Quando a recepção aos textos precedentes ganha potencial relevo

É o insatisfeito, como era natural,
que junta alguma coisa à realidade;
desde que o homem se encontre bem de vida,
a força que o levava a criar,
seja qual for o domínio,
afrouxa e estaca.

Agostinho da Silva
(“Sete cartas a um jovem filósofo”)

O blog sobre a criação na juventude da idade adulta e na maturidade da idade adulta provocou inúmeras mensagens, sendo que a do compositor e pensador francês François Servenière foi de tal abrangência e dimensão que mereceria ser exposta ao leitor. Aguardei o término das festividades do Natal e do Ano Novo para publicá-la. Servenière tece comentários sobre o texto do médico e especialista Elliot Jaques, tema do blog de 15 de Dezembro, acrescentando dados que certamente despertarão atenção especial dos seguidores de meu blog semanal. O pensamento de Servenière leva sempre a um amplo campo reflexivo, passível de ser polemizado. Essa postura é um dos fatores de interesse de suas mensagens. Um privilégio para mim tê-lo tantas vezes como partner de meus blogs. Abrimos pois 2019 com tema relevante. François Servenière expõe:

“Fiquei interessado pelo artigo que encerrou a série sobre o jovem compositor português António Fragoso, morto precocemente vítima da gripe espanhola em 1918, na idade de 21 anos. Seu post abordou temas profundos e, como sempre acontece com seus textos, parte-se de um tema particular para se chegar à reflexão geral.

Primeiramente, entendo de interesse todos os comentários efetuados pelo médico canadense Elliot Jaques sobre a crise do meio da existência.

Concernente à criatividade e às idades mais favoráveis, tinha opiniões de certa forma estanques quando via todos esses gênios da música, da pintura e da literatura atingidos por alguma moléstia e abatidos pela morte antes dos quarenta anos. Estavam eles, como todos os criadores, aliás, imersos ainda jovens no efeito turbo dos hormônios do crescimento. Sabemos que a produção desses hormônios, verdadeiras anfetaminas destinadas ao crescimento e à reprodução da espécie no período em que os gametas têm mais potencial, diminui no sangue nas fronteiras dos trinta anos. Seria imaginar que os hormônios fizeram seu trabalho de transmissão do que há de melhor do DNA e que, passado esse período, o corpo humano não tivesse mais nenhuma utilidade para a continuação da espécie. Essa situação hormonal leva-me a pensar nos salmões subindo com energia delirante os rios e cachoeiras mais difíceis do Grande Norte – após um a três anos nos oceanos – até o lugar onde nasceram, a fim de desovar e, após, deixarem-se morrer no local, esgotados e não mais servindo para qualquer outra atividade, tendo pois completado o ciclo das gerações.

Essa metáfora tem relevo quando estudamos a vida de dois dos maiores gênios da musica em quantidade e em qualidade, Mozart (35 anos) e Schubert (31 anos). Morreram, cérebros e corpos esgotados pela vida criativa alucinante. Em ambos os casos, 626 e quase 1000 opus, respectivamente, existências abreviadas que ensejam algumas estatísticas musicologicamente comprovadas sobre os dois e outros criadores de grande talento que morreram precocemente:

- começaram a compor muito jovens;
- escreveram delirantemente, arruinando suas saúdes;
- repetiram-se inúmeras vezes, sendo que algumas obras ‘intermediárias’ serviram de rascunhos e de maquetes para as obras-primas que viriam a seguir, as cumeeiras criativas;
- viveram em períodos onde a esperança de vida era frágil (30-40 anos) e tinham consciência aguda da brevidade da existência.

Havia a percepção clara e generalizada de que o corpo humano não estava preparado face às grandes pandemias que assolavam a Europa periodicamente, a aumentar paradoxalmente a pujança criativa, pois sabiam que o fluxo da ampulheta seria rápido e desfavorável. Acredito com convicção que a vida criativa desses compositores, prematuramente desaparecidos, assemelhar-se-ia a um gigantesco tornado e que o término do fenômeno estaria por volta dos 30 anos.

Uma certa geração de extremistas e radicais do século XX acreditava que, ao encurtar a existência por conduta desregrada, haveria acesso mais rápido à consagração universal e à elevação ao panteão dos séculos… Nada é menos exato, se falarmos unicamente da técnica e da semântica, da organização, da conceitualização, da elevação da alma, do gênio artístico, tendo-se como referencial absoluto os mestres excelsos dos séculos passados. Para esses arrivistas suicidas em busca de um sucesso rápido e retumbante a partir do escândalo (droga, a vida outlaw, hoje o pomo chic), constata-se claramente a flagrante decadência ou hecatombe criativa em comparação aos gênios que permaneceram.

Trata-se de um eufemismo de época, pois o show business mui raramente apresenta o talento encontrável em tempos idos na Idade Média, na Renascença, no período clássico e mesmo na contemporaneidade, naquilo que denominamos arte séria (sob o aspecto da linguagem). Há outra realidade igualmente exemplar: a facilidade econômica das sociedades modernas afunda o talento artístico, assim como deteriora os comportamentos. Esse fenômeno ocorre, de preferência, quando as gerações pertencentes às sociedades ocidentais atingem a idade adulta.

Na verdade, entre os contemporâneos de Mozart (1756-1791) e Schubert (1797-1828), um século antes da profilaxia das vacinas, o stress vital devia estar no seu máximo. Pouco se fala das catedrais, construídas num período de um optimum medieval, época provavelmente mais calorosa do que a nossa, pois construídas nesse fervor artístico sob a égide do empenho coletivo de várias gerações de artesãos-artistas, poupados que foram do egoísmo contemporâneo das sociedades de super consumo. Criatividade, vida curta ou longa? Debate um pouco defasado quando relatamos as obras primas da antiguidade. No caso dos dois compositores mencionados, os últimos retratos de Mozart evidenciam traços de uma pessoa com mais de 70 anos, a se pensar nas fisionomias da atualidade. Estafado ao extremo, pai de oito filhos, dos quais apenas dois chegaram à idade adulta.

Fala-se da Pequena Idade Glacial para o período entre 1350 a 1900. Durante esse espaço de tempo, a mortalidade infantil foi enorme, assim como a fertilidade para assegurar a sobrevida da espécie, sendo que a esperança de vida se restringiu ao seu nível mais baixo, comparável àquele dos homens da pré-história. As pinturas de Hieronymus Bosch (1450-1516) evocam um período muito frio, quase glacial. Poder-se-ia pensar que o gênio criativo tenha sido correlativamente fraco. Pois o que aconteceu foi o contrário. Incontáveis os gênios artísticos e filosóficos que surgiram nessa Pequena Idade Glacial. Precariedade de vida pareceria associada a uma energia vital pujante do gênio criativo levado ao extremo…

Socialmente poderemos fazer um paralelo com a soma imensa das grandes obras produzida sob regimes totalitários. A restrição pareceria ser parâmetro importante. Mas, e a liberdade? É bem difícil responder abruptamente. A se considerar conjunturas históricas com tais diferenciais de saúde pública, de sistemas políticos, poder-se-ia considerar uma idade ideal para a criatividade? O que é certo é que, atualmente, o gênio é inversamente proporcional ao conforto a beneficiar criadores. Mais eles são inflados, incensados, menores esforços eles fazem para sair da rotina, do comum, das banalidades”. Em blog bem anterior (vide O Criativo – Quando apropriações estranhas criam distorções. 25/04/2009), considerava a apropriação indevida da palavra criativo, há tempos tão a gosto do profissional de propaganda e marketing. Vulgarizaram o termo. A publicidade atual evidencia tantas e tantas vezes o caminho da repetição em todas as áreas, pois se uma publicidade ganha grande visualização, outros “criadores” das muitas empresas, para produtos da mesma área, seguem o abominável caminho da repetição. As empresas a abrigarem “criadores” não estariam nessa zona “inflada, incensada, rotineira, banalizada, de conforto”, como expõe, sobre outra égide, Servenière?

O pensador francês prossegue: “O show business é o enterro da arte excepcional do passado. Quando se fundem na mesma expressão social, negócios e criação, o resultado é uma linguagem empobrecida no limite da precariedade, do sucesso fácil. A frase imbecil ‘todo mundo é um artista’ simboliza a triste realidade”. O funk não representa o que de mais desprezível existe sob o rótulo inapropriado de manifestação musical?

Servenière continua: “Uma conclusão rápida deve, pois, nos induzir à ideia de que as piores condições de vida aumentam consideravelmente o instinto criativo, que é integralmente relacionado ao instinto vital. Esse instinto pode atingir seu ápice aos 20, 40, 60, 80 anos. É evidente que a juventude transmite uma energia eruptiva em suas obras. Mas seriam elas profundamente pensadas, organizadas, arquitetadas, perenizadas? Enfim, a ciência e o saber acumulados durante a senectude verão nascer produções raras, que terão certamente maior pertinência. Não obstante, haveria a necessidade de o artista ter uma longa existência e saber organizar socialmente seu viático (sucesso, ensino, negócios, outro métier…) para ainda persistir a vontade de criar aos 80 anos. Os insucessos potenciais e recorrentes da vida podem reduzir toda vontade criativa a zero muitíssimo antes da chegada à idade avançada. Quantos não são os artistas que param toda a atividade bem rapidamente diante de um fracasso e partem para outra ocupação? Uma imensa maioria. Nem o talento, nem a força do talento, nem a pujança criativa renovada são ofertados a todo mundo. Na idade de 60 anos, os resistentes às vicissitudes da vida de artista são exceções em suas gerações.

Basicamente não se pode sinceramente criar grandes obras sem que se seja um faminto pela vida. Pareceria evidente. Sob outro aspecto, a depressão destrói tanto o instinto criativo como a vitalidade.

Numa outra apreensão, a luz do sol tem papel fundamental no humor das pessoas, terapia para as depressões sazonais, segundo confirmações da medicina desde o fim do século XX. O outono e o inverno nos deixam sombrios, enquanto a primavera é a fonte da juventude, de criatividade, de fluxo de hormônios, mercê do aproveitamento pleno da seiva. Quantos não foram os artistas do passado que, em carruagens, desceram às terras do Mediterrâneo ou realizaram a curta travessia do Mare Nostrum rumo ao Norte da África, ou mesmo atravessaram oceanos em busca de outros hemisférios, simplesmente para evitar que o ato criativo tivesse uma queda? Legiões. Não por acaso, a Califórnia tornou-se um dos centros mais criativos do planeta nas últimas décadas… Cria-se mais em espaços de bom humor e energia, geografias essas onde o sol nos invade com excesso de Vitamina D. No passado há exemplos dessas cidades florescentes, plenas de sol benfazejo: Roma, Florença, Atenas.

Se essa apologia ao sol é válida, consideremos que o Astro Rei representa o exemplo da superficialidade, do descompromisso, enquanto a pouca luz existente nas estações frias da nossa Europa favorece a introspecção e o aprofundamento. O hedonismo se opondo naturalmente à austeridade. A metáfora é possível e contraditória, praias e mosteiros. Ambos favorecem, à sa manière, a criatividade, embora por caminhos rigorosamente diferentes.

Ao observarmos esse parâmetro climático para falar sobre criatividade e hedonismo, emergem dois polos essenciais da cultura humana, aquele do norte – países frios – outro do sul – países quentes. Considerando a concepção europeia de arte, há forma, estilo, ambiente que poderíamos considerar como mediterrâneos, tendo como centro a Itália, assim como outra, nórdica, centrada na Alemanha. Duas culturas extraordinárias, nascidas na Europa e espalhadas para o mundo. A Itália e a Alemanha resumiram as oposições de estilo e pensamento. J.S.Bach (1685-1750) e Antonio Vivaldi (1678-1741), Richard Wagner (1813-1883) e Giuseppe Verdi (1813-1901) não seriam exemplos nítidos?

A cultura mediterrânea pareceria mais superficial e hedonista, enquanto a nórdica mais cerebral e conceitual. Encontraremos grande quantidade de músicas muito sensíveis na Itália, berço histórico da ‘lacrimosa’, enquanto a Alemanha nos oferecerá as formas musicais mais científicas, pensadas, organizadas e com resultados surpreendentes. A ciência pareceria alemã, a sensibilidade, italiana. É claro que essa definição esquemática se torna simplista. Há o contraexemplo, pois gênios italianos serão considerados ‘alemães’ e esses, ‘italianos’. São incontáveis os ‘vazamentos’ culturais e assimilações mútuas.

Na arte, como na luz, há todas as cores do arco-íris, todas as gradações possíveis, todas as nuances regionais que nos induzem a pensar que não existem regras absolutas… Seria um erro se, ao contemplarmos o globo terrestre e a disposição dos países, nos dispuséssemos a acreditar que a influência do sol determinará a criação de tendências maiores ou menores. Dir-se-á que tal estilo, tal caráter é francês, alemão, russo, chinês, mexicano, brasileiro, português, espanhol, americano, africano, etc, etc. Muito sol provocaria a preguiça, a fadiga e a hedonismo, e muito frio congelaria o cérebro. Os países temperados são os privilegiados sob a esfera da criatividade: nem tão frio, nem tão quente. Não se trataria apenas de uma questão da personalidade individual, como se constata em todas as partes do mundo. Há inúmeros exemplos que estabelecem as exceções nas civilizações habituadas aos extremos…

Evidentemente, podemos analisar a personalidade individual, em todas as suas conjunturas, como integrante da vontade individual, mas que será duramente impactada pelo meio onde ela emergir. Seria um acaso o aparecimento de gênios e grandes artistas, durante séculos, em Paris, Roma, Moscou, Londres, Amsterdam? A política, a abertura de espírito e a sensibilidade dos príncipes, a riqueza do comércio, o limite das populações e as geografias climáticas favoráveis, a curiosidade das massas, a filosofia e o pensamento dominante do entorno (todos parâmetros interdependentes) tiveram papel fundamental na história da arte e não podem ser desprezados. O artista ex nihilo não existe, aquele que surge a partir no nada. Ele vem de longe, de alguma parte, de uma forja cósmica social e universal, potencializada pelo tempo e pelas gerações. É ele filho, produto de um ambiente propício, de um acúmulo de camadas, de uma predisposição mental certa, mas também de uma cultura. Ele passará ao lado de seu destino, ou não. O acaso e a necessidade farão sua obra no segmento biológico que constitui a sua vida” (tradução: JEM).

The posts about the Portuguese composer António Fragoso’s untimely death and about the Canadian psychoanalyst Elliot Jacques (creativity at different stages of life) has been given special attention by the French composer François Servenière, who sent his comments on the matter: effects of hormones on creativity, celebrity and success breeding repetition and superficiality, climatic cold and heat shaping creative thinking, the impossibility of separating an artist’s’ mental disposition from his environment. Sometimes controversial, always thought-provoking, Servenière’s views will for sure capture the readers’ attention.

 

Lembranças da atividade durante o ano que ora finda

Eu parto do princípio de que, quanto mais compreendemos, mais amamos;
mais amamos, mais admiramos;
mais admiramos, mais somos felizes.
Sacha Guitry

Não foram muitos os blogs dedicados à minha participação em corridas de rua. Geralmente reservo para o fim do ano algumas considerações a respeito, fugindo à regra quando fato inusitado me impede de abordar o tema. Comecei a correr em provas oficiais em Junho de 2008, aos 70 anos, e neste final de 2018 completei minha 176ª corrida de rua. À medida que adquiri mais endurance, apesar do avanço etário, aumentei minhas participações, sempre movido por intensa alegria em integrar-me aos milhares de corredores e ter feito, ao longo, amizades que se solidificaram. Estas foram surgindo naturalmente e a temática é sempre benfazeja, a tratar de performances, tempos e, a preponderar, o prazer da convivência naquelas horas precisas.

Neste ano foram 21 corridas de rua, sempre na atitude prazerosa de realizá-las, rever companheiros e acrescentar amizades que forçosamente surgem.

Geralmente meu amigo Carlos ou Batoré, para os que o conhecem nas corridas, é o companheiro ideal. Nos domingos de provas, antes de raiar o dia, lá está ele no portão de casa pronto para a corrida dominical. Companhia preciosa, Batoré adentrou a quinta década e corre muitíssimo mais rápido do que seu amigo matusalênico, que apesar disso, nunca andou durante corridas, exceção a uma competição de 10k no bairro do Pacaembu que compreendeu o Minhocão. Nos últimos 300 metros faltaram-me as pernas e tive de andar. Ao comentar o fato com o ilustre ortopedista Heitor Ulsson (vide blog: Cirurgia da mão – Rizartrose, 09/10/2010), quis o cirurgião saber antecedentes. Disse-lhe que, na noite anterior, dera recital de piano na Associação Eubiose e após jantara com amigos. Resumindo, dormi apenas uma hora e meia. A resposta veio a galope. Meus músculos não tiveram o mínimo repouso. Aprendi.

Há corridas e corridas. Algumas muito bem organizadas, outras nem tanto. Aos 80 anos, seleciono com cuidado as provas e seus percursos. Tenho evitado as corridas noturnas, pois as realizadas na USP, no Minhocão e na marginal do Rio Pinheiros têm pontos negros, pelo excesso de árvores encobrindo a iluminação ou algumas luzes queimadas, convidando corredores a quedas prováveis. Nada como o dia e o asfalto sem máculas. Algumas provas me agradam sobremaneira. Mencionaria: Clube Juventus, Monte Líbano, Olga Kos, Trigo, Superman, Cidade de São Paulo (Parque do Ibirapuera), Stock Running (no legendário autódromo de Interlagos), Longevidade (Bradesco Seguros – Ipiranga).

Episódio jocoso ocorreu na Corrida Superman. Os corredores receberam a camisa e uma capa vermelha. Muitos participaram com esse adendo. Corri com a camisa e, dias após a prova entreguei-a ao amigo Batoré, que não conseguira se inscrever a tempo. Não queria recebê-la, a dizer que serviria para meus treinos. Disse-lhe que participar com a camisa do super herói era plausível, pois a grande maioria assim procedeu, mas treinar pelas ruas do bairro seria certamente constrangedor. Batoré aceitou o argumento e a camisa, assim como a capa vermelha, para seu neto.

O fim de ano assinala uma corrida icônica no Brasil, a São Silvestre. Dela participei de 2008 a 2012, não me inscrevendo nas subsequentes, após a morte de Israel Cruz Jackson de Barros, o cadeirante que, ao descer a Rua Major Natanael, teve problemas com seu veículo, vindo a morrer. Após a São Silvestre de 2011 já vaticinava, infelizmente, que aquela descida não é para a extraordinária maioria de amadores participantes. Um grande corredor brasileiro do passado já me confessava àquela altura que essa descida é “criminosa” para a grande malta que pretende correr a prova. Presenciei na época pessoas que caíam. Todavia, interesses são interesses – tantas vezes estranhos e inconfessos – e o declive simpático da Avenida da Consolação foi definitivamente abandonado. Tiveram os organizadores da São Silvestre ao menos a gentileza de ter o nome de Israel Cruz Jackson de Barros inscrito em troféu a ser entregue aos vitoriosos anuais? Essa atitude não seria terem de confessar o inconfessável? Compreenda-se, jamais Israel teria morrido se a descida continuasse a ser realizada na agradabilíssima descida da Avenida da Consolação. No Direito Penal há configuração clara para situações onde não há a menor intenção para que a morte ocorra, mas ela pode ocorrer por imprudência, negligência ou imperícia. Se a morte advém por motivo natural, enfarto ou motivo outro, entendamos que faz parte de qualquer atividade esportiva. Daí a necessidade de todo corredor estar em dia com seus exames médicos periódicos: cardiológicos, densitometria óssea, pressão e outros pertinentes à prática esportiva. Assim mesmo, a fatalidade pode chegar.

Menciono a tragédia, pois integro a equipe Corre Brasil, capitaneada pelo excelente Professor Augusto César Fernandes de Paula e sua simpática esposa, Valquíria (Val). Todos os anos, a equipe realiza dois simulados da São Silvestre semanas antes do evento, domingo pela manhã. Um grupo de 100 corredores, aproximadamente. Nesses treinões desço a Av. da Consolação com alguns outros participantes, que preferem evitar a pirambeira da Major Natanael. Simulados prazerosos que desmitificam a divulgação da imprensa, que assinala sempre, digo sempre, através de locutores e escribas, que a subida da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, de pouco mais de 2km, é grande desafio. Por 12 vezes subi a Brigadeiro, cinco correndo a São Silvestre (2008-2012), sete a treinar. Aos domingos, subi-la na contramão na faixa dos ônibus é algo agradável, pois raros coletivos ou táxis descem a avenida e, ao deslumbrá-los, é só se deslocar para a calçada e logo após retornar à faixa reservada. Penso sempre nesse alarde concernente ao aclive da Brigadeiro, falso, diria, mas que está impregnado na mente do povo, que a vê como algo terrível e temível para o comum dos mortais. Diria que os treinos que a Corre Brasil realiza rumo ao Pico do Jaraguá (aclive incessante de 4,5km) é bem mais desafiador. Com prazer participo dessas subidas, bem mais tranquilas do que as descidas, por incrível que possa parecer, pois se aquelas podem até provocar outros problemas, a descida mal planejada compromete decididamente todo o intrincado mecanismo dos joelhos.

A Corre Brasil também organiza treinos periódicos no Parque do Ibirapuera aos domingos. Breve palestra, exercícios físicos em duas etapas, corrida pelo parque e quitutes posteriores servem para selar a confraternização. Tenho participado de quase todos esses treinos e fotos após os treinões selam momentos benfazejos.

Infelizmente, nossa primeira equipe, Ta Lentos, está desativada. Contudo, três da equipe ainda se encontram durante determinadas provas, como a recentíssima, dia 23 de Dezembro, no Autódromo de Interlagos. Um prazer reencontrá-los em São Paulo e nas corridas em Mogi das Cruzes.

Espero continuar a correr enquanto mente e pernas obedecerem. Meu amigo Antônio Lopes, no pórtico dos 91 anos, participa até de provas de meia maratona (21k). Um exemplo único na atualidade. É sempre bom revê-lo e verificar que suas passadas ritmadas, sem alterações, evidenciam o bem que proporciona a corrida de rua para a mente, o físico e a relação com a vida.

Desejo a todos os seguidores do blog um ano de 2019 pleno de realizações, saúde e paz. Almejamos, ao menos.

In the last post of 2018 I write about the pleasures of running and look back on the road races in which I took part: favorite routes, my running performance, the joys of meeting old friends and making new ones. Let’s hope in the year that now begins I’ll continue to have fun and enjoy the camaraderie of my teammates and other runners. I wish you all a New Year filled with promises of a brighter tomorrow.

 

 

 

A Cristandade comemora data tão especial

Em muitos países há o hábito de arranjar a árvore de Natal.
Há sítios em que todas as famílias, sejam ricas ou pobres,
arranjam o seu ramo de pinheiro e o enfeitam de brinquedos e luzes.
Escritores e poetas contam interessantíssimas histórias sobre a origem desse costume.
Thesouro da Juventude
(vol. X, p. 3152)

Desde o Natal de 2007, quando inseri no blog, sob o título “Velho Natal”, um belo conto de Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu e meu padrinho de Crisma, tenho pautado, para essa data caríssima à Cristandade, comentários a respeito do significado da efeméride, o nascimento do Cristo, ou apresentado ao leitor outros contos pertinentes.

Ao longo de mais de onze anos de blogs ininterruptos, incontáveis vezes mencionei o escritor e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Mundialmente conhecido, mormente pelo sensível “Le Petit Prince”, seus romances “Courrier Sud”, “Vol de Nuit”, “Terre des Hommes”, “Pilote de Guerre,” entre outras obras publicadas, também receberam substancial guarida. Contudo, seria em “Citadelle” que o  aprofundamento se faz de maneira absoluta, irretocável, a se considerar a opera omnia do autor, pois basicamente são traçados “todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”, segundo sua irmã Simone de Sant-Exupéry, que eu tive o privilégio de conhecer e com quem convivi semanalmente durante tertúlias no apartamento de seu primo, Baron André de Fonscolombe, diplomata de carreira e amigo inesquecível, no período em que eu estudava em Paris, fins de 1958 a 1962. De interesse um depoimento de André de Fonscolombe sobre seu primo Antoine:

https://www.ina.fr/audio/P11161748

“Citadelle” teve início em 1936 e manteve-se inacabada. Os numerosos textos esparsos foram cuidadosamente reunidos. Publicada postumamente em 1948, teria seu farto material reestudado e republicado em 1959. Seria possível entender que o narrador de “Citadelle”, Senhor do Império imaginário das vastas regiões desérticas, tenha tido sua origem após a queda que o avião de Saint-Exupéry sofreria no deserto líbio, parte do imenso Sahara, aos 30 de Dezembro de 1935. Durante dias, Saint-Exupéry e um companheiro ficaram à mercê da imensidão até serem resgatados.

Em “Citadelle”, Saint-Exupéry evoca, como narrador, eflúvios essenciais de uma Noite de Natal na região nórdica. O Senhor do Império conta os momentos delirantes de um de seus soldados, moribundo, que só conhecera a vastidão do deserto, mas que ouvira vagamente relato de uma árvore iluminada na gélida região escandinava. É compreensível que o Senhor do Império de uma região desértica imprecisa faça menção em tantos segmentos às tradições ocidentais. A narrativa faz sentido no contexto de “Citadelle”, pois o infortunado personagem, como incontáveis outros figurantes do “Império” em situações diversas, é atemporal e, a preceder o momento terminal, vagueia o pensamento em relato que ouvira outrora e que corresponde ao cerimonial de Natal singelamente descrito.

O Senhor do Império, na pena de Saint-Exupéry, escreve:

“Conheci aquele soldado que queria morrer, pois ouvira cantar a lenda de um país do Norte e vagamente sabia de que as pessoas caminhavam uma certa noite do ano sobre a neve estaladiça e sob as estrelas em direção às casas de madeira iluminadas. Se, após a caminhada, você entrar numa casa iluminada e colar seu rosto nos vidros da janela, descobrirá que esta claridade vem de uma árvore. E dirão a você que é uma noite que tem gosto de brinquedos de madeira envernizada e um odor de cera. E ainda dirão que os rostos dessa noite são extraordinários. Todos eles à espera de um milagre. E você verá todos os velhos retendo a respiração e fixando os olhos das crianças, preparando-se para grandes palpitações do coração. Porque vai se passar diante dos olhos dos miúdos algo inapreensível e que não tem preço. Durante todo o ano você esteve a edificar esse algo, através das expectativas e das narrativas, mas sobretudo mercê de seus cantos ouvidos e de suas alusões secretas e a imensidade do seu amor. Agora, você vai tirar da árvore algum objeto humilde de madeira envernizada e entregá-lo à criança segundo a tradição do seu cerimonial. E eis que chega o instante. Ninguém respira. A criança está com as pálpebras semicerradas, pois tiraram-na do sono. E a criança está sobre seus joelhos com esse odor de criança fresca que acaba de acordar e o abraça, e esse ato é fonte para o coração que anseia e tem sede desse momento. (O grande tédio das crianças é serem elas despojadas de uma fonte que a elas pertence, mas que não podem conhecer, fonte esta na qual todos aqueles que envelheceram no coração chegam para beber a fim de rejuvenescer.) Acabaram-se os beijinhos e a criança olha a árvore e você, a criança. Trata-se de colher uma surpresa maravilhosa como uma flor rara que nascesse uma vez por ano na neve.

E eis que você se substancia com certa coloração dos olhos que se tornam sombrios, pois a criança se enrola sobre o seu tesouro para se iluminar interiormente, de maneira súbita, desde que tem a posse do presente, como fazem as anêmonas no mar. E ela fugiria se a deixassem fugir. E não há esperança de a atingir. Não lhe fale, ela não ouvirá.

Essa cor efêmera, mais leve do que uma nuvem no campo, não me diga que ela não pesa. Mesmo que fosse a única recompensa do seu ano e do suor de seu trabalho e de sua perna perdida na guerra, e das noites de meditação, das afrontas e sofrimentos pesados, eis que ela lhe retribuirá e vai maravilhá-lo. É você que ganha com essa troca.

Impossível pensar sobre o amor pela propriedade, sobre o silêncio do templo ou sobre esse instante incomparável.

Meu soldado queria morrer, ele que vivera de sol e areia, ele que não conhecia árvore iluminada, ele que sabia unicamente a direção do Norte, pois lhe disseram que em algum lugar uma conquista colocara em crise um certo cheiro de vela e certa cor dos olhos que lhe chegaram através de frágeis poemas ouvidos em tempos outros, à maneira do odor das ilhas que o vento traz. Haveria razão melhor para se morrer?

O que o alimenta é o laço divino que liga as coisas, não se importando com mares ou muralhas. E eis que você alcança a plenitude no seu deserto, a imaginar que existe algures, numa direção que lhe é desconhecida, no meio de estrangeiros desconhecidos, em um país sobre o qual não tem a mínima ideia, uma certa expectativa de uma certa imagem representada por um pobre objeto de madeira envernizada, que penetra os olhos de uma criança como uma pedra nas águas estagnadas.

Vale a pena morrer pelo alimento que você recebe”. (tradução: JEM).

A todos os leitores desejo um Natal pleno de Paz neste planeta tão necessitado.

On Christmas season, I publish a story extracted from Citadelle, by Saint-Exupéry, my bedside book. With delicacy, lyricism and dreamlike mood, he captures the magic of Christmas night through metaphors that allow different interpretations. To all my readers, I wish a season filled with beautiful moments and cherished memories.