Retorno ainda uma vez a esse tema inesgotável

Na bela técnica realiza-se o desdobramento temporal
que é imanente à atividade do gesto;
ela é dinâmica e não mecânica;
pois uma bela passagem e até um exercício tocado com graça
não são restritos à igualdade mecânica
que acreditamos ser por vezes o ideal da técnica:
a leveza espontânea que eles exigem do intérprete
vale na exata medida em que estabelecem rubatos sutis
que atestam a secreta presença de uma alma,
organizando seu tempo íntimo.
Gisèle Brelet

Opiniões divergentes podem suscitar um aprofundamento maior de debate salutar. O blog anterior exibiu parte essencial da posição do compositor francês François Servenière sobre a atual escola pianística da China, que, de maneira contundente, tem apresentado valores que se apresentam no Ocidente em escala progressiva, exibindo preferencialmente virtuosidade extraordinária, nem sempre acompanhada da devida atenção ao estilo de compositores do passado. Respeito profundamente as opiniões de Servenière, dotado de mente privilegiada, apesar de nossas considerações não serem as mesmas sobre o tema. O fato de tê-las colocado em pauta trouxe a participação de leitores para o nosso debate.

Do ilustre compositor Ricardo Tacuchian recebi mensagem a apontar posicionamento extremamente equilibrado, vendo resultados positivos nas duas vertentes, mas deixando uma dúvida no final da mensagem:

“Estou acompanhando com muito interesse o debate entre você e François Servenière sobre questões de técnica e expressividade. Até que ponto uma postura se opõe ou se soma à outra? É uma pergunta difícil de responder, como em todos os outros campos da estética. Sua posição de respeito às intenções e características dos artistas do passado são insofismáveis. Entretanto, a atualização da forma de interpretação para os tempos de velocidade de nossos dias, defendida por François Servenière, também é válida. Afinal de contas, existem três importantes fontes criativas numa obra de arte: o compositor (autor de uma proposta), o intérprete (expositor desta proposta segundo seus próprios pontos de vista) e o ouvinte (decodificador final de toda esta cadeia, na intimidade de seus centros cerebrais). E o ouvinte de hoje não estaria mais ávido de receber uma mensagem beethoviniana através dos intérpretes chineses? Me parece que a grande dificuldade é encontrar um ponto em comum entre estas duas posições, se é que isso é possível. Aliás, a citação introdutória do pianista e professor Jacques Février que você faz em seu texto anterior, sobre as mil possibilidades de interpretação de Debussy (menos uma!) de certa maneira reafirma a necessidade de se achar ‘um ponto em comum’: o respeito ao conteúdo espiritual de determinada obra. E eu pergunto: isto tem a ver com a velocidade? São perguntas para as quais não tenho respostas, mas que cada vez mais me aproximam de minhas procuradas respostas, quando leio seus autorizados textos. Mas, tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

O professor titular da História da Ciência da FFLCH-USP toma um partido, a considerar a abalizada posição de François Servenière como fruto de sua experiência escritural:

“Eu me alinho com sua análise. Parece-me, e arrisco dizer, que Servenière escreveu pensando na música do tipo que é composta por ele, tão somente, e você, ao contrário, fez uma generalização muito cabível”.

Da parte do arquiteto Marcos Leite recebi o e-mail:

Quanto ao seu sempre agradabilíssimo texto, este traz a invariável pertinência da percepção que estudiosos como você e seu amigo François nos mostram e fazem entender o que escutamos, mas não temos a capacidade de, como simples amadores, traduzir o que fica limitado ao sentimento produzido pela audição. Penso. Traço paralelos a algumas situações que me são mais próximas, como, por exemplo, alguns intérpretes de jazz ou cantores da bossa nova. Volto aos clássicos e eruditos. Remexo no YouTube. Obrigado, meu amigo, por fomentar essa curiosidade cultural em tempos de valorização de ideias tão rasas”.

François Servenière nos fala dessa tendência da escola pianística chinesa, que teria vindo para ficar. Seria possível entender que, na escala vertiginosa dos avanços tecnológicos, haverá muitos recordes a serem estabelecidos. Quando insisto nessa aproximação esportes e virtuosidade instrumental é pelo fato de que a cada Olimpíada recordes também são alcançados e, frise-se, as ambições chinesas são claras, pois estão produzindo atletas para esse mister vitorioso. Contudo, no caso da Música, não estaríamos a estabelecer parâmetros que transformarão por completo os prestos e prestissimos das composições do passado? Pianistas detentores de técnicas descomunais, exemplificados por György Cziffra e Vladimir Horowitz, foram umas poucas exceções que, apesar dessas qualidades, não interferiram na interpretação de outros tantos pianistas consagrados. O que se acentua neste século é a presença de uma escola chinesa que se “globaliza” e que poderá provocar uma ruptura na própria interpretação tradicional, estruturada através das intenções dos compositores do passado. A metodologia pianística chinesa teria de agregar, a essa excepcional evolução técnico-virtuosística, a visão paralela da expressão, que só será integralizada através de um profundo estudo da cultura ocidental.

Apesar dos dois volumes referenciais de Gisèle Brelet, “L’Interprétation Créatrice”, terem sido escritos em 1951, distante mais de meio século dessa guinada da técnica pianística chinesa a impactar o Ocidente, consideremos uma sua reflexão, que atenderia aos dois posicionamentos em causa nestes dois últimos blogs a contemplar “Expressão e Técnica”. Escreve a autora: “A virtuosidade corresponde ao natural, ao ritmo natural do movimento – o tempo musical do gesto, essência secreta da música… A virtuosidade isola a essência ativa do gesto e da alma, sua forma simples, fora dos conteúdos que a mascaravam; ela é o triunfo da técnica viva, alimentando-se apenas dela e só a sustentá-la a atividade pura do intérprete e a duração viva a jorrar. Sob outra égide, essa atividade se reduz se for presa do automatismo, pois a virtuosidade se aniquilaria se a alma do intérprete, oprimida pelo peso das paixões, não pudesse mais, nesse enclausuramento, implantar prazerosamente sua fantasia criativa. Dessa maneira transparece a austeridade de uma sabedoria, mas sob a frivolidade aparente da virtuosidade. Se esta exige da alma daquele que a criou e daquele que ouve uma ascese direcionada ao seu ato fundamental, se ela a liberta de seus acidentes para fortificar sua essência, reconciliando-a com ela mesma, não seria a virtuosidade, no sentido mais nobre, virtus, virtude escondida?” (tradução JEM).

Ficaria neste espaço meus agradecimentos a François Servenière, que teceu reflexões sobre a “onda” pianística chinesa que chega ao Ocidente, possivelmente a oxigenar certos conceitos, aos inúmeros leitores tomando partido, ou da posição do ilustre mestre francês ou de meu posicionamento, assim como ao compositor Ricardo Tacuchian, que, após abalizadas considerações, deixa uma dúvida ao dizer: “tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

The last post mentioned that current trends in classical music tend to dissociate an artist’ technique and the expression of his feelings, with the French composer François Servenière and I expressing our different views on the subject. This has triggered discussions among readers, who came out in favor of one side or the other. Today I publish some of the messages received, among them the one by composer Ricardo Tacuchian, who says in his email that maybe we will never have a conclusive answer due to the difficulty in finding a common ground between the two distinctive approaches to playing an instrument.