A Cristandade comemora data tão especial

Em muitos países há o hábito de arranjar a árvore de Natal.
Há sítios em que todas as famílias, sejam ricas ou pobres,
arranjam o seu ramo de pinheiro e o enfeitam de brinquedos e luzes.
Escritores e poetas contam interessantíssimas histórias sobre a origem desse costume.
Thesouro da Juventude
(vol. X, p. 3152)

Desde o Natal de 2007, quando inseri no blog, sob o título “Velho Natal”, um belo conto de Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu e meu padrinho de Crisma, tenho pautado, para essa data caríssima à Cristandade, comentários a respeito do significado da efeméride, o nascimento do Cristo, ou apresentado ao leitor outros contos pertinentes.

Ao longo de mais de onze anos de blogs ininterruptos, incontáveis vezes mencionei o escritor e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Mundialmente conhecido, mormente pelo sensível “Le Petit Prince”, seus romances “Courrier Sud”, “Vol de Nuit”, “Terre des Hommes”, “Pilote de Guerre,” entre outras obras publicadas, também receberam substancial guarida. Contudo, seria em “Citadelle” que o  aprofundamento se faz de maneira absoluta, irretocável, a se considerar a opera omnia do autor, pois basicamente são traçados “todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”, segundo sua irmã Simone de Sant-Exupéry, que eu tive o privilégio de conhecer e com quem convivi semanalmente durante tertúlias no apartamento de seu primo, Baron André de Fonscolombe, diplomata de carreira e amigo inesquecível, no período em que eu estudava em Paris, fins de 1958 a 1962. De interesse um depoimento de André de Fonscolombe sobre seu primo Antoine:

https://www.ina.fr/audio/P11161748

“Citadelle” teve início em 1936 e manteve-se inacabada. Os numerosos textos esparsos foram cuidadosamente reunidos. Publicada postumamente em 1948, teria seu farto material reestudado e republicado em 1959. Seria possível entender que o narrador de “Citadelle”, Senhor do Império imaginário das vastas regiões desérticas, tenha tido sua origem após a queda que o avião de Saint-Exupéry sofreria no deserto líbio, parte do imenso Sahara, aos 30 de Dezembro de 1935. Durante dias, Saint-Exupéry e um companheiro ficaram à mercê da imensidão até serem resgatados.

Em “Citadelle”, Saint-Exupéry evoca, como narrador, eflúvios essenciais de uma Noite de Natal na região nórdica. O Senhor do Império conta os momentos delirantes de um de seus soldados, moribundo, que só conhecera a vastidão do deserto, mas que ouvira vagamente relato de uma árvore iluminada na gélida região escandinava. É compreensível que o Senhor do Império de uma região desértica imprecisa faça menção em tantos segmentos às tradições ocidentais. A narrativa faz sentido no contexto de “Citadelle”, pois o infortunado personagem, como incontáveis outros figurantes do “Império” em situações diversas, é atemporal e, a preceder o momento terminal, vagueia o pensamento em relato que ouvira outrora e que corresponde ao cerimonial de Natal singelamente descrito.

O Senhor do Império, na pena de Saint-Exupéry, escreve:

“Conheci aquele soldado que queria morrer, pois ouvira cantar a lenda de um país do Norte e vagamente sabia de que as pessoas caminhavam uma certa noite do ano sobre a neve estaladiça e sob as estrelas em direção às casas de madeira iluminadas. Se, após a caminhada, você entrar numa casa iluminada e colar seu rosto nos vidros da janela, descobrirá que esta claridade vem de uma árvore. E dirão a você que é uma noite que tem gosto de brinquedos de madeira envernizada e um odor de cera. E ainda dirão que os rostos dessa noite são extraordinários. Todos eles à espera de um milagre. E você verá todos os velhos retendo a respiração e fixando os olhos das crianças, preparando-se para grandes palpitações do coração. Porque vai se passar diante dos olhos dos miúdos algo inapreensível e que não tem preço. Durante todo o ano você esteve a edificar esse algo, através das expectativas e das narrativas, mas sobretudo mercê de seus cantos ouvidos e de suas alusões secretas e a imensidade do seu amor. Agora, você vai tirar da árvore algum objeto humilde de madeira envernizada e entregá-lo à criança segundo a tradição do seu cerimonial. E eis que chega o instante. Ninguém respira. A criança está com as pálpebras semicerradas, pois tiraram-na do sono. E a criança está sobre seus joelhos com esse odor de criança fresca que acaba de acordar e o abraça, e esse ato é fonte para o coração que anseia e tem sede desse momento. (O grande tédio das crianças é serem elas despojadas de uma fonte que a elas pertence, mas que não podem conhecer, fonte esta na qual todos aqueles que envelheceram no coração chegam para beber a fim de rejuvenescer.) Acabaram-se os beijinhos e a criança olha a árvore e você, a criança. Trata-se de colher uma surpresa maravilhosa como uma flor rara que nascesse uma vez por ano na neve.

E eis que você se substancia com certa coloração dos olhos que se tornam sombrios, pois a criança se enrola sobre o seu tesouro para se iluminar interiormente, de maneira súbita, desde que tem a posse do presente, como fazem as anêmonas no mar. E ela fugiria se a deixassem fugir. E não há esperança de a atingir. Não lhe fale, ela não ouvirá.

Essa cor efêmera, mais leve do que uma nuvem no campo, não me diga que ela não pesa. Mesmo que fosse a única recompensa do seu ano e do suor de seu trabalho e de sua perna perdida na guerra, e das noites de meditação, das afrontas e sofrimentos pesados, eis que ela lhe retribuirá e vai maravilhá-lo. É você que ganha com essa troca.

Impossível pensar sobre o amor pela propriedade, sobre o silêncio do templo ou sobre esse instante incomparável.

Meu soldado queria morrer, ele que vivera de sol e areia, ele que não conhecia árvore iluminada, ele que sabia unicamente a direção do Norte, pois lhe disseram que em algum lugar uma conquista colocara em crise um certo cheiro de vela e certa cor dos olhos que lhe chegaram através de frágeis poemas ouvidos em tempos outros, à maneira do odor das ilhas que o vento traz. Haveria razão melhor para se morrer?

O que o alimenta é o laço divino que liga as coisas, não se importando com mares ou muralhas. E eis que você alcança a plenitude no seu deserto, a imaginar que existe algures, numa direção que lhe é desconhecida, no meio de estrangeiros desconhecidos, em um país sobre o qual não tem a mínima ideia, uma certa expectativa de uma certa imagem representada por um pobre objeto de madeira envernizada, que penetra os olhos de uma criança como uma pedra nas águas estagnadas.

Vale a pena morrer pelo alimento que você recebe”. (tradução: JEM).

A todos os leitores desejo um Natal pleno de Paz neste planeta tão necessitado.

On Christmas season, I publish a story extracted from Citadelle, by Saint-Exupéry, my bedside book. With delicacy, lyricism and dreamlike mood, he captures the magic of Christmas night through metaphors that allow different interpretations. To all my readers, I wish a season filled with beautiful moments and cherished memories.