Frases que Despertaram Reflexão

Em inúmeras oportunidades assisti
a concertos de música moderna,
de lá saindo a pensar:
“Fosse-me necessário pagar o ingresso,
ficaria muito aborrecido”.
Arthur Honegger (1892-1955)

Foram tantos os Ecos de posts a partir de reflexões de leitores! Por vezes, mercê de fatos imediatos que se convertem em textos, há a necessidade de protelar determinados Ecos. A escrita hebdomadária dos posts tem esse fluxo do cotidiano multidirecionado e multicultural. Temas prementes surgem e deles não nos podemos desviar. Assim a pensar,  conceitos emitidos em troca de e-mails com François Servenière a respeito de post  sobre a música contemporânea de concerto, a partir das reflexões de Pierre-Laurent Aimard, tiveram de esperar. Outros aguardam o momento preciso. Tem sido para mim um prazer esse constante “debate” de ideias, que mantemos há mais de dois anos.

O que me faz “ecoar” troca de e-mails com Servenière veio tardiamente de pensamentos surgidos durante meus treinos para as corridas. Controladas as passadas e a respiração, a mente abre-se para ideias que pululam. Lembrei-me de frases de Servenière sobre repertório dito erudito, clássico ou de concerto e concernentes também à música  popular, pop ou outras designações. Sobre as primeiras, relativas às obras de concerto, de hoje e de antão, escreve o amigo: “Elas não são piores que as antigas. São as de hoje, de nossa época, e existem obras primas e também as fracas em todas as épocas”.  Continua sobre a música hodierna: “O turnover de talentos é muito rápido, razão pela qual me apeguei a um estilo mais universal em relação ao que se faz no presente, ‘mercado de guetos’ na psique, como se a vocação fosse apenas satisfazer uma elite intelectual de um milionésimo de indivíduos sobre a Terra, enquanto que a música precedente moderna, romântica e clássica, satisfaz um enorme número de aficionados todos os anos”.

Ainda há pouco li comentário publicado em guia de divulgação musical a considerar uma Bienal de Música no Brasil onde mais de setenta obras seriam estreadas!  Serge Nigg repetiria ampliadamente seu depoimento em Témoignages (nº3), já debatido em posts anteriores, a dizer que ficava pasmo, pois era apresentado a todo momento a novos compositores, como se todos quisessem sê-lo.  A Torre de Babel da atualidade, nesse mister, é real e as tendências que surgem, com rótulos por vezes ininteligíveis, desaparecem logo após para o afloramento de processo outro. A elucubração torna-se tão rápida que a necessidade de arautos bem ou mal intencionados proclamarem determinada “invenção” ou “descoberta” chega a desnortear aquele que busca o conhecimento. Teoria eclipsada por nova tende a ser sepultada sem constrangimento.

Considerando-se o repertório francês para piano, como exemplo, verificamos que compositores que se prolongam pela qualidade, como Fauré, Debussy e Ravel, foram muitíssimo visitados pelos pianistas desde primórdios do século XX, e que alguns que ultrapassaram as fronteiras da primeira metade do mesmo século também o foram, em menos intensidade, casos de Poulenc, Messiaen e Ohana, mas que interessam a centenas de intérpretes. Poder-se-ia dizer que o número de pianistas aumentou geometricamente dos anos 1950 até os nossos dias – consideremos as levas que chegam do Extremo Oriente, hábeis como poucos, geralmente sem ideias como muitos -, e a Torre de Babel faz ver ao mundo, por sua vez, incontável quantidade de compositores. Se atentarmos que os “profetas” da música contemporânea são poucos e mantém sob “tutela” escolas e institutos bem favorecidos pelo Estado, entenderemos que as obras desses “oráculos” são infinitamente menos executadas do que as mencionadas e compostas bem anteriormente em França. Inúmeras foram escritas para piano. Se aumentou consideravelmente o número de pianistas e se essas composições recentes são pouquíssimo frequentadas, há algo errado, “um milionésimo de indivíduos sobre a Terra”, como afirma Servenière. Amplio consideravelmente essa cifra. Diria que esse novo repertório pouco interessa às legiões de pianistas. Será que apenas a autoadoração em círculos bem subsidiados, tantas vezes por polpudas verbas, satisfaz compositores e seus adeptos? O gueto não estaria a dar guarida através do incenso a “criadores” que não atingem nem a mente dos pianistas, tampouco o coração do público? A ininteligibilidade, ou quase, de tantas composições criadas via computador, sem que o autor tenha a noção exata da escrita para piano, não torna tantas obras “intocáveis”, para não dizer estéreis? Se “profetas” da criação hodierna são minimamente executados por intérpretes da atualidade, o que dizer da legião de compositores que se aglomeram na Torre de Babel proferindo tendências múltiplas? Pondera Servenière ao afirmar que “o verdadeiro artista e sua alma são mestres da máquina. Eles a utilizam, mas a tem sob controle. Não são escravos, em oposição a determinados ‘profetas’, estes, possíveis ‘tolos úteis’ do modernismo”.

Em posts anteriores já afirmei que os inúmeros convidados que me honraram ao escrever composições para piano destinadas ao meu projeto  de “Estudos Contemporâneos” (já são quase 90!!!) criaram obras que foram por mim apresentadas. Outros escreveram Estudos e me ofereceram espontaneamente. Ao perguntar-lhes a origem, vinha por vezes a resposta que, após a ideia concebida, foram criados via algum programa de computador. Referi-me em Témoignages a resposta de um deles (Inglaterra) à minha incisiva pergunta, questionando se alguma vez teria ele escrito uma Fuga. A resposta foi contundente: “trata-se de forma ultrapassada” (sic).  

Numa visão do post mortem também verifica-se que o desaparecimento de um desses compositores “profetas” produz efeito de progressiva desativação. A Torre de Babel  vive e a necessidade de atingir pequeno mercado, frise-se, destinado aos seus incontáveis hóspedes, faz com que surja uma espécie de antropofagia. Contrariamente, a morte para compositores da primeira metade do século XX que permaneceram, estaria em conformidade com o pensamento bem preciso de um grande mestre da composição, Arthur Honegger, que considerava que a primeira condição para a sobrevivência de um compositor é estar morto.

Do post sobre Charles Aznavour, Servenière tem conceitos de interesse: “ele escreve seus textos, suas músicas, suas orquestrações e canções, escreve seus textos com método da prosódia francesa clássica, ‘uma sílaba por nota’, que eu também utilizo em minhas canções, método que era aquele de Brassens, Brel e dos melhores autores contemporâneos franceses, Yves Duteil, Maxime Le Forestier, Laurent Voulzy… para não citar senão os melhores”.  Há Torre de Babel também no caso da música popular, pop, rock, sertaneja descaracterizada e tantas mais designações. Está sempre a abrigar novos grupos, a grande maioria de aventureiros. Comenta Servenière: “Os raps, roqueiros, grupos outros agressivos fazem fortuna a partir da violência, do ódio, do sombrio, do nihilismo, temas tão atraentes para grandes vendagens, mas males que conduzem os humanos em direção ao ‘lado obscuro da força’, se quisermos retomar a metáfora de Star Wars. A arte verdadeira, a arte da escritura, da bela prosódia e da melodia bem trabalhada, tudo isso é desprezado”.

Continuemos nossa trilha. Na semana que terá início completarei 75 anos. Motivo para outras reflexões. Família, poucos e sinceros amigos, música, leituras, textos e corridas. O espírito em paz. A saúde agradece.

This post discusses some issues related to the contemporary classical music, such as : the great number of new composers versus the quality of their work, the compositional output of the modern school of music and the impermanence of new trends, lack of popular acceptance of the new classical canon.

              

 

Moussorgsky e a Transcendência da Arte

Os traços mais finos da natureza do homem e das massas humanas,
a obstinação a se projetar em terras inexploradas e conquistá-las:
tal é a verdadeira vocação do artista.

Não recuse o mundo dos poemas curtos.
As obras poéticas de forma curta,
na condição do autor tratá-las conscientemente,
ficam gravadas de maneira imperceptível na memória do leitor,
ligando-o ao poeta.
Modeste Moussorgsky

O intérprete elege os seus compositores. Pelo menos deveria assim fazê-lo. A empatia com categorias do imenso repertório à disposição surge através das identidades que se vão  edificando. Tantos são os intérpretes que não se dispõem a tocar determinados autores movidos pelos mais variados pretextos ou certezas. Há que se respeitar escolhas e gostos.

Da música russa três compositores sempre me interessaram profundamente: Moussorgsky (1839-1881), Tchaikovsky (1840-1893), e Scriabine (1872-1915). Tão diferentes, mas absolutamente russos. Quanto a Modeste Moussorgsky, a admiração vem da juventude, mas, curiosamente, apenas por volta dos 40 anos estudei a monumental obra Quadros de uma Exposição (Tableaux d’une Exposition) e bem mais tarde, a integral para piano, apresentando-a no Brasil, Portugal e, parcialmente (peças avulsas), na extinta Alemanha Oriental em 1989, no ano do sesquicentenário de seu nascimento.

Dos Quadros de uma Exposição (1874) muito se escreveu e dezenas de gravações foram realizadas por intérpretes extraordinários e outros nem tanto. Obra fundamental, tem sido frequentada constantemente por legião de novos pianistas, que encontram na composição uma abordagem pianística nem sempre convencional. Contudo, mais do que executá-la, há a imperiosa necessidade de visitá-la em sua interioridade essencial. Os Quadros… conservam o mistério de uma mente rigorosamente diferenciada e que em vida, tampouco após a morte, pôde ser devidamente estudada. A personalidade de Moussorgsky é misteriosa. Epilepsia,  amores frustrados, poucas amizades sinceras que o entendiam, solidão, álcool em excesso, que o impulsionava ao distanciamento de tantos, ciclotimia a tender mais para um estranho pessimismo. Há em Moussorgsky muitas das características da índole russa, tão bem retratada em personagens que flutuam em Dostoievsky e Tolstoi. Suas missivas àqueles mais íntimos, como Vladimir Vassiliévitch Stassov (1824-1906), crítico musical, arqueólogo e historiador, traduzem a alma conturbada, ingênua – tantas vezes -, criativa e voltada ao coletivo. Estimulador de tantas obras,  Stassov seria o dedicatário dos Tableaux d’une Exposition. Moussorgsky é gênio absoluto e não por outro motivo Claude Debussy o reverenciou da juventude até os estertores da existência. Sob outra égide, o compositor russo permeia inúmeras criações debussinianas, da ópera Pélleas et Mélisande (1892-1902), passando pelas duas obras para piano, Children’s Corner (1906-1908) e La Boîte à Joujoux (1913).

Sensível, Moussorgsky teria ficado abalado e deprimido com a morte de seu amigo, o artista plástico e arquiteto Viktor Alexandrovitch Hartmann (1834-1873), e da amiga Nadejda Pétrovna Opoechinina (1821-1874). A exposição de desenhos, aquarelas e projetos organizada por Stassov causaria forte impacto em Moussorgsky. Relatos de Stassov e do compositor Rimsky-Korsakov  (1844-1908) em 1874 dão mostras dos efeitos catastróficos da bebida que já se faziam sentir. E é a partir desse estado lúcido e ébrio que a monumental criação é erigida. Em poucas semanas os Quadros de uma Exposição estavam finalizados, uma das mais importantes obras para piano da literatura universal. Em Junho de 1874, em plena elaboração dos Quadros…, a carta de Moussorgsky a Stassov é definitiva quanto ao envolvimento com a obra: “Meu caro generalíssimo, Hartmann ferve como ferveu Boris: os sons e as ideias estão suspensos no ar, eu os absorvo, eu me lambuzo, chegando apenas a rabiscá-los sobre o papel. Quero fazer o mais rápido e o melhor possível. Minha fisionomia aparece no intervalo dos intermédios. Até agora, penso que consegui. Dê-me sua benção”. Em todas as Promenades existentes na suíte, Moussorgsky está presente. Em Con mortuis in lingua mortua a evocação do tema se faz acompanhada de trêmulos. Antevisão da morte que permeia a anterior Catacombae (Sepulcrum romanum)? Quanto à ópera Boris Goudonov, é uma da obras primas do gênero. A primeira apresentação se deu no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, em 1870.

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Num desses dias o dileto amigo Magnus Bardela fez-me uma pergunta. O que o levou a gravar os Quadros de uma Exposição de uma maneira até anticonvencional, se considerarmos as inúmeras existentes? Vinha a propósito da intenção de outro caríssimo amigo, Elson Akio Otake, de ver colocado no YouTube o resultado da gravação realizada em 2002 em excepcionais condições, na Capela Saint-Hilarius, na pequena cidade de Mullen, na Bélgica Flamenga, para o selo De Rode Pomp. Condições acústicas absolutas, piano Steinway&Sons vindo diretamente de Hamburgo para o mister e a presença de um dos maiores engenheiros de som do planeta, Johan Kennivé. Ouvindo-os, Elson há tempos me pressionava para “sentir” os Quadros… acompanhados de ilustrações pertinentes. Escolhi-as, juntamente com Magnus, e Elson encarregou-se da montagem.

Primeiramente havia o temático, que tem  norteado meu repertório e minhas gravações. Há tempos debruçara-me sobre a herança moussorgskiana contida nos quadros e que, a meu ver, está presente em La Boîte à Joujoux, de Debussy. Gravei-a em 2002,  juntamente com os Quadros…, a fim de fazer a integração. O CD foi lançado na Bélgica pelo selo De Rode Pomp em 2003. Inclui, em primeira gravação, a Coroação de Boris Goudonov na redução para piano realizada pelo compositor.

Determinados autores que compõem série de obras obedecendo formas definidas, como a Sonata que tanta guarida teve durante dois séculos, apesar de modificações na estrutura, podem ser estudados através do estilo – impressão digital imprescindível -, da evolução esperada que só o tempo faz acontecer e de elementos idiomáticos outros. O conhecimento  mais amplo dessas assertivas leva em princípio à interpretação fidedigna. Em Quadros de uma Exposição estamos diante de um conjunto de pequenas peças que formam um bloco monolítico voluntário, a apresentar situações as mais díspares. Diria que, numa categoria menor, o outro conjunto, o das peças isoladas e curtas de Moussorgsky, formaria um outro ensemble de quadros nascidos com o passar dos anos. O propósito dos Quadros… é único e indissolúvel. Certamente “ferviam” em seu cérebro o impacto da exposição a homenagear saudoso amigo e fatos outros relativos à morte de Nadedja, a repercussão acalorada de Boris e a bebida, a  favorecer metamorfoses imprevisíveis. Tem-se nos Quadros… uma enciclopédia do interior conturbado de um compositor de exceção.

Os Tableaux d’une Exposition é obra pianística autêntica? É-o na aplicação de recursos até inusitados, é-o no vislumbre além da convenção, é-o na infinita riqueza de timbres que dela decorre, é-o na concepção escritural e na extensão dinâmica, a atingir limites extremos. Jamais os Quadros… deveriam ser abordados unicamente com as mãos preparadas. Sob outra égide, jamais mereceriam ser imaginados como criação a ter recordes de pujança ou velocidade batidos. Os Quadros de uma Exposição existem pela qualidade intrínseca da música que deles emana. Quando Ravel, e mais tarde, Shostakovitch e Francisco Mignone tornaram-nos orquestrais, foi pela absoluta riqueza que generosamente Moussorgsky distribui. Curiosamente, o meu primeiro maravilhamento diante dos Quadros… veio, ainda adolescente, da magistral interpretação de Vladimir Horowitz que faz a leitura inversa, em parte, após a versão orquestral de Ravel. Puristas dela não gostam, contudo é impossível ficar indiferente à essa execução única, pois pessoal e intransferível, que não teve  seguidores.

Os Quadros… possibilitaram as mais diversas interpretações ao piano ao longo da história. O tempo total da obra tem variações que são bem elásticas, a depender do projeto pessoal do intérprete,  desiderato, índole, busca do holofote… Necessário entendê-la também a pertencer ao universo lúdico-trágico do autor. Se pensada unicamente como obra de resistência, permanecerá como obra de resistência. Se apresentada como obra de virtuosidade pura, ficará a aparência da verdade, o simulacro. Esvai-se a poética, muda-se o que não se deveria alterar, a essência essencial. Os Quadros… deveriam sempre, em situação sine qua nom, ser abordados de maneira reverencial.

Para a gravação mencionada utilizei-me do fac-simile do manuscrito autógrafo. Nele tudo está contido, as certezas, as dúvidas, rasuras e o correr da pena é o resultado da criação a partir das ideias que “ferviam” na mente de Moussorgsky. Sente-se esse fervilhar. Claro, expresso e paradoxalmente subjacente, a esconder a alma misteriosa do autor. Em duas situações o compositor encobre com papel passagens originais: no imediato retorno à seção A de Baba-Yaga e no longo desenho das oitavas percorrendo o teclado, dimensionando extraordinariamente o tema principal logo após o primeiro coral em piano (baixa intensidade) da Grande Porta de Kiev. Conservei o pensamento primevo e aterradoras e breves oitavas levam ao retorno a A de Baba-Yaga, assim como oitavas não obedecendo escalas descendentes e ascendentes realizadas pelas mãos direita e esquerda, respectivamente, mas a apresentar saltos intervalares na Grande Porta de Kiev. Em artigo publicado nos “Cahiers Debussy” mencionava pela primeira vez que, possivelmente graças aos cantos franceses entoados pela babá de Moussorgsky, o tema de Frére Jacques ficaria conscientemente gravado em sua mente e estaria presente nessa grandiosa abertura da Porta de Kiev (in:”La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Saint-Germain-en-Laye. Centre de Documentation Claude Debussy, 1985, nouvelle série nº 9).

No dia da gravação, dá-se o acaso. Resolvi ir a um parque em Gent antes do primeiro dia do registro fonográfico marcado para as 23hs, a se estender madrugada adiante na Capela de Saint-Hilarius, em Mullem, mágico templo do século onze. Respirava profundamente e observava miúdos a brincar. Corriam de um lado para outro. Lembrei-me do quadro Tuilleries – disputa de crianças após brincarem. Durante anos conhecia uma tradição interpretativa. Contudo, pequeninos não correm obedecendo passadas rígidas. De madrugada busquei flexibilizar as frases musicais, oferecendo pequenos rubatos à sugestiva peça. O lamento do judeu pobre Schmuÿle, a contrastar com a empáfia do judeu rico Samuel Goldenberg, não pode passar sem a enfática lamúria, até excessiva. Está lá, não nomeada, mas sonoramente expressa. A frase musical conduz ao desalento. Quando da Grande Porta de Kiev, a individualização digital para os sinos, sempre tão presentes em Moussorgsky como em Scriabine, evidencia a timbrística inusitada que se faz ouvir.

Dos dez “quadros” de Hartmann, que teriam inspirado Moussorgsky ao construir a monumental criação, subsistem seis. Na gravação que ora está à disposição no YouTube, as pinturas  de Hartmann estão presentes. Para os outros quadros encontrei as adequações necessárias e trabalhos gráficos de artistas como Luca Vitali (1940-2013, sempre in memoriam), minha filha Maria Fernanda (a desenhar o pai através das décadas, sem que ele saiba), Evilásio Cândido, aquarelista, e o saudoso amigo Manuel Martins  (1911-1979), do famoso Grupo Santa Helena, complementam quadros perdidos. A visita ao museu, aquarela de Manuel Martins, está sempre presente nas Promenades nominais. Não teria sido a visita à exposição a origem dos Quadros de uma Exposição? Para Bydlo, quadro que representaria um carro de bois polonês, inserimos quatro magníficas criações do pioneiro da gravura em metal no Brasil, Carlos Oswald (1882-1971), que realizou na Itália belos desenhos e gravuras retratando os carros de carga com suas grandes rodas puxados por bovídeos. Para Il Vecchio Castello encontrei fotos de castelos medievais portugueses tiradas nos anos 1950. Escolhidas as imagens, Elson OtaKe, com a precisão tecnológica que é característica  do amigo, cuidou da edição.

YouTube: clique para ouvir na íntegra os Quadros de uma Exposição

andThis week I’m publishing to YouTube my recording of “Pictures at an Exhibition”, master piece of the Russian composer Modest Mussorgsky inspired by an exhibition of the paintings of his friend Viktor Hartmann, with movements that allude to the painter’s watercolors  drawings. From the ten pictures that inspired Mussorgsky, only six remain and they can be seen in my video. My friend Elson Otake was responsible for the edition and the artwork.

A Perenidade Qualitativa

Je suis devenu français d’abord dans ma tête,
dans mon cœur, dans ma manière d’être, dans ma langue.
Je suis devenu français.
C’est-à-dire que j’ai abandonné
une grande partie de mon arménité pour être français.
Il faut le faire ou il faut partir.
Charles Aznavour
(entrevista concedida a Marc-Olivier Fogiel para a RTL, 28/02/2013)

Nossas filhas Maria Beatriz e Maria Fernanda nos ofereceram um belo presente de Bodas de Ouro e fomos os quatro assistir a uma apresentação de Charles Aznavour no último dia 16, em sala de espetáculo absolutamente repleta. Sabiam de minha admiração rigorosamente inconteste por esse mito da canção francesa desde a época de estudante de música em Paris, de 1958 a 1962. Aprenderam com o pai a também admirar determinados cantores desse período de ouro em que Frank Sinatra, Bing Crosby, Tony Bennett, Amália Rodrigues, Nat King Cole encantavam público outro. Tivemos mais tarde Elis Regina, a única neste país a ultrapassar a fronteira que leva à excelência.

Novo perfil  surgiria com os Beatles, Elvis Presley , Rolling Stones e a ascensão do Rock. Com esse gênero mutante, abrir-se-iam as portas para a elevação estratosférica de decibéis, feérica iluminação, trajes e costumes esdrúxulos, gestuais desconectados para o delírio de multidões que, à la manière da juventude nazista, acenam uniformemente braços acompanhando aos berros os grupos estrangeiros que visitam o Brasil. Outros tantos conjuntos de nosso solo, sejam eles baianos em seus trios elétricos; sertanejos descaracterizados e sem raízes que, em duplas  proliferam neste país; roqueiros para todos os gostos desses distintos bandos de aficcionados. Nesta última categoria, prostam-se diante de ídolos estranhos, fartamente tatuados, que percorrem endoidados os palcos, preferencialmente erguidos em grandes espaços abertos. Dias antes muitos já ficam acampados à porta das bilheterias. Histeria pura.  E a mídia, sempre a faturar, dá imensa guarida a essas “tribus” acampadas antes de eventos caríssimos e coloca microfones entrevistando jovens que, realmente nada têm a dizer. Constatações. A “música”, ou quaisquer outros sinônimos, quiça antônimos, é mero pormenor.

Regressemos a Charles Aznavour. Ao adentrarmos a ampla sala de espetáculos, observamos que parte considerável do público era constituída por cidadãos da terceira idade ou da idade madura. Garantia de que, em princípio, haveria silêncio durante a apresentação, apesar de garçons rápidos e treinados atenderem à clientela sentada frente às mesas. Essa audiência habituara-se desde o passado a respeitar o artista remanescente da “idade de ouro”. E o que ouvimos levou todos à comoção.

Charles Aznavour dispensa comentários. Para aquele que não o conhece mais profundamente, o acesso ao Google mostrará com pormenores a bela trajetória do cantor, compositor, ator e cenógrafo francês de origem armênia.

Ouvimos um mito a poucos dias de seu octogésimo-nono aniversário. Movido por uma energia descomunal e possuidor ainda de timbre vocal inconfundível, durante hora e meia, sem abandonar o palco, Aznavour desfilou canções de seu imenso repertório e não faltaram alguns hits que fazem parte do cancioneiro universal: Que c’est triste Venise, She, Ave Maria, La Bohème

Impressiona o impacto que causa a legendária voz rouca do cantor a seguir a frase musical com impecável rigor. Não sem motivo, Aznavour, ao explicar algumas de suas letras e canções, afirmou a importância do texto para a perfeita adequação à chanson. Aquele precisa possuir contorno, plasticidade, rima para que, acoplada à boa canção, resulte em obra de qualidade, como disse. Implica duas categorias de textos: a poesia, que contém  flutuação “melódica” natural e respiração essencial, necessita de um grande mestre para vertê-la em música, e a letra expressamente concebida para a canção, que se estiola sem estar acoplada aos sons. A certa altura do espetáculo, após individualizar cada um dos poucos músicos que o acompanham na tournée, afirmou que durante muitas décadas teve como pianista profissionais da área, mas que, chegado à atual faixa etária, buscou um pianista “de nível superior” (suas palavras) e encontrou num laureado do dificílimo concurso internacional Fréderic Chopin de Varsóvia o intérprete preciso. Frise-se a alta qualidade de mais dois tecladistas, guitarrista, duas vocalistas, um baterista. Todos em harmonia, sem jamais alcançar nível sonoro insuportável, tão característico dos espetáculos destinados a outra categoria de frequentadores. Frise-se a precária condição acústica do Espaço das Américas.

Assim como comentei a apresentação de outro mito, Carlos do Carmo, fadista impecável, o que se percebe é que o público tradicional da canção respeita a interpretação e o silêncio se faz. Carlos do Carmo, que fora precedido por grupo amante dos altíssimos decibéis em música descartável, exigiu silêncio da platéia que lotou o salão da Casa de Portugal o que de fato ocorreria (vide Carlos do Carmo e a Magia do Fado – Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música, 29/01/2010). Charles Aznavour manteve en suspense um público atento, admirado e entusiasta ao fim de cada peça apresentada. Discreto em seu gestual, sabe transmitir na plenitude o conteúdo que o público dele espera. Suas canções são verdadeiros hinos à vida e ao amor.

Infelizmente, esses grandes artistas da canção estão chegando ao fim. As novas gerações, inundadas pela parafernália do nada e que têm a sustentação integral do Sistema, desconhecerão dentro de poucas décadas o sentido da música essencial destinada a um gênero de musique de variétés.  Poder-se-ia acrescentar que a canção popular perpetrada por tantos artistas de mérito, entre eles Charles Aznavour, continuará sua trajetória a partir de público menor, mas infinitamente mais seletivo em suas escolhas sonoras. Mario Vargas Lhosa, em recente conferência sobre o estágio atual da Arte, entendendo-a por vezes como palhaçada que interessa ao Sistema, afirmou que “se nos dedicarmos à pura brincadeira, a cultura desaparece e nosso mundo se empobrece”.

 After a concert with Charles Aznavour in São Paulo, I couldn’t help comparing the qualities of this French pop legend – good songs, great lyrics, selected audience – to the crappy pop music of today with performers without singing talent, pathetic lyrics, noise, crowds standing up, screaming and waving their arms in a frenzy, sadly concluding that pop music just isn’t what it used to be at the “golden age” with Frank Sinatra, Nat King Cole, Bing Crosby, Amália Rodrigues, Tony Bennett and Aznavour himself and that quality is falling over time.