Leitora interessada em dados sobre magnífica Capela em Botucatu

Só é importante e pode substanciar poemas verdadeiros
o engajamento perante a vida.
Antoine de Saint-Exupéry.

Júlia Carolina Athanásio Heliodoro, engenheira florestal, doutoranda em Ciência Florestal e Pós-graduanda em Museografia e Patrimônio Cultural, escreve-me sobre tema que sempre me foi muito caro, a figura de Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu, centralizando sua mensagem na Capela da Santíssima Trindade, idealização do ilustre prelado.

Transmito ao leitor sua simpática mensagem: “Estou escrevendo um artigo sobre a Capela da Santíssima Trindade do Seminário São José de Botucatu. Já pedi o empréstimo da tese da D. Maria Amélia para leitura, mas ainda assim encontro poucos relatos sobre a capela que não sejam sobre a pintura em si. Vi que o senhor conheceu nosso primeiro Bispo, que encomendou e acompanhou a obra. E participou de muitos concertos para arrecadar dinheiro para obras da igreja. Acredito que a melhor forma de enriquecer meu artigo é através da memória e oralidade. Se o senhor puder me ajudar com qualquer depoimento sobre a capela, sua construção ou sobre a relação da capela com o Bispo ou mesmo com o senhor, pode, por favor, me escrever?”

Insiro no presente blog segmento concernente a D.Henrique, pois em post bem anterior (vide “Velho Natal – Um conto singelo”, 22/12/2007) apenas menciono a Capela, sem entrar em pormenores: “Dom Henrique Golland Trindade foi uma figura extraordinária. Poder-se-ia acrescentar: homem santo ou iluminado, a depender das conceituações espiritualistas. Nascido em Porto Alegre, a vocação levou-o à formação religiosa competente. Tornou-se franciscano e atuou com intensidade frente a várias paróquias do país. Quando designado para a vida eclesiástica em Botucatu, no Estado de São Paulo, teve seu apostolado voltado aos mais simples e às crianças órfãs. Bispo e mais tarde arcebispo da diocese de Botucatu, nem por isso deixou de lado essa missão diária de assistir aos desalentados da cidade. Fundador da Congregação Diocesana das Irmãs Servas do Senhor em 1952 e da Vila dos Meninos Sagrada Família, Dom Henrique amava as Artes. A Capela da Santíssima Trindade do Seminário Arquidiocesano foi pintada por Henrique Carlos Oswald, filho do grande artista plástico Carlos e neto do não menos ilustre compositor Henrique Oswald. Em 1952, João Carlos e eu demos um recital na Igreja de São Francisco, no Largo do mesmo nome, em São Paulo. Era uma homenagem ao eminente prelado. Nos anos subsequentes, oferecíamos regularmente recitais no Colégio Santa Marcelina, em Botucatu, com a renda inteiramente destinada à Vila dos Meninos. Por várias vezes fomos passar alguns dias no Arcebispado da cidade e, orientados por Dom Henrique, apreciávamos, nos mínimos pormenores, a belíssima pintura de Henrique Carlos Oswald na ábside da Capela. Foi nosso padrinho de crisma. Em 1963, em Campinas, oficiaria o meu casamento com Regina”.

Após essa premissa, diria que a dissertação da professora, escritora e pintora Maria Amélia Blasi de Toledo Piza, defendida na UNESP-Bauru em 1997 (“Henrique Carlos Bicalho Oswald: O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”), estuda pormenorizadamente a expressiva Capela botucatuense pintada por Henrique Carlos Oswald com a ajuda de sua esposa, Jacyra Carvalho Oswald. Tive o privilégio de compor a banca examinadora. A ascendência do pintor Henrique Carlos Bicalho Oswald (1918-1965) é extraordinária. Seu pai, Carlos Oswald (1882-1971), foi o pioneiro da gravura em metal no Brasil e pintor de enorme qualidade. Em seguida à dissertação, Maria Amélia concentrou-se justamente na obra de seu progenitor, e sua tese de doutorado, defendida igualmente na UNESP-Bauru em 2010, versou sobre “A Poética da Luz na Obra de Carlos Oswald”. Curiosamente, se Maria Amélia realizou dois trabalhos acadêmicos sobre Henrique e Carlos, meu doutorado junto à FFLESCH-USP, em 1988, foi sobre o avô do pintor da capela, Henrique Oswald (1852-1931), o mais importante compositor romântico brasileiro. A neta do compositor, a saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro, durante os anos em que a visitava mensalmente no Rio de Janeiro a partir de 1978 para aprofundamento em torno de seu avô, dizia-me convicta que seu irmão, Henrique Carlos, sofrera intensa influência de seu pai nesse caminho da contemplação mística em muitos de seus trabalhos e que a pintura do mural da Capela da Santíssima Trindade teria como estímulo adicional o convívio diário com Frei Henrique, assim Maria Isabel o chamava, pois minha dileta amiga conhecera bem o prelado antes de se tornar bispo e, mais tarde, arcebispo.

Rememorando o que não foi mencionado no blog de 2007, diria que, durante as várias visitas a Botucatu a convite de D. Henrique e sempre a tocar, o arcebispo, meu padrinho de crisma, sempre apresentava, pleno de encantamento, a pintura da ábside, comentando seus personagens, muitos “recriados” a partir de figuras que Henrique Carlos conhecera. Foi de D.Henrique a ideia arquitetônica da capela. Sentia um “santo orgulho”, como afirmou-me reiteradas vezes ao adentrar a capela em estilo românico. A inspiração veio após conhecer as igrejas da península itálica do primeiro milênio. Como afirma Maria Amélia em sua dissertação: “A riqueza decorativa daquelas igrejas, construídas singelamente em tijolos aparentes, se reservava para o interior, onde pinturas ou mosaicos coloridos compunham cenas da história sacra. Inspirada nessas basílicas, porém com as proporções reduzidas harmoniosamente pelo arquiteto Benedito Calixto de Jesus Netto (1910-1972), a Capela da Santíssima Trindade apresenta o típico plano trinitário: átrio, nave e ábside, em cuja concha foi pintado o mural”. A restauração da Capela, realizada entre 2004-05, deu-se graças à comunidade botucatuense, mormente aos três idealizadores da causa, Padre Antônio Pedroso, então pároco da Catedral, Maria Amélia Blasi de Toledo Piza e Rita de Cássia Athanásio, trabalho exaustivo que teve o acompanhamento de Júlia Carolina Athanásio Heliodoro, todos no árduo empenho para obtenção de verbas.

Atendendo ao pedido de Júlia Carolina para que comentasse outras passagens a envolver D.Henrique, diria que meu convívio com o padrinho prolongou-se primeiramente até 1958, ano em que viajei para Paris com bolsa oferecida pelo governo francês, lá permanecendo cerca de quatro anos. Quando em rápida visita à capital francesa, fui aguardá-lo na estação ferroviária juntamente com minha colega, a pianista Odile Robert. Após meu regresso continuei a visitar Botucatu para recitais. Didaticamente, durante três anos, mensalmente viajava para a cidade, a fim de orientar jovens pianistas estudantes do Colégio Santa Marcelina. Mesmo nesse período, em todas as estadas visitava a Capela da Santíssima Trindade e, sentado, permanecia durante um bom tempo a meditar. Confesso à Júlia Heliodora que nenhuma igreja ou outra capela brasileira tem para mim essa mística inefável. Despojamento arquitetônico, ausência de artifícios, pintura de rara beleza…

Mencionaria outra passagem de meu blog de 2007 sobre a figura de D. Henrique: “No início da década de 1970, dera um recital em Botucatu e no dia seguinte, bem cedo, fui visitá-lo na Vila dos Meninos, onde há muito se recolhera. Encontrei-o ajoelhado, naquela manhã fria, a podar umas rosas. Tentei levantá-lo. Disse-me que estava bem. Perguntei ainda como se sentia após a renúncia da arquidiocese muito tempo antes, a fim de cuidar de crianças desamparadas. Baixou o capuz e serenamente respondeu: ‘Enquanto eu tiver forças nos braços para levantar e louvar a Deus, estarei bem’. Grande orador sacro, seus sermões não apenas cativavam pela profundidade dos ensinamentos, mas igualmente pelo vernáculo impecável. Escreveu vários livros, entre os quais Matt Talbot – O Operário Penitente e Nossos Pobres Contos”. Conservo-os com expressivas dedicatórias.

Um fato relacionado à Catedral de Botucatu relembro com clareza. Houve uma campanha para obtenção de verbas para a instalação dos sinos da Catedral. A arrecadação de um dos nossos recitais de piano em Botucatu, em 1955, foi destinada à obtenção de recursos para aquisição dos sinos. D. Henrique escreveu no Jornal Diocesano da cidade: “Que o Senhor de toda a beleza continue a orientar talentos tão peregrinos e que os queridos jovens, acompanhados por seus pais felizes, passem pela vida a semear harmonias e a semear o bem. E que o som grave do Sino do Centenário (que esperamos será uma realidade) espalhe pela nossa cidade centenária e seus arredores dois nomes de extrema simpatia, que estarão sempre ligados à sua história, como lição de desinteressada generosidade: José Eduardo e João Carlos Martins. (3-VIII-1955, Bispo Diocesano de Botucatu)”. Em 1997, após recital na cidade, subi até a torre da Catedral e li nossos nomes em alto relevo em um dos sinos. Regressei a Botucatu em 2013, igualmente para recital de piano. Comoveu-me muito o ato proporcionado pelas crianças da Vila dos Meninos, que subiram ao palco e me ofereceram uma camisa com a imagem de D.Henrique.

Sempre que convidado terei prazer em tocar na cidade dos “bons ares, bom vento”, sendo a verba aferida inteiramente dedicada à Vila dos Meninos.

A reader who is writing an article about the Holy Trinity Chapel of Botucatu, SP, has asked me to talk about my friendship with the late archbishop of Botucatu, Dom Henrique Golland Trindade (1897-1974), and also about the chapel (it was the archbishop’s idea to build the chapel in Romanesque style). Thus in this post I describe some episodes of my relationship with Dom Henrique, wich extended from 1952 to 1970. As to the chapel, I recommend reading the master’s thesis written by the retired university teacher, writer and painter Maria Amélia Blasi de Toledo Pisa, a serious research on the story of the chapel and in particular of its altar painting, work by Henrique Carlos Bicalho Oswald.

 

 

Em pauta o repertório pouco frequentado

A posteridade não é uma figura da justiça imanente.
Ela é humana.
A posteridade retém certos nomes que ela repete,
a resultar naquilo que denominamos glória;
ela esquece outros que não mereceriam ser esquecidos…
Roland-Manuel

Nos dias 22 e 29 de Setembro haverá dois recitais de piano em São Paulo. Um primeiro será dedicado a Claude Debussy, neste ano em que se comemora o centenário de morte do grande compositor francês. A apresentação se dará no auditório do Ateneu Paulistano às 20 hs (apoio: Sociedade Brasileira de Eubiose) e serei o intérprete. Em um segundo recital, no dia 29, minha esposa Regina Normanha Martins será a pianista e o recital se dará no auditório Giovanni Aronne às 16 hs (Rua Amâncio de Carvalho, 525, Vila Mariana t. 5549-6898).

Incontáveis vezes salientei a pouca oxigenação que se verifica no repertório para piano apresentado em nosso país, particularizando São Paulo. Nos blogs precedentes, em que abordei os volumes de “Plaisir de la Musique”, o notável professor de Estética Musical e crítico Roland-Manuel já discutia, no final dos anos 1940, essa persistência da não renovação. Seria plausível entender que o público de concerto, preferencialmente, não se sente tão à vontade ao sair da zona de conforto auditivo.

Tendo pautado meu caminho a partir da juventude da idade madura em repertório menos frequentado, apesar de habitualmente não negligenciar obras que o público está acostumado a ouvir, escolhi de Claude Debussy (1862-1918) criações raramente executadas, exceções à Masques e L’Isle Joyeuse, ambas de 1904, sendo que L’Isle… integra o repertório de parcela expressiva dos pianistas. Paradoxalmente, Masques, uma das mais importantes criações de Debussy para piano, é pouquissimamente visitada por pianistas. Masques foi composta em momento turbulento na vida de Debussy e, segundo um de seus biógrafos, Marcel Dietschy, tem-se “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Logo após surge L’Isle Joyeuse, paraíso temporário na ilha de Jersey, em que passa dias com sua futura esposa, Emma Bardac, após a tumultuosa separação de Lily Texier, sua primeira mulher. L’Isle Joyeuse é uma peça tensamente passional. Debussy escreve a respeito ao seu editor Jacques Durand em Setembro de 1904: “Mas senhor! Como é difícil de se tocar… esta peça me parece reunir todas as maneiras de se atacar um piano, pois ela reúne a força e a garra… se eu ouso assim falar”.

No programa interpretarei Images (oubliées), de 1894. Já salientei em blog bem anterior, quando da turnê em Portugal em Maio último, a qualidade dessas três peças, que ficaram em mãos do grande pianista e também colecionador Alfred Cortot (1877-1962). Seriam publicadas apenas em 1977 e o silêncio a que foram relegadas durante décadas explica sua pouca divulgação, em detrimento das duas séries de Images para piano, compostas em 1905 e 1907, respectivamente. Considere-se que duas das três peças que compõem Images oubliées terão destinações diferenciadas na cronologia de Debussy. A segunda peça, Souvenir du Louvre, será, com mínimas alterações, a Sarabande da difundida suíte Pour le Piano (1894-1901), e a terceira, Quelques aspects de ‘Nous n’irons plus au bois’ parce qu’il fait um temps insupportable, seria a primeira versão, se assim podemos considerar, de Jardins sous la pluie, terceira das peças de Estampes (1903). Images oubliées é obra digna de estar presente constantemente em repertórios, o que infelizmente não ocorre.

Danses sacrée et profane (1904) foram originalmente compostas para conjunto de cordas, harpa ou piano e obtiveram repercussão através do tempo. Contudo, em 1907, Jacques Durand (1865-1928), editor de Debussy e músico igualmente, realizou uma versão para piano solo, incorporando, na partitura destinada ao instrumento, segmentos destinados às cordas. Debussy aprovou a transcrição e Manuel de Falla teria apresentado em Madrid, no mesmo ano, essa versão que cairia no ostracismo. Fui o primeiro a gravá-la, constando de CD lançado pelo selo De Rode Pomp, da Bélgica, em 1999. Deveu-se a gravação ao fato que, para a Danse sacrée, Debussy pediu emprestado ao seu amigo, o compositor português Francisco de Lacerda (1869-1934), o tema de sua Danse sacré, danse du voile (1904), obra premiada em concurso parisiense com Debussy no júri. Nesse CD gravei não apenas essa criação de Lacerda, como a sua mais importante composição, as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922). Acredito firmemente que a versão das Danses Sacrée et Profane para piano solo deveriam integrar o repertório dos pianistas.

Quanto à La Boîte à Joujoux (1913), entendo incompreensível não figurar essa preciosidade no repertório praticado pelos intérpretes. Trata-se de criação única em sua estrutura, singeleza e na utilização seletiva da dinâmica, da agógica e da articulação. Sob outra égide, trata-se de uma síntese de tantos procedimentos nos quais Debussy mostrou-se revolucionário, entre eles “a beleza do som” tão apregoada pelo compositor. Creio ter sido o primeiro a interpretá-la no Brasil. A apresentação se deu em 1973. Poucos anos após, o respeitado pianista argentino Jorge Zulueta tocaria esse ballet pour enfants quando da apresentação no MASP da integral de Debussy para piano. Apesar de constar do catálogo de 1977 como redução de orquestra, La Boîte à Joujoux é criação original para piano. Em duas palestras na École Pratique des Hautes Études, em Paris, pude comprovar, através de documentação, a intencionalidade de Debussy nesse direcionamento preciso para piano, sendo que mais tarde André Caplet (1878-1925) realizaria a orquestração da composição. La Boîte…, ballet para crianças, é a obra monolítica mais extensa de Debussy. Quando da comemoração do centenário de La Boîte à Joujoux, em 2013, fui o convidado para apresentá-la no Musée Debussy na cidade natal de compositor, Saint-Germain-en Laye.

Abro o recital com Sinergia, criação de François Servenière a partir de acrílico sobre tela do pintor Luca Vitali. Sinergia é uma releitura de Clair de Lune e uma homenagem ao grande compositor, sendo o sétimo da coletânea de Études Cosmiques de Servenière, encontráveis na íntegra no YouTube.

No dia 29, Regina apresentará um recital significativo no auditório da Aronne Pianos, empresa fundada pelo meu saudoso amigo Giovanni Aronne (vide blog: “Giovanni Aronne – amigo e afinador”, 29/08/2009), hoje ampliada e dirigida por seus filhos. Regina estudou com sua mãe, a ilustre professora Olga Normanha. Teve também como mestres Guilherme Mignone e Isabel Mourão. Aos 12 anos apresentou-se no Bach Festival em Berkeley, California, lá recebendo láurea. Premiações, recitais no Brasil e no Exterior marcam sua trajetória. Significativas suas interpretações da integral de Anton Webern (1883-1945), dos dois recitais inteiramente dedicados às Sonatas de Domenico Scarlatti em 1985, ano do tri-centenário de nascimento do compositor, e de inúmeras obras de Francisco Mignone.

No recital, Regina interpretará três Sonatas de Domenico Scarlatti (1685-1757), Concerto Italiano de J.S. Bach (1685-1750), Sonata op. 26, nº 2 de Muzio Clementi (1752-1832), Três Improvisos sobre temas populares portugueses de José Vianna da Motta (vide blog “Vianna da Motta 1868-1948 – Um dos maiores músicos de seu tempo”, 07/07/2018), 12ª Valsa de Esquina de Francisco Mignone (1897-1986) e Jeux d’eau , criação emblemática de Maurice Ravel (1875-1937). Destacaria no programa a Sonata de Clementi, notável compositor, infelizmente longe dos repertórios. Clementi se notabilizaria mormente por sua obra didática Gradus ad Parnassum e por suas Sonatinas, criações obrigatórias durante o aprendizado e um dos méritos do compositor nessa transição que se fez necessária da técnica do cravo à aplicada ao piano, primeiramente voltada ao pianoforte e a seguir ao piano moderno. Talvez essa visão direcionada às obras com fundo didático tenha obliterado o grande valor de suas maiúsculas Sonatas. Recomendaria ao leitor ouvir, no YouTube, Sonatas de Clementi nas magníficas interpretações de Vladimir Horowitz (1903-1989) e Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995). Fica evidente que suas Sonatas rivalizam com Sonatas expressivas compostas por luminares da composição no período. Clementi foi um dos grandes mestres de seu tempo. Quanto a Vianna da Motta, Regina presta homenagem ao insigne músico português no ano de seu sesquicentenário. As Valsas de Esquina de Mignone correspondem à obra mais divulgada de nosso grande compositor.

Tem-se pois um programa bem equilibrado, a contemplar obras que mereceriam ser mais frequentadas pela geração de talentosos pianistas que surgem seguidamente em nosso país.

On two forthcoming recitals in São Paulo.  In the first, to be held on 22 September at “Sala Ateneu Paulistano”, the concert hall of Sociedade Brasileira de Eubiose, I will be the soloist, presenting solely works by Claude Debussy in the year of his death centennial. The second one, with pianist Regina Normanha Martins, will be on 29 September at “Sala Giovanni Aronne”. In the programme, works by Scarlatti, Bach, Muzio Clementi, Vianna da Motta, Francisco Mignone, Ravel. In both cases, the recital programmes will include well known works as well as pieces seldom performed and recorded, introducing audiences to new repertoire pieces.

A leitura a levar ao debate de ideias

O significado, na música,
estabelece-se para o compositor durante o processo da criação,
para o intérprete e o ouvinte, no curso da execução.
Nos dois casos ele emana do “percurso sendo feito”, ou seja,
de uma obra a  evoluir no tempo.
Vladimir Jankélévitch
(“La Musique et l’innéfable”)

As entrevistas de dois notáveis compositores, Henri Dutilleux e Arthur Honegger, despertaram profundo interesse, mercê de temas fulcrais debatidos. Mensagens curtas, salientando a extrema clareza dos entrevistadores e entrevistados. Creio que a prolixidade do discurso se acentuou a partir da segunda metade do século XX. Frisei o campus universitário como terreno propício, tantas vezes, ao discurso inócuo, a traduzir vaidades não confessas.

Gildo Magalhães, professor titular e Diretor do Centro de História da Ciência da USP, escreve: “o blog da semana e o anterior constituem uma mesma aula magistral. De mestre, porque ensinam e transmitem o saber, mas também porque incitam o recipiente a refletir, longe de tanta aula pedante e rasa. Neste sentido, sempre julguei empobrecedora a aplicação meramente cronológica de estilos e escolas, tanto na música quanto nas artes visuais. Clássico, romântico, etc. são designações acidentais, não essenciais. Bach, Mozart, Beethoven, assim como Schumann e tantos outros, criaram fugas e música que transcendem suas épocas. Há marcas do seu tempo, sem dúvida, mas que empalidecem perto do que têm de intemporal, do verdadeiramente humano. Conhecidos comentadores musicais, inclusive alguns deles músicos, como você sabe, parece que vivem prisioneiros de caixinhas cronológicas, de onde não saem por preguiça de pensar”.

François Servenière, compositor e pensador, emite opiniões contundentes sobre as duas entrevistas. Diverge sensivelmente da epígrafe do primeiro post sobre “Plaisir de la Musique”. Servenière assim entende:

“Quero comentar esses dois últimos blogs concernentes à publicação reencontrada em sua biblioteca, às voltas com a trabalhosa catalogação. Entendo que ‘Plaisir de la Musique’ despertou em você profunda alegria ao relê-lo após 60 anos.

Primeira reação: recuso totalmente o aforismo de Igor Stravinsky (1882-1971) ‘A música não é um fenômeno da natureza. Ela é produzida pelo homem. É uma arte’. A música precede o homem: pássaros, polifonias animais e vegetais, barulhos sonoros e sinfonia dos oceanos… Ao se ler, tem-se a impressão de que Stravinsky jamais saiu de seu apartamento… Não conheço um só compositor respeitado que não tenha sido influenciado em sua escrita pelos sons e as construções sonoras da natureza. Há uma quantidade imensa de vídeos no YouTube de cantos de pássaros, solistas, em duos ou em conjunto. Não poderia ser pretensão acreditar que o homem teria inventado a música? Sim, é verdade, o homem estabeleceu a estrutura sonora extraordinária, muito além de tudo o que era ‘ouvido’ na natureza. Todavia, não é menos verdade, isso só foi possível graças àquilo que a natureza precedentemente produziu. Cada vez que leio esse aforismo ferve-me o cérebro. Diria, um axioma bíblico do tipo ‘Deus criou o mundo em sete dias’. Stravinsky não devia ter ainda digerido Darwin…”. Entendendo o pensamento de Servenière, acredito que possivelmente o aforismo stravinskiano tenha sido pronunciado de maneira informal, sem reflexão maior, uma possível boutade como se diz em França,  pois “O Pássaro de Fogo”, “Sagração da Primavera”, “Rouxinol” e outras obras contrariam parte da frase o que o  isentaria de possível intencionalidade. Sob outra égide, provavelmente o contexto poderia ter sido a música como arte, estruturada e organizada pelo homem. Quantas não são os aforismos pronunciados por luminares das artes e da literatura que beiram a um tipo de gracejo?

Complemento a substanciosa mensagem de Servenière a dizer que, desde tempos imemoriais, o homem, para a caça de pássaros, buscava emitir grunhidos, tentando imitar seus cantos. Na Idade Média e na Renascença são muitos os exemplos de canções e madrigais nessa busca imitativa. Os cravistas franceses – lembremo-nos de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) et Le Rapell des Oiseaux ou La Poule – e, bem mais tarde, Olivier Messiaen (1908-1992), mormente com o monumental Catalogue des Oiseaux. A antítese da frase de Stravinsky estaria no aforismo de Messiaen “transponho todos os cantos dos pássaros para uma escala humana, pois são eles os maiores músicos”.

Servenière continua: “Aprecio as reflexões de Roland-Manuel sobre a sociologia burguesa dos concertos, a impedir que outras criações  revelem-se para o conforto auditivo. É realista a afirmação. O conforto burguês do século XIX foi substituído no século XX por outro, intercontemporâneo. O conforto e a estética dos belos salões do século XIX foram trocados pelos lugares atuais, de acústica deficiente, onde um acorde de tônica ou dominante leva aos gritos os ‘puristas’ de algumas tendências contemporâneas: ‘O que, um acorde justo, que horror!’ ‘Nossa, um belo céu azul, que horror!’

A música nos faz apreender o falso e o verdadeiro. Não por acaso existe a expressão milenar ‘soa falso’. De um discurso político à pintura, de uma obra arquitetônica à música, a expressão não sofreu uma ruga sequer através dos tempos… Os gregos sabiam a diferença instintiva entre o demagogo e aquele que falava a verdade. Os animais percebem o mau som, anúncio da aproximação de um predador.

Henri Dutilleux nos fala da forma fuga. Exercício primordial para a compreensão do desenvolvimento dos temas. Fui um fervente discípulo durante meus estudos preliminares e de meus anos como coralista. Contudo, entendi que a flama criativa não se encontra no estudo das fugas, necessário, mas tantas vezes uma forma a encobrir a falta de talento. A prática faz com que um compositor escreva uma fuga, mas o conhecimento pleno da forma não o torna um gênio. Todavia, é evidente que a Arte da Fuga, de J.S.Bach, é uma obra magistral, sem paralelo na história da música.

A respeito da frase de Roland-Manuel sobre a fuga, ‘o exercício mais indispensável e mais humilhante para a vaidade de um jovem compositor’, diria ser verdadeira, pois, para um jovem criador pleno de recursos e de ideias, o estudo da fuga pode ser melhor ou pior. Uma prisão mental, uma bengala para a criatividade, uma zona de conforto, podendo desestabilizá-lo e dele retirar o fogo sagrado. É necessário beber o necessário (como uma poção mágica) para não perder a linha diretriz criativa, o fio d’Ariadne. Quanto a mim, diria que senti estar a perder meu caminho. Li, escutei, toquei, admirei e, após, coloquei na estante as partituras de Bach. Tinha de compor minha obra”. Acrescentaria às palavras de Servenière que o mesmo se dá com o pianista, no caso. Durante o aprendizado, quantas não foram as horas e mais horas dedicadas ao estudo de métodos de exercícios e estudos preliminares de autores que se consagraram nesse mister: Hanon, Czerny, Cramer, Eggeling, Moscheles, Pozzolli, Löw, Clementi (“Gradus ad Parnasum”), Brahms (“51 Exercícios”) e tantos outros. Indispensáveis para a formação técnico-pianística, mas “humilhantes” em certa medida, mercê das repetições e da ausência, graças à destinação, de um verdadeiro valor musical. Qual não era nosso prazer ao dedicarmos uma outra parcela do tempo às criações específicas, peças para serem executadas em público? Lamentar jamais, pois sem essa ponte necessária, lacunas impossíveis de serem sanadas acompanharão o pianista durante toda sua trajetória. Também tenho todos esses métodos na estante. Como serviram! Aplica-se no caso a afirmação de Servenière, ao observar que o aprendiz pode perder “o fogo sagrado”. Sob outra égide, como desconfio do pintor que passa diretamente para o geométrico ou traços aleatórios, sem nunca ter executado um desenho ou pintado uma natureza morta? O saudoso amigo e imenso artista Luca Vitali me dizia que ao visualizar uma tela “abstrata” metros a sua frente, sabia se o pintor era ou não um artista.

Após mencionar frase de Arthur Honegger, “Beethoven é um clássico que infringe as formas regulares, sem cessar de lhes ser fiel”, e observando a seguir uma sua outra frase sobre o mestre alemão, “a música deixou de ser ciência para se tornar consciência”,  Servenière comenta: “completaria essa fórmula acrescentando que, graças à ciência e à sua importância, a música tornou-se consciência. Animal, instintiva, impulsiva, espontânea, surgida do nada, etc.  Após seus estudos, é evidente que os músicos, aqueles criadores, devem com vitalidade regressar ao seu instinto primitivo e, principalmente, ouvir o seu de profundis. Do contrário, falarão unicamente para os grãos de poeira que enchem suas bibliotecas de partituras e tratados!”

A posição de Servenière, 60 anos após as entrevistas inseridas nos dois blogs anteriores, apresenta aspectos convergentes com os abordados por dois dos mais importantes compositores do século XX. Todavia, o fato de ter nascido justamente na segunda metade do século (1961- ), quando a criação musical sofreu as maiores transformações, fê-lo optar por uma escrita coerente com todas as escolhas por ele feitas durante sua trajetória, compositores eleitos, técnicas professadas. Como intérprete, tendo em meu repertório obras das mais diversas tendências, que incluem criações do barroco à contemporaneidade, acredito poder avaliar as obras que executo. As de François Servenière têm a “eleição” de um acervo do passado, nele incluindo uma inusitada releitura do jazz, mas também uma abordagem pianística extraordinária e criativa, na qual transcendência e lirismo estão presentes harmoniosamente.

Many readers made comments about the post “Plaisir de la Musique”. I selected comments received from Prof. Gildo Magalhães on academic writings, so often incomprehensible just to disguise their voidness of content, and from the French composer François Servenière, who brings fresh ideas to the matters discussed.