O encerramento de importante publicação

Talvez as minhas melhores coisas se devam
à existência sombria que levei até agora,
e talvez a minha vida, medíocre em termos do metal,
seja mais propícia à invenção do que
ao amolecimento dos dias despreocupados,
em que a seda adormecedora tece em torno do cérebro
pensamentos de uma vida segura.
Claude Debussy (1862-1918)
(1892)

O “Centre de Documentation Claude Debussy”, em Paris, foi certamente o mais relevante centro de pesquisas sobre o compositor francês Claude Debussy (1862-1918) em termos mundiais. Criado em 1972 pelo notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), diretor do departamento de Música da Bibliothèque Nationale, o Centro foi responsável por várias atividades, entre as quais se destacam as publicações sobre Debussy. Lesure criou os Cahiers Debussy, editado desde 1977, que teve ao longo das décadas 39 números publicados.

Em conversa recente com Myriam Chimènes, ilustre musicóloga francesa, autora de extensa e indispensável bibliografia e que esteve à frente da Comissão de redação dos Cahiers Debussy, soube da desativação da publicação. Tendo, ao longo de duas décadas, colaborado com seis artigos, e havendo um número considerável de exemplos musicais neles inseridos, dedicarei os próximos cinco blogs – exceptuando um que é de ordem técnico-pianística – à síntese de cada conteúdo. A ausência compreensível de exemplos musicais neste espaço será substituída por gravações de obras referentes aos textos.

Durante meu convívio com o “Centre de Documentation Claude Debussy” desde o início dos anos 1980, quando de minhas visitas anuais à Europa, mormente para apresentações pianísticas, pesquisas e gravações, estas a partir dos anos 1990, apreendi o valor absoluto de François Lesure, que cuidou igualmente da organização de núcleos de trabalho constituídos por musicólogos de várias nacionalidades. Foi para mim um privilégio muito grande ter tido, ao longo de duas décadas, contatos permanentes com o eminente musicólogo, que me convidou para seminários sobre  pesquisas em andamento a respeito de Debussy diante do seu grupo de trabalho na “École Pratique des Hautes Études”. Esteve três vezes no Brasil para palestras, a convite da Universidade de São Paulo, tendo participado igualmente da banca examinadora de minha Livre Docência na USP, cujo tema versou sobre o “Idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”.

Ao longo dos anos, os Cahiers Debussy publicaram pesquisas originais que estavam sendo realizadas em vários rincões do planeta. A leitura dos títulos desses artigos bem evidencia a pluralidade de temas tratados, material esse que serve de apoio às pesquisas em andamento e futuras. Realizadas por musicólogos dos vários continentes, essas contribuições enriqueceram os conhecimentos sobre a trajetória de Debussy, estimulando, sob outra égide, não só a avaliação crítica de sua obra, mas igualmente as consequências do seu legado na composição que adveio após a sua morte.

Apresentarei, nos cinco blogs seguintes, a síntese de artigos meus publicados nos Cahiers Debussy. Esses artigos ou apresentam a relação musical com compositor por ele eleito, Moussorgsky (1839-1881), ou a atmosfera musical e poética que o aproxima, em determinado período, a um compositor dele contemporâneo, Alexandre Scriabine (1872-1915), ou a relação de amizade em determinado período com Francisco de lacerda (1869-1934), ou mesmo a presença inequívoca de ideias “extraídas” de obras precedentes de Debussy nas suas duas Sonatas compostas em 1915.

A primeira colaboração focalizou as comparações da linguagem pianística de Debussy e Scriabine, na qual podem ser apreendidas diversas proximidades surgidas em períodos tardios entre os dois compositores que não se conheceram, não havendo qualquer registro escrito em cartas ou bilhetes. Todavia, detectam-se, no discurso musical dos dois, algumas ligeiras semelhanças na escrita musical, mas preferencialmente, de maneira acentuada, nos termos inseridos nas partituras e que servem de guia segura para a interpretação (Cahiers Debussy – nouvelle série nº 7 -1983).

Quanto à segunda colaboração, focalizo a nítida e confessa admiração de Debussy pela obra de Moussorgsky (1839-1881). Não poucas vezes, em artigos e cartas, o apreço do compositor francês se faz presente. A pesquisa esteve relacionada aos Quadros de uma Exposição, obra maiúscula de Moussorgsky, e La Boîte à Joujoux, ambas para piano, e não poucas vezes Debussy deve ter se lembrado do compositor russo (Cahiers Debussy – Nouvelle série nº 9 (1985).

O terceiro artigo estuda a presença de lembranças de La Boîte à Joujoux (1913) nas duas Sonatas de Debussy – para violoncelo e piano e para violino e piano (1915) ―, máxime na parte reservada ao piano, tema igualmente inédito (Cahiers Debussy – Nouvelle série, nº14 (1990).

Um quarto artigo é reservado aos poucos dedilhado inseridos por Debussy nos manuscritos. No prefácio da edição dos 12 Études, o compositor escreve: “Busquemos nossos dedilhados”. Pelo fato de ser um tema muito técnico, contendo 26 exemplos, declinarei de dedicar blog específico (Cahiers Debussy – nº19, 1995).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude nº 11, Pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

O artigo sobre a correspondência sonora entre Debussy e Francisco de Lacerda (1869-1934) evidencia os resultados da grande admiração do compositor português nascido nos Açores pelas criações de Debussy, como bem mostram as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922). Anteriormente, Debussy emprestara um tema de Lacerda para a primeira das Danças, Danse sacré et Danse profane (1904).

O sexto artigo reproduz, na íntegra e com comentários, as três últimas cartas escritas pela filha de Debussy, Chouchou, à sua última professora de piano, Ada Killick. Chouchou morreria de difteria aos 13 anos, um ano após a morte de seu notável pai. Recebi-as do filho de Ada Killick, Gérard Killick, e posteriormente doei-as ao Centre de Documentation Claude Debussy.

As gravações que devo inserir nos cinco futuros blogs possibilitam, através da imagem sonora, descortino a mais de pequena parcela da criação de Claude Debussy.

The end of “Cahiers Debussy”, published by the “Centre de Documentation Claude Debussy” in Paris, which since 1977 has issued 39 volumes with the participation of experts in the field from various continents, brings to an end the dissemination of articles ― mostly unpublished material ― on the remarkable French composer.

Distanciamento do sentido etimológico

Mas quem pretende prever o destino do cedro que,
de semente em árvore e de árvore em semente,
de crisálida em crisálida se transforma?
Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
(“Citadelle”, cap. XX)

Torna-se evidente que o mundo está a viver uma fase acelerada em direção contrária ao significado preciso da palavra Paz. Lideranças não se entendem, voltadas preferencialmente a egos exacerbados. Se alhures guerras entre países e conturbações ocorrem, no Brasil é o esgarçamento das relações entre os Poderes, impulsionado pela acelerada disputa político-ideológica, que contamina mentes e decisões. Não mais temos harmonia entre os três Poderes, disposta na nossa Constituição de 1968, esvaiu-se, poder-se-ia dizer, quase que por completo. Reza a nossa Constituição, em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Subentende-se autonomia de cada Poder e respeito entre eles. É tão claro esse artigo, assim como o conteúdo da nossa Magna Carta criteriosamente gestada. Em sendo pianista, comparo-a com as partituras dos grandes mestres. Podemos interpretá-las, mas jamais maculá-las.

Essas premissas se fazem necessárias, máxime após a leitura recente do pensamento de Antoine de Saint-Exupéry sobre a paz em Citadelle (cap. XVII), que confesso ser o meu livro de cabeceira há décadas. Na opinião de uma das responsáveis pela edição do livro, sua irmã Simone de Saint-Exupéry, trata-se de “…obra densa e profunda que aborda todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”.

No que concerne à Paz, o escritor e piloto Saint-Exupéry, distante daquilo que hodierna e vulgarmente se apregoa sobre o termo, interpreta-a idealisticamente, com parcimônia, sem arrogância. Citadelle compreende uma experiência de ordem moral e seu personagem central é alegórico, um Senhor, verdadeiro guia espiritual, que transmite em monólogos seus conhecimentos existenciais, onde respeito, humanismo e justiça estão voltados à construção de uma sociedade ideal.

Recolhi alguns trechos que entendo essenciais para a compreensão do pensar de Saint-Exupéry sobre o tema:

«Não imponho a paz. Se me limitar a subjugar o meu inimigo, estou a alimentar o seu rancor. Trata-se de oferecer a cada um, para que se sinta à vontade, uma roupa à sua medida. E a mesma roupa para todos. Pois toda a contradição não passa da ausência de gênio”.

“A paz é árvore que demora a crescer. Tal como o cedro, precisamos absorver muitos nutrientes para construir sua unidade…

Edificar a paz é construir um estábulo grande o suficiente para que todo o rebanho possa nele dormir. É construir um palácio vasto o necessário para que todos os homens possam nele se reunir, sem abandonar nada de suas bagagens. Não se trata de amputá-los para que caibam nele. Construir a paz é conseguir que Deus empreste o seu manto de pastor para receber os homens em toda a extensão dos seus desejos. Assim como a mãe que ama seus filhos. Um deles tímido e terno. O outro, ardente por viver. E o outro talvez corcunda, frágil e indesejado. Mas todos, na sua diversidade, comovem o seu coração. E todos, na diversidade do seu amor, servem à sua glória. Mas a paz é uma árvore que demora a crescer. É preciso mais luz do que eu tenho. E nada ainda é evidente. E eu escolho e recuso. Seria demasiado fácil fazer a paz se os três fossem semelhantes”.

Está-se a viver no Brasil um clima de incertezas, incompreensões e falta de entendimentos, dir-se-ia chaga que se instalou e que destrói quaisquer possibilidades de que a paz e a harmonia prevaleçam. Será impossível chegarmos a uma paz que perdure se em nosso país persistir um clima realmente beligerante extremado. Artigos em jornais e revistas, assim como programas televisivos e redes sociais, estão eivados de posições antagônicas, tantas delas fora dos limites ponderáveis. Homens públicos nos três Poderes se exacerbam em suas colocações. Em entrevistas, determinados “líderes” destilam ódio em relação aos seus opositores. Péssimo exemplo, mormente para as novas gerações, que apreendem o que de pior pode haver para as suas formações cívicas. A moderação e a temperança parecem ter perdido a validade. Sem elas, continuaremos num caminho destinado ao impasse. Falta-nos a observância interpretativa desses termos, tão bem expressa em um Dicionário referencial: “Temperança é a virtude que em todas as acções da nossa vida reprime o excesso, e nos contém dentro dos limites da razão, e da lei: é propriamente o ne quid nimis do antigo oráculo. A moderação rege e governa as nossa acções; faz que vamos pelo justo e direito caminho, não nos desviando para os extremos; indica-nos os limites que não devemos transgredir. E a temperança retifica os desvios, cohibe os excessos, reduz-nos ao caminho, à linha do nosso dever” (“Diccionario da Língua Portugueza”, por Antonio de Moraes Silva, Rio de Janeiro, Litteraria Fluminense, 1891).

The world, troubled by wars and misunderstandings,  is going in the opposite direction to the meaning of the word peace. Brazil is experiencing a period of ideological exacerbations and fierce disputes. When will we return to Harmony between the three Powers, as stated in our Magna Carta of 1968? The present circumstances brought back to my mind Saint-Exupéry’s ideas on peace expressed in his greatest work, “Citadelle”.

 

Paz, palavra sempre evocada e tão desvirtuada

Distanciamento do sentido etimológico

Mas quem pretende prever o destino do cedro que,

de semente em árvore e de árvore em semente,

de crisálida em crisálida se transforma?

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)

(“Citadelle”, cap. XX)

 

Torna-se evidente que o mundo está a viver uma fase acelerada em direção contrária ao significado preciso da palavra Paz. Lideranças não se entendem, voltadas preferencialmente a egos exacerbados. Se alhures guerras entre países e conturbações ocorrem, no Brasil é o esgarçamento das relações entre os Poderes, impulsionado pela acelerada disputa político-ideológica, que contamina mentes e decisões. Não mais temos paz e a harmonia entre os três Poderes, disposta na nossa Constituição de 1968, esvaiu-se, poder-se-ia dizer, quase que por completo. Reza a nossa Constituição, em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Subentende-se autonomia de cada Poder e respeito entre eles. É tão claro esse artigo, assim como o conteúdo da nossa Magna Carta criteriosamente gestada. Em sendo pianista, comparo-a com as partituras dos grandes mestres. Podemos interpretá-las, mas jamais maculá-las.

Essas premissas se fazem necessárias, máxime após a leitura recente do pensamento de Antoine de Saint-Exupéry sobre a paz em Citadelle (cap. XVII), que confesso ser o meu livro de cabeceira há décadas. Na opinião de uma das responsáveis pela edição do livro, sua irmã Simone de Saint-Exupéry, trata-se de “…obra densa e profunda que aborda todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”.

No que concerne à Paz, o escritor e piloto Saint-Exupéry, distante daquilo que hodierna e vulgarmente se apregoa sobre o termo, interpreta-a idealisticamente, com parcimônia, sem arrogância. Citadelle compreende uma experiência de ordem moral e seu personagem central é alegórico, um Senhor, verdadeiro guia espiritual, que transmite em monólogos seus conhecimentos existenciais, onde respeito, humanismo e justiça estão voltados à construção de uma sociedade ideal.

Recolhi alguns trechos que entendo essenciais para a compreensão do pensamento de Saint-Exupéry sobre o tema:

«Não imponho a paz. Se me limitar a subjugar o meu inimigo, estou a alimentar o seu rancor. Trata-se de oferecer a cada um, para que se sinta à vontade, uma roupa à sua medida. E a mesma roupa para todos. Pois toda a contradição não passa da ausência de gênio”.

“A paz é árvore que demora a crescer. Tal como o cedro, precisamos absorver muitos nutrientes para construir sua unidade…

Edificar a paz é construir um estábulo grande o suficiente para que todo o rebanho possa nele dormir. É construir um palácio vasto o suficiente para que todos os homens possam nele se reunir, sem abandonar nada de suas bagagens. Não se trata de amputá-los para que caibam nele. Construir a paz é conseguir que Deus empreste o seu manto de pastor para receber os homens em toda a extensão dos seus desejos. Assim como a mãe que ama seus filhos. Um deles tímido e terno. O outro, ardente por viver. E o outro talvez corcunda, frágil e indesejado. Mas todos, na sua diversidade, comovem o seu coração. E todos, na diversidade do seu amor, servem à sua glória. Mas a paz é uma árvore que demora a crescer. É preciso mais luz do que eu tenho. E nada ainda é evidente. E eu escolho e recuso. Seria demasiado fácil fazer a paz se os três fossem semelhantes”.

Está-se a viver no Brasil um clima de incertezas, incompreensões e falta de entendimentos, dir-se-ia chaga que se instalou e que destrói quaisquer possibilidades de que a paz e a compreensão prevaleçam. Será impossível chegarmos a uma paz que perdure se em nosso país persistir um clima realmente beligerante extremado. Artigos em jornais e revistas, assim como programas televisivos e redes sociais, estão eivados de posições antagônicas, tantas delas fora dos limites ponderáveis. Homens públicos nos três Poderes se exacerbam em suas colocações. Em entrevistas, determinados “líderes” destilam ódio em relação aos seus opositores. Péssimo exemplo, mormente para as novas gerações, que apreendem o que de pior pode haver para as suas formações cívicas. A moderação e a temperança parecem ter perdido a validade. Sem elas, continuaremos num caminho destinado ao impasse. Falta-nos a observância interpretativa desses termos, tão bem expressa em um Dicionário referencial: “Temperança é a virtude que em todas as acções da nossa vida reprime o excesso, e nos contém dentro dos limites da razão, e da lei: é propriamente o ne quid nimis do antigo oráculo. A moderação rege e governa as nossa acções; faz que vamos pelo justo e direito caminho, não nos desviando para os extremos; indica-nos os limites que não devemos transgredir. E a temperança retifica os desvios, cohibe os excessos, reduz-nos ao caminho, à linha do nosso dever” (“Diccionario da Língua Portugueza”, por Antonio de Moraes Silva, Rio de Janeiro, Litteraria Fluminense, 1891).

The world, troubled by wars and misunderstandings,  is going in the opposite direction to the meaning of the word peace. Brazil is experiencing a period of ideological exacerbations and fierce disputes. When will we return to Harmony between the three Powers, as stated in our Magna Carta of 1968? The present circumstances brought back to my mind Saint-Exupéry’s  ideas  on peace expressed in his greatest work, Citadelle.