais de 20 anos, acompanhando online o noticiário de nosso país, assim como o internacional. Cada cidadão sabe onde encontrar o que lhe interessa. Essa prática possibilita uma “atualização” constante, e o fato de ler artigos de múltiplas tendências corrobora a formação opinativa.

Lê-se sempre mais acentuadamente, nos principais provedores de internet, o pretenso debate ideológico. Majoritariamente enfadonho, pois dirigido e supertendencioso, a depender da orientação dirigente. Não se debate, opina-se de acordo com enraizadas ideologias. Rarissimamente há textos isentos. Triste realidade a acometer jornalistas que não conseguem ser imparciais. Sem falar em periodistas camaleões, louvadores de determinada tendência e que partem para outra posição bem oposta sem o menor rubor. Nesta instalados, insistem à exaustão, a denegrir determinado personagem da política ou do judiciário, antes louvado.

Ao escrever que a cultura erudita estava num declínio sem volta, Mario Vargas Lhosa, em “La Civilización del Espectáculo”, apenas conceitua triste realidade que está a se acentuar de maneira vertiginosa. Estou a me lembrar do competente acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007), editor-chefe do Suplemento Literário e do Suplemento Cultural – Suplemento Cultura de “O Estado de São Paulo”. Colaborei de 1980 a 1990 com artigos agendados bem previamente. Nilo Scalzo reunia sua equipe para pautar matérias que deveriam ser publicadas no ano seguinte, geralmente a contemplar efemérides significativas nas várias áreas, a abranger literatura, artes, música, ciência… Quando entendia fato relevante indispensável, ponderava eu na reunião que precisaria de três páginas, a fim de ter espaço necessário à temática. Nilo Scalzo aquiescia e foram vários meus artigos nessa dimensão em Suplemento que era semanal e robusto. Minhas colaborações foram publicadas no livro “Encontros sob Música”, (Belém, Cejup, 1990), tendo eu a honra de ter sido prefaciado pelo saudoso Nilo Scalzo.

A menção a esse período poderia parecer ao leitor nostálgica de minha parte. Como não entender como hecatombe o que se lê nos principais provedores de internet? No noticiário fundamental, a apontar importância de determinado acontecimento, geralmente político-judiciário, com espaço nem sempre à altura do fato em si, anexam besteirol ilimitado dos chamados “famosos”, personagens que pululam em profusão, geralmente incensados pela insensatez de seus atos insignificantes, mas que os provedores sabem ser destino certo de milhões de seguidores enfeitiçados pelos “iluminados” por possantes holofotes. Despreza-se a Cultura com C maiúsculo, sim, em detrimento de superficialidades idiotizadas que acabam por destruir moral, costumes, família… Em nome da liberdade da comunicação, o que se vê é uma ilimitada visão a tornar o caricato, verdade; palavras de baixíssimo calão, naturalidade aplaudida; a distração da realidade, o divertimento duvidoso; a profusão de “possibilidades sexuais”, a divulgação do equívoco essencial, pois antinatural; a vestimenta destroçada, moda. Estou a me lembrar de comentário de meu ilustre amigo, o musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso. Em Oeiras, Portugal, ao ver passar por nós uma mulher com jeans rasgado, moda presente e altamente aceita, comentou: “Trata-se de uma ofensa aos pobres”. Completou “um necessitado prefere receber uma calça bem velha, mas rasgada é um escárnio”. Sinal dos tempos. Creio que doravante ainda assistiremos degringoladas mais acentuadas. O tempo infalível.

This post addresses the poor quality of mainstream media reports, which favor sensational journalism — especially accounts of the private life of public figures — over substantive stuff. If gossip, scandal and banalities are what people want, that’s what the media gives them, it’s part of the business. My pessimism about today’s society has only gotten worse with time and I believe the decadence of Culture with a capital C has reached a point of no return.

Retorno ainda uma vez a esse tema inesgotável

Na bela técnica realiza-se o desdobramento temporal
que é imanente à atividade do gesto;
ela é dinâmica e não mecânica;
pois uma bela passagem e até um exercício tocado com graça
não são restritos à igualdade mecânica
que acreditamos ser por vezes o ideal da técnica:
a leveza espontânea que eles exigem do intérprete
vale na exata medida em que estabelecem rubatos sutis
que atestam a secreta presença de uma alma,
organizando seu tempo íntimo.
Gisèle Brelet

Opiniões divergentes podem suscitar um aprofundamento maior de debate salutar. O blog anterior exibiu parte essencial da posição do compositor francês François Servenière sobre a atual escola pianística da China, que, de maneira contundente, tem apresentado valores que se apresentam no Ocidente em escala progressiva, exibindo preferencialmente virtuosidade extraordinária, nem sempre acompanhada da devida atenção ao estilo de compositores do passado. Respeito profundamente as opiniões de Servenière, dotado de mente privilegiada, apesar de nossas considerações não serem as mesmas sobre o tema. O fato de tê-las colocado em pauta trouxe a participação de leitores para o nosso debate.

Do ilustre compositor Ricardo Tacuchian recebi mensagem a apontar posicionamento extremamente equilibrado, vendo resultados positivos nas duas vertentes, mas deixando uma dúvida no final da mensagem:

“Estou acompanhando com muito interesse o debate entre você e François Servenière sobre questões de técnica e expressividade. Até que ponto uma postura se opõe ou se soma à outra? É uma pergunta difícil de responder, como em todos os outros campos da estética. Sua posição de respeito às intenções e características dos artistas do passado são insofismáveis. Entretanto, a atualização da forma de interpretação para os tempos de velocidade de nossos dias, defendida por François Servenière, também é válida. Afinal de contas, existem três importantes fontes criativas numa obra de arte: o compositor (autor de uma proposta), o intérprete (expositor desta proposta segundo seus próprios pontos de vista) e o ouvinte (decodificador final de toda esta cadeia, na intimidade de seus centros cerebrais). E o ouvinte de hoje não estaria mais ávido de receber uma mensagem beethoviniana através dos intérpretes chineses? Me parece que a grande dificuldade é encontrar um ponto em comum entre estas duas posições, se é que isso é possível. Aliás, a citação introdutória do pianista e professor Jacques Février que você faz em seu texto anterior, sobre as mil possibilidades de interpretação de Debussy (menos uma!) de certa maneira reafirma a necessidade de se achar ‘um ponto em comum’: o respeito ao conteúdo espiritual de determinada obra. E eu pergunto: isto tem a ver com a velocidade? São perguntas para as quais não tenho respostas, mas que cada vez mais me aproximam de minhas procuradas respostas, quando leio seus autorizados textos. Mas, tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

O professor titular da História da Ciência da FFLCH-USP toma um partido, a considerar a abalizada posição de François Servenière como fruto de sua experiência escritural:

“Eu me alinho com sua análise. Parece-me, e arrisco dizer, que Servenière escreveu pensando na música do tipo que é composta por ele, tão somente, e você, ao contrário, fez uma generalização muito cabível”.

Da parte do arquiteto Marcos Leite recebi o e-mail:

Quanto ao seu sempre agradabilíssimo texto, este traz a invariável pertinência da percepção que estudiosos como você e seu amigo François nos mostram e fazem entender o que escutamos, mas não temos a capacidade de, como simples amadores, traduzir o que fica limitado ao sentimento produzido pela audição. Penso. Traço paralelos a algumas situações que me são mais próximas, como, por exemplo, alguns intérpretes de jazz ou cantores da bossa nova. Volto aos clássicos e eruditos. Remexo no YouTube. Obrigado, meu amigo, por fomentar essa curiosidade cultural em tempos de valorização de ideias tão rasas”.

François Servenière nos fala dessa tendência da escola pianística chinesa, que teria vindo para ficar. Seria possível entender que, na escala vertiginosa dos avanços tecnológicos, haverá muitos recordes a serem estabelecidos. Quando insisto nessa aproximação esportes e virtuosidade instrumental é pelo fato de que a cada Olimpíada recordes também são alcançados e, frise-se, as ambições chinesas são claras, pois estão produzindo atletas para esse mister vitorioso. Contudo, no caso da Música, não estaríamos a estabelecer parâmetros que transformarão por completo os prestos e prestissimos das composições do passado? Pianistas detentores de técnicas descomunais, exemplificados por György Cziffra e Vladimir Horowitz, foram umas poucas exceções que, apesar dessas qualidades, não interferiram na interpretação de outros tantos pianistas consagrados. O que se acentua neste século é a presença de uma escola chinesa que se “globaliza” e que poderá provocar uma ruptura na própria interpretação tradicional, estruturada através das intenções dos compositores do passado. A metodologia pianística chinesa teria de agregar, a essa excepcional evolução técnico-virtuosística, a visão paralela da expressão, que só será integralizada através de um profundo estudo da cultura ocidental.

Apesar dos dois volumes referenciais de Gisèle Brelet, “L’Interprétation Créatrice”, terem sido escritos em 1951, distante mais de meio século dessa guinada da técnica pianística chinesa a impactar o Ocidente, consideremos uma sua reflexão, que atenderia aos dois posicionamentos em causa nestes dois últimos blogs a contemplar “Expressão e Técnica”. Escreve a autora: “A virtuosidade corresponde ao natural, ao ritmo natural do movimento – o tempo musical do gesto, essência secreta da música… A virtuosidade isola a essência ativa do gesto e da alma, sua forma simples, fora dos conteúdos que a mascaravam; ela é o triunfo da técnica viva, alimentando-se apenas dela e só a sustentá-la a atividade pura do intérprete e a duração viva a jorrar. Sob outra égide, essa atividade se reduz se for presa do automatismo, pois a virtuosidade se aniquilaria se a alma do intérprete, oprimida pelo peso das paixões, não pudesse mais, nesse enclausuramento, implantar prazerosamente sua fantasia criativa. Dessa maneira transparece a austeridade de uma sabedoria, mas sob a frivolidade aparente da virtuosidade. Se esta exige da alma daquele que a criou e daquele que ouve uma ascese direcionada ao seu ato fundamental, se ela a liberta de seus acidentes para fortificar sua essência, reconciliando-a com ela mesma, não seria a virtuosidade, no sentido mais nobre, virtus, virtude escondida?” (tradução JEM).

Ficaria neste espaço meus agradecimentos a François Servenière, que teceu reflexões sobre a “onda” pianística chinesa que chega ao Ocidente, possivelmente a oxigenar certos conceitos, aos inúmeros leitores tomando partido, ou da posição do ilustre mestre francês ou de meu posicionamento, assim como ao compositor Ricardo Tacuchian, que, após abalizadas considerações, deixa uma dúvida ao dizer: “tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

The last post mentioned that current trends in classical music tend to dissociate an artist’ technique and the expression of his feelings, with the French composer François Servenière and I expressing our different views on the subject. This has triggered discussions among readers, who came out in favor of one side or the other. Today I publish some of the messages received, among them the one by composer Ricardo Tacuchian, who says in his email that maybe we will never have a conclusive answer due to the difficulty in finding a common ground between the two distinctive approaches to playing an instrument.


Debate profícuo sobre o tema

Há mil maneiras de interpretar Debussy respeitando-o.
Uma só é equivocada: é a de trair seu estilo.
Jacques Février.

O compositor francês François Servenière teceu comentários de muito interesse a respeito do blog anterior, o que me levou a uma resposta. Novamente escreveu-me a substanciar sua argumentação, o que me levou a responder-lhe novamente. Transmito ao leitor segmentos dessa troca de opiniões sobre um tema relevante e agradeço a François Servenière por ter-se debruçado tão a fundo, emitindo considerações abalizadas. O debate de ideias serve para o amadurecimento do ser humano.

Escreve Servenière:

“Seu texto compara duas civilizações de músicos intérpretes, a europeia e a asiática, da qual a expressão particular é a chinesa contemporânea. Não é possível comparar dois períodos tentando analisá-los com os mesmos critérios. Na realidade, não se está a comparar duas escolas, dois períodos históricos, pois estamos confrontando duas escolas, a romântica moderna europeia do início do século XX, no caso específico a francesa, que se expande com Marguerite Long e seus epígonos, com a chinesa, que chega com impacto quase um século depois, nas fronteiras dos séculos XX e XXI.  Obras que pareceriam impossíveis de serem executadas por intérpretes do passado – salvo exceções – são julgadas normais na interpretação de nossos dias. Assim como a música popular influenciou compositores ascendentes, tendências recentes do jazz, rock, música para as massas e fluxos rápidos retilíneos influenciam a interpretação hodierna.

Claro, evidencia-se que uma geração de intérpretes da vasta escola europeia clássica, aquela que teve como referência a obra de autores consagrados, pode julgar os pianistas chineses da última geração como robots que não compreendem a música e seus fundamentos por pensá-la em tempi mais rápidos nos segmentos expressos. Podemos admitir tal fato – interpretação robótica -sobretudo se considerarmos a excessiva rapidez em determinadas interpretações de criações românticas e impressionistas. Nesses casos, a execução rapidíssima poderá estar completamente deslocada.

Sob outra égide, recomendo muitas vezes a escuta das músicas barrocas, de Bach ou de Couperin, que não podemos jamais interpretar sem o perigo do excesso de rubato. Constato que a irregularidade do rubato prejudica certas músicas de nosso tempo, mesmo quando assinaladas. A música, quando bem escrita, não tem necessidade de flutuar em torno de um ponto central de tempo. Sim, ela tem necessidade de respirar, mas não de uma super-respiração. Não se pode considerar a interpretação do século XX como uma certeza linguística forjada para os séculos seguintes. É um ponto de vista de uma época, devemos aceitá-lo como tal. Não aceitamos como ultrapassados os critérios do quattrocento ou das Lumières?

Hoje há repertório contemporâneo moderno – não o estilo ‘contemporâneo’ (já datado), mas a época,  – baseado sobre o ritmo e a velocidade, espaços esses nos quais os intérpretes da Ásia fazem maravilhas.  O tempo e a moda passam e é necessário se adaptar. Houve um período maravilhoso antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), chamado Belle Époque, centrado em Paris, destinado à languidez e ao rubato, cujo desiderato preciso era a expressão íntima dos sentimentos. Obras primas foram criadas. É esse período único? Não. Em sequência, a história trágica viu a derrocada de todos os critérios de beleza e de sentimentos, exacerbados nas grandes convulsões do século XX. Se é fabulosamente importante e necessário conservá-los como testemunhos absolutos de uma época, sob outra égide, qual a razão de conservatórios, bibliotecas, fundos artísticos e museus pensarem ainda hoje como naquela época? Estamos num período da rapidez, que busca encontrar na música a expressão de seu tempo. Essa percepção ressente-se na música criada, pois a juventude não mais aceita, para a música, critérios como o rubato musical, pois os considera datados. Essa juventude vive o tempo da mecânica e do mecanismo.

O humano mudou completamente a percepção do tempo que lhe resta. Há um século, na época da lentidão de barcos, comboios e veículos, pensava-se que era necessário dar ‘tempo ao tempo’. A vida se desenrolava ao ritmo do escargot, ritmado pelas estações. Eram considerados antisociais aqueles cidadãos apressados e excitados. Segundo os critérios daquele período, todos seríamos considerados loucos!

Hoje, a percepção do tempo a viver, mercê da aceleração dos meios de transportes, dos ritmos de vida e da comunicação eletrônica, tornou-se fonte de stress permanente e quase obrigatório, que nos devora a partir de nosso interior. Doravante consideramos que o tempo de vida é curto para apreciar todos os prazeres oferecidos pela época moderna: viagens obrigatórias, superconsumo, atividades múltiplas da megalópole. Afigura-se imperativa a adaptação ao fluxo da torrente impetuosa para sobreviver. A comunicação audiovisual, mundializada e totalizante, amplifica essa percepção até à neurose individual e coletiva.

Ao ouvirmos hoje Petrouska ou O pássaro de fogo de Stravinsky, La Mer de Debussy, na percepção hodierna as sentimos, até certo ponto, lentas, se bem que a dinâmica e a escritura sejam extraordinárias. Obras-primas para sempre. Quando ouvimos as últimas músicas criadas/interpretadas hoje na música contemporânea, mesmo para orquestra, a pulsação rápida e linear tornou-se o eixo central da obra. Abaixo desses tempos, considera-se a música como datada, enfadonha… Diz-se comumente ‘Você não se aborrece de compor música para as velhinhas!’, pois é possível improvisar languidamente, modulando à maneira de Fauré…

O que entendemos primeiramente como injúria ou incultura de massa não o é realmente… É justo o reflexo ou a defasagem da percepção diferencial do tempo entre a música mais tocada nos concertos clássicos – aquela anterior aos anos 1940 – com essa criada posteriormente, ouvida majoritariamente nos dias de hoje. A música de nossa época, mesmo na criação elitista, é uma música pulsada, ritmada, ávida da velocidade que, se for executada lentamente e com rubato, não responde ao objetivo daquilo escrito na partitura. Os músicos formados atualmente seguem sem dificuldade essa nova norma, apesar de subsistirem reações. E nessa  concepção musical, plena de intenso jorrar e de velocidade, mesmo considerando-se a época da criação, é evidente que os chineses performáticos são os melhores. Não nas obras de Debussy, Ravel ou do romantismo, pois a agógica desse período pede o charme, a virtuosidade controlada e uma profundidade que merece reflexões musicais. Não teriam as obras novas perdido esse lampejo de eternidade lenta, característico no pensamento filosófico e bíblico tão presente nos clássicos e nos românticos e até nos impressionistas? Talvez.

Não coloquemos em questão a escola europeia de música, atrelada à da filosofia continental, que certamente permanecerá como um farol indomável face à tempestade provável do mundo futuro… Brevemente entenderemos que não são os chineses que se adaptam à escola europeia, mesmo que eles frequentem suas classes, mas que serão os intérpretes europeus, seguros de seu magistério superior, talvez equivocadamente, que se adaptarão doravante, parcial e lentamente, à oferta chinesa, pois o público está a aceitá-la. Publico ávido do espetáculo, dos efeitos especiais e dos fogos de artifício. É nossa época. Uma Roma decadente, talvez…

Concluindo, após essa breve análise, não há somente um cisma artístico entre duas escolas. Há sobretudo uma ruptura de época, como a pertinente entre a tecnologia de 1950 e a atual. Situação boa ou má? Ninguém pode saber. Contudo, não precisaríamos colocar em questão se aquilo que se praticou nos anos 1930 e que perdurou nos Conservatórios será o futuro. Ou, então, considerar que a escola chinesa que avança sobre o Ocidente, impondo seu estilo audacioso, seja sinal dos nossos tempos. Não colocaria minha mão no fogo quanto à superioridade da interpretação dos períodos passados.

Eis minhas observações após seu texto enriquecedor” (tradução: JEM).

A preceder minha resposta ao ilustre compositor François Servenière, colocaria para o leitor, não conhecedor de determinadas palavras do vasto léxico musical, a palavra italiana rubato (roubado). Das definições, uma parece-me bem plausível: “Modo de execução em que, sobretudo em passagens expressivas, se adopta uma grande liberdade de movimento sem que, porém, se destrua o essencial do ritmo” (Tomás Borba – Fernando Lopes-Graça. Dicionário de Música. Lisboa, Cosmos, 1958).

Respondi-lhe:

“A sua mensagem está muito bem articulada e atende em parte à nossa realidade atual. O amigo demonstrou que essa invasão chinesa chegou a utilizar princípios de nossa atualidade vertiginosa e alucinante. Todavia, malgrado essa realidade, preocupa-me a mudança abrupta de mentalidade, que não corresponde àquilo que está depositado nas partituras do passado e que resultou na interpretação que, ao longo de quase dois séculos, preservou valores culturais não pertencentes ao cotidiano da mentalidade chinesa. Um amigo português, excelente pianista, aliás, dizia-me há alguns anos que conversara com pianista chinês durante Festival de música europeu. O artista asiático havia tocado Sonatas de Beethoven. ‘Você conhece bem a Cultura alemã dos séculos XVIII-XIX para bem entender as mentalidades de Beethoven, Schumann, Brahms?’, perguntou meu amigo. Recebeu resposta que o deixou atônito. ‘Teria eu de conhecer a Cultura dos países europeus para tocar bem? Estudei muitíssimo para ser pianista, não um expert em literatura e outras artes’. A pianista chinesa Yuja Wang, de imensa notoriedade, declararia em entrevista que o público adora ouvi-la tocar ‘O voo do besouro’ de Rimsky-Korsakov na transcrição de György Cziffra, esperando possivelmente que recordes de velocidade possam ser batidos. Se de um lado o público adora essa legião de supervirtuoses que, à maneira de acrobatas, épatent les bourgeois, se na mesma direção a fala do Diretor do Conservatório de Shangai (vide blog anterior) precisou a velocidade como meta para os pianistas chineses sem mencionar a palavra expressão, pode-se verificar que, apesar de toda a evolução tecnológica e da ‘velocidade’ cotidiana, há algo a se pensar relacionado ao estilo de um compositor do passado.

Sobre o rubato, trata-se de elemento expressivo natural na música, pertencente à plasticidade da frase, tão compreendida desde a Idade Média através do Canto Gregoriano. Minha saudosa amiga, a notável gregorianista Júlia d’Almendra (1904-1992), que sustentou tese no Institut Grégorien de Paris em 1948 sob o título ‘Les Modes Grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy’, dizia-me sempre que a música gregoriana e a que a sucedeu em tantas ramificações outras não existem sem essa flexibilização agógica. François Couperin (1668-1733) escrevia no prefácio da edição de 1713 do primeiro livro das ‘Ordres pour Clavecin’: ‘Amo muito mais o que me emociona àquilo que me surpreende’. Disse tudo. Sob outra égide, o grande músico, pianista e regente Daniel Barenboim, em seu livro ‘La Musique est en tout’, escreveria que o ouvido humano não consegue seguir a velocidade extrema de certos intérpretes atuais.

Sobre a velocidade, não me oponho a essa peculiaridade, essencial à boa execução em obras específicas, desde que dominada a serviço da ideia do compositor. Logicamente, um compositor contemporâneo, sem o pleno domínio dos instrumentos acústicos, pode indicar velocidades absurdas, que ele ouve ‘eletronicamente’ através de aplicativos super avançados. Acredito que a origem original na cabeça de inúmeros intérpretes – mormente oriundos do Extremo Oriente – é o desconhecimento da ampla Cultura Ocidental. Suas leituras frenéticas, vertiginosas, habilíssimas das partituras dos compositores europeus dos séculos passados podem ter a ausência dessa anima imprescindível à interpretação.

Apesar dessa velocidade extrema de certos pianistas chineses, raramente os ouço via Youtube, pois sei o resultado. Mencionaria, como rara exceção, a pianista chinesa Zhu Xiao-Mei (1949- ), hoje radicada na França, cuja interpretação das ‘Variações Goldberg’, de J.S.Bach, é simplesmente extraordinária e está no YouTube. Seu livro (vide blog: “La Rivière et son secret”, 06/11/2009) narra suas absurdas vicissitudes vividas durante o período maoísta.  Contrariamente, estou sempre a visitar as gravações de Vladimir Horowitz, Wilhelm Kempff, Alfred Cortot, Arthur Rubinstein, Wilhem Backhaus, Guiomar Novaes, Samson François, Jean Doyen, Marcelle Meyer, Vladimir Sofronitzki, Emil Guilels, Claudio Arrau, Edwin Fischer… Choque de gerações? Talvez. Aos 81 anos, posso me permitir escolhas. E elas foram feitas”.

In this post I publish email messages exchanged between the French composer François Servenière and me, stating our different views on the quality of East Asian pianists’ performances, the Chinese in particular. While I believe most of them play with the clear intention of beating world records, Servenière appreciates their approach to piano playing, considering it an expression of our time, the era of speed and technology. In his opinion, Chinese performers are a huge success because they give what today’s audiences want: a dazzling display of technique, extreme speed, flamboyant behavior, fireworks.