Livres da Propaganda Eleitoral Durante Dois Anos!

As societies grow decadent, the language grows decadent, too.
Words are used to disguise, not to illuminate, action:
You liberate a city by destroying it.
Words are used to confuse, so that at election time
people will solemnly vote against their own interests.
Gore Vidal (Imperial America, 2004)

A great deal of intelligence can be invested in ignorance
when the need for illusion is deep.
Saul Bellow (To Jerusalem and Back, 1976)

Felizmente vimos-nos livres da propaganda eleitoral obrigatória. Confesso não ter assistido a qualquer programa do primeiro e tampouco do segundo turno, por absoluta desmotivação e enfado quanto à maneira de se conduzir a política em solo pátrio. Todavia, para aquele que ouve noticiário pelo rádio, impossível não ter sido massacrado insistentemente por pílulas de propaganda que surgiam a cada intervalo da programação. Curtas,  perfuravam a alma tamanha a falta de conteúdo, promessas vãs e insultos de toda ordem.

Para aqueles que já viveram muitas décadas, seria possível sentir uma decadência generalizada. Todos os candidatos, sem exceção, friso, inundaram os ouvintes com milhares de promessas. No primeiro turno foi o que mais se ouviu por parte de postulantes à Câmara Municipal e à Prefeitura. Creio que, se fosse concretizada parcela das realizações dessas doses de esperança, viveríamos no melhor dos mundos. O que se viu no segundo turno entre dois candidatos foi a reiteração das promessas e contundentes ataques pessoais. Ao menos em meados do século passado os concorrentes também prometiam – na época, havia menos ilusões a serem transmitidas – e críticas mútuas tinham a “elegância” de um “fugir à verdade” e não as palavras mentira e mentiroso a toda hora ventiladas no presente, essas verdadeiros xingamentos. Ouvimos enxurrada de impropérios, virulentos atentados à dignidade moral do eleitor. Diria mesmo, invasão pelo rádio ou pela televisão. Dois candidatos com nível superior, empregando ad nauseam infamantes palavras. Nunca percebe a classe política que o eleitor mais avisado tem ojeriza absoluta por esse embate de baixo nível. Descalabro que apenas desilude o menos incauto. A enorme abstenção e os votos em branco não seriam o resultado da desilusão? Uma cour de miracles moral. Para o ouvinte apartidário, quem mentiu? Um? Os dois? O sinistro ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, já proclamava que “uma mentira proclamada mil vezes torna-se uma verdade”.

Triste foi a participação de cabos eleitorais, com maior ou menor peso, naquela reta final da campanha. Figuras que preponderam ou tiveram a sua vida pública em passado recente – não considero neste espaço o valor dessas atuações – praticaram a mais rasteira verborragia, não apenas a atacar o adversário como “pontificando” administrações a eles atribuídas. Passado e presente num imbroglio só. Aos apaniguados, elogios ilimitados, grotescos e insistentes; aos adversários, a vala comum, como se houvesse realmente distinção clara entre os políticos! Não se trata de ideologia, mas de levar as “discussões” ao patamar mais baixo do debate. Desacreditam-se uns aos outros. Uma decepção. Ao vencedor fica a aparência da vitória e o fatal início do não cumprimento de promessas que, se reunidas – a totalidade durante o processo inteiro a envolver candidatos à Câmara Municipal e à sede da Prefeitura  - consumiriam o orçamento total da União, friso, total. Ao perdedor, a decepção e o pensar sobre o que fez o eleitor, majoritariamente desinformado, optar pelo “inimigo”.

Outro aspecto, antes crônico, hoje a ultrapassar a barreira do plausível, tem sido o da deterioração do idioma entre determinados políticos, mal a se alastrar por osmose. Sabemos que há aqueles que realmente tiveram pouco convívio com um linguajar ao menos sofrível. Contudo, saliente-se, deveria o homem público, como exemplo para a sociedade, saber expressar-se de maneira ao menos potável, sem insistentes e voluntárias incorreções que, paradoxalmente, passam a integrar o folclore de certos homens públicos. E, mais grave, a insistência no erro, no equívoco, no tropeço gramatical é por vezes erigida como “charme”, característica e até bandeira de políticos que jamais se preocuparam com o conhecimento. É lamentável verificar que certas expressões passam a integrar o cotidiano ou dele saíram. As ruas têm seus trejeitos, a fala e a escrita cultas obedecem a outros critérios. Ao menos deveriam segui-los. Tantos entendem como normais e assimilados os escorregões gramaticais de toda sorte. Essa certeza da permissividade linguística, em que singular e plural se confundem, concordâncias e sintaxes são desprezadas, conjugações arrepiam, elisões proliferam, está a atingir, inclusive, quase todas as áreas. Qual a razão de nossos poderes executivo e legislativo não apreenderem a falar bem? Dirigir-se ao eleitor não lhes dá o direito de desprezarem o idioma pátrio para atingir o “povão” que só não alçou voos na educação por culpa única e exclusiva desses poderes. A recente “reserva” de 50% das vagas nas universidades federais aos que cursaram escolas públicas, sucateadas pelo próprio governo, não é prova inconteste da vontade política de manter nossos universitários em nível inferior? Formará a universidade federal melhores profissionais em todas os domínios do conhecimento? Ledo engano. Tragédia anunciada, não para já, mas certa dentro de poucos lustros. Sob outra égide, que lições do vernáculo não nos deram alguns ministros mais experientes do Supremo Tribunal Federal – friso bem, alguns – nesse execrável e vergonhoso processo a envolver o famigerado “Mensalão”, estampado no Exterior como escândalo sem precedentes!

Não se está neste espaço a conclamar a oratória esmerada, mas apenas o respeito ao idioma pátrio. Os próprios profissionais da imprensa falada entendem natural a elisão que corrompe o vernáculo, acrescida da proliferação de neologismos de moda ou de gírias que contaminam a língua antes chamada culta. Há pouco tempo mencionou-se uma cartilha em que o falar popular, com suas falhas notórias, apresentava-se como futura verdade! A cada ano mais acentuadamente “não é” transforma-se no simples “né”, “José”  em “Zé”, “está” em “tá”, “estou” em “tô”, “espera aí” em “peraí” e as direções das emissoras não ouvem ou não querem ouvir, ou nem chegaram a refletir sobre a extensão do ataque ao idioma. Que as ruas aceitem, nada a fazer, mas nossas emissoras referenciais (em São Paulo três, quatro…) têm de cuidar do nosso idioma. Exceções há, e como é agradável ouvir radialistas que falam com a maior correção ou, então, políticos que se expressam a contento sem empregar palavras injuriosas.

Voltando-se às promessas políticas. Estejamos atentos. A lista das melhorias é enorme. Cumprirão o prometido? Reza a história que, infelizmente, o povo tem memória curta. Tenhamos ao menos o cuidado de registrar essas promessas. Que tudo não fique para as calendas após as eleições, pois promessas, sorrisos, beijinhos, afagos distribuídos fartamente por vereadores e prefeito eleitos desaparecem como névoa. Para os ungidos instaurou-se já, nesta semana, a meta para 2014. Poderemos um dia pensar que o Poder pelo Poder não será prioridade para a maioria dos políticos?  Infelizmente para o cidadão que labuta sem tréguas, nada a fazer.

This post, written on the aftermath of Brazilian municipal elections, discusses the low level of the electoral propaganda on radio and TV, the use of offensive language by candidates, the technology of persuasion used not to enlighten, but to manipulate voters and the widespread decadence of the idiom among our politicians, just a reflection of a widespread disregard for social responsibility.

O Pensamento Crítico de François Servenière

A entidade musical apresenta, pois, essa estranha singularidade de apreender dois aspectos:
existir sucessivamente e de maneira distinta sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música comanda sua vida própria e suas repercussões na vida social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o executante.
Igor Stravinsky 

Nenhuma obra de arte existe sem um sentido,
e o belo parece-me precisamente residir
na realização mais ou menos plena desse sentido.
João José Cochofel 

Em post bem anterior a focalizar a personalidade do compositor e orquestrador francês François Servenière destacava seu pensar e julgamento crítico. O lançamento, em Maio último, do álbum a conter dois CDs com obras do compositor português Fernando Lopes-Graça ensejou Servenière a escrever a crítica analítica das importantes obras nele contidas. Esgotada a primeira edição de Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins (São Paulo, Giordanus, 2011), pensamos, o cuidadoso editor e amigo Cláudio Giordano e eu, numa segunda, a incorporar o novo julgamento e também a corrigir pequenos equívocos de revisão da precedente edição.

Quando da publicação em 2011, François e eu, a partir de laços que se tornariam perenes, passamos a manter uma correspondência semanal intensa. Após a leitura de meus posts, Servenière os traduz na “potável” versão apresentada pelo Google e tece suas considerações. Basicamente, a condição do homem na atualidade; a música e seus caminhos por vezes sem saída e, no caso, minimamente ouvida por nichos tonitruantes; o compositor e o intérprete, suas íntimas ligações e o papel dessas duas únicas entidades que referendam a música, segundo  Igor Stravinsky; o compositor a ouvir o seu tempo, mas imbuído das referências históricas eleitas e o intérprete diante de opções entre os holofotes ou o recolhimento voltado ao aprofundamento; as políticas de nossos dois países, onde a corrupção, tanto em França como no Brasil, está a fazer parte do cotidiano, o que representa uma chaga sem cicatrização previsível; a natureza e suas manifestações voltadas ao belo ou às periódicas catástrofes; o terrorismo que grassa pelo mundo; a insatisfação dos povos; a deteriorização do idioma e… dos costumes; o bem e o mal e, a preponderar, o sentido inefável da família.  

A publicação atual permanece em francês. Teria eu de fazer a tradução. Conhecendo a qualidade vernacular de Servenière, certamente o faria com o maior cuidado possível. Infelizmente, ainda não encontrei a disponibilidade para tal mister, pensando contudo um dia verter suas Réflexions… para o português.

Em tantos posts anteriores frisei a problemática da crítica musical no Brasil,  hoje num impasse autêntico. Aliás, há décadas tenho escrito a respeito dessa quase que absoluta ausência do conhecimento musical por parte da “crítica” ou de articulistas, exceptuando-se raridades, seja no campo da composição, da interpretação ou da análise, entendendo-se, neste último caso, o conhecimento das duas outras práticas, mesmo que limitadas por motivos variados. Sob outro aspecto, a presença constante de não músicos escrevendo assiduamente sobre música tem provocado equívocos sensíveis em textos que dificilmente seriam aceitos alhures.  Não há, por parte de leitores de periódicos ou revistas, o hábito de apontar criticamente essas falhas. Aceita-se o equívoco. Infiltra-se a anestesia. Assim sendo, o simulacro perdura. Nada a fazer, creio eu, a não ser que mentes esclarecidas busquem a competência possível de ser encontrada entre tantos excelentes músicos, digo músicos, espalhados pelo país. A mídia teria interesse em procurar esses esclarecidos profissionais disponíveis? A insuficiência do conhecimento tendo continuação faz com que holofotes se dirijam à mesmice institucionalizada.

Quando François Servenière se debruçou sobre meus CDs, após nosso primeiro encontro em Paris no início de 2011, fê-lo a surpreender o intérprete que aguardava apenas um e-mail que apontasse suas ponderações. Publiquei suas reflexões no segundo semestre daquele ano. Contudo, pequenas falhas de digitação e mais a chegada de uma apreciação sobre o álbum Lopes-Graça estimularam a feitura dessa segunda edição.

A pensar num prefácio para a publicação em apreço, várias ideias vieram-me a mente. A linha coerente de Servenière, igualmente seguida para o álbum Lopes-Graça, tem o olhar  analítico de um lince.  Perfaz-se a unidade que doravante passa a existir, pois a abranger a opera omnia de minhas gravações no Exterior. A importância das considerações pormenorizadas de Servenière, que, segundo amigos músicos da França, Portugal, Holanda e Bélgica, parece ser inédita, pois a abranger o todo gravado por um intérprete, revela, sobre aspecto outro, o pensar enciclopédico do músico.

Incluo, pois, as “Notas a esta edição”, que precedem a segunda edição. 

 “Em Junho de 2012 era lançado em Portugal  o álbum a conter dois CDs inteiramente dedicados às obras para piano do notável compositor nascido em Tomar, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), três delas inéditas em termos de registro fonográfico. Gravei-o em 2010 na mística capela Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica Flamenga. Compareci ao lançamento durante tournée pelo país. Sob o prestígio do selo PortugalSom, os CDs indicam a diversificação  na extraordinária criação de Lopes-Graça.

De Lisboa enviei a alguns amigos franceses e belgas o álbum em questão. François Servenière, após acurada escuta por mais de uma vez, encaminhou-me texto crítico que se vem somar às Réflexions… anteriores. O espírito detalhista do compositor-pensador se, sob um prisma, concentrou-se demoradamente no magistral Canto de Amor e de Morte, cumeeira da criação portuguesa, analisou, sob a égide histórico-sócio-musical, as Músicas Fúnebres e, sob fundamento geográfico-musical,  a coletânea Cosmorama, sem excluir a mínima peça de Música de Piano para Crianças. Todas elas estão focalizadas sob a profunda admiração do músico francês pela obra do grande compositor-pensador português que é Lopes-Graça, sem dúvida um dos maiores criadores do século XX em termos mundiais.

Nesse ano e meio de correspondência semanal chegamos a 500 páginas! Servenière comenta meus posts sobre os mais variados temas publicados no blog e devo a ele não apenas a possibilidade de diálogo com um notável músico reflexivo, mas também uma familiarização ainda mais intensa com a cultura de França. Frise-se que há comunhão quanto ao repertório pouco frequentado e Servenière defende com ardor as ‘redescobertas’ qualitativas que se contrapõem, ou melhor,  juntam-se,  em igualdade de condições, ao repertório sacralizado. Pretendemos um dia publicar nossa troca de missivas internéticas  regulares. Em uma delas tive a alegria de receber as partituras de um monumental trabalho, as suas 50 canções escritas ao longo dos últimos anos. Os quatro CDs que chegaram após dão conta da extrema diversificação no trato composicional desse singular autor.

É, pois, com imenso prazer que apresento a segunda edição ampliada dos escritos críticos sobre minhas gravações, pensadas e analisadas por um músico autêntico”.

This post is about the second edition of Françoise Servenière’s reflections upon my discography (all CDs recorded abroad). This updated edition includes his analysis of my last album with works by Lopes-Graça, released last May in Portugal.

 

Três Filósofos Frente ao Piano


É raro os filósofos considerarem a música
de outra maneira a não ser como objeto de especulação.
É nos seus traços mais gerais,
nos seus caracteres mais permanentes
que a música se oferece regularmente às suas reflexões.
André Souris

O piano de Sartre, de Barthes e de Nietzsche
evidencia que uma tal escolha compromete todo o corpo,
o imaginário e os afetos, além do tempo musical.
Preferência que acompanha a vida pública,
as posições teóricas e políticas de cada um em relação à sua época.
François Noudelmann

São poucos os literatos e filósofos ao longo da História que tiveram intimidade com a prática musical. Há uma constante que faz prevalecer nas escolas a supremacia das letras sobre a música, entendendo-se esta como até “inferior” à literatura ou à filosofia. Os suplementos culturais de jornais preferenciam discussões, comentários ou críticas sobre textos literários, romances, narrativas, poesias, filosofia, sociologia… A música, quando abordada, geralmente o é por não músicos, e esse é um mal que persiste, infelizmente. Se a prevalência literária é fato nas escolas e nos meios impressos, permanentemente buscam os senhores da escrita fazer comparações de tal texto literário com a denominada música ou sonoridade subjacente. Paradoxal? Talvez.

Entre os filósofos, foram poucos aqueles que praticaram algum instrumento, souberam ler uma partitura, analisaram, mesmo amadoristicamente, uma composição. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) chegou a compor e a escrever sobre música, sendo um dos que se envolveu na célebre “Querelle des Bouffons”, quando se confrontou com o compositor e teórico Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Como músico, Rousseau só seria lembrado pelo grande pensador que foi. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) teve educação musical, praticou clarineta e não poucas vezes a música foi mencionada em seus textos filosóficos. Theodor Adorno (1903-1969), pensador alemão, seria crítico mordaz dos meios de comunicação de massa e seus escritos em que a música está inserida revelariam posições tantas vezes radicais e que poderiam externar frustações por ter sido pianista e compositor de predicados menores. Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo e musicólogo (também praticou piano), teve em seus numerosos livros sobre música um sentido solidário filosofia-música, a buscar o inefável como fator importante para a compreensão da obra musical e o mistério não possível de ser desvelado (vide em meu site: Jankélévith e os opostos sonoros em harmonia, na categoria Artigos).

François Noudelmann, escritor e professor da Universidade Paris VIII, ao pormenorizar-se em três filósofos relevantes, penetra em seu universo íntimo e nele encontrará o piano como instrumento motivador de considerações reveladas ou mantidas em segredo (Le Toucher des Philosophes – Sartre, Nietzsche et Barthes au piano. France, Gallimard, 2008, 177 pgs.). Jean-Paul Sartre (1905-1980), Friederick Nietzsche (1844-1900) e Roland Barthes (1915-1980) são os filósofos estudados sob o prisma do envolvimento pouco conhecido que mantiveram com piano em níveis rigorosamente diferenciados, mas a revelar a importância da música em seu universo doméstico e interior. O autor deixa claro que, de alguma forma, o piano fez parte desde a idade edipiana e que o convívio familiar, seja na prática ou na escuta dirigida, teria influência decisiva na incorporação da música como elemento até de equilíbrio para os três filósofos estudados. Frise-se que o piano foi instrumento a preponderar na educação musical na Europa durante o século XIX até a segunda metade do século XX. E de pensar que a ideia do livro nasceu de uma sequência filmada em 1967, na qual Jean-Paul Sartre toca piano na intimidade e justamente um Nocturne de um de seus eleitos, Chopin.

A vida multifacetada de Sartre, filósofo, escritor, partícipe da vida política da França, levou-o a engajar-se em muitos movimentos aos quais entendia necessário seu apoio na Argélia, Cuba, Indochina, Egito, Palestina-Israel, assim como em manifestações da Arte de seu tempo, o que evidencia a penetração em quase todas as esferas da cultura. Esse processo mental “escondia” contudo, publicamente, uma faceta íntima voltada à mais recôndita expressão do romantismo, seu afeto a determinadas obras de Chopin e de Debussy. Considere-se que a mãe de Sartre era prima de Albert Schweitzer (1875-1965), filósofo, teólogo, médico, organista e escritor. François Noudelmann reflete sobre a escuta de obras sacras na infância de Jean-Paul e também sobre a prática pianística num lar que, apesar da ausência do pai, que morreria quando o miúdo começava a existência, não foi desprovido de austeridade, afeto e até certo rigor. A presença da música e do piano essencial percorreria toda a vida de Sartre, apesar da “penumbra” em que procurou manter esse envolvimento. Sobre a maturidade do filósofo, Noudelmann escreve: “Sartre pode descobrir a escritura celular de Stockhausen ou decifrar peças de Messiaen. Era capaz de ler, tocar e interpretá-las. Ledo engano assim pensar! Ao estar só ao piano, tocava mais prazerosamente Chopin que os vanguardistas. Poder-se-ia acreditar que, à maneira dos amadores, esparsamente interpretava o repertório aprendido na juventude. Mas não: Sartre tocava assiduamente Chopin, ainda e sempre!” Estou a me lembrar da influência marcante do pensamento de Sartre sobre os jovens durante meu estágio musical em Paris. Era quase determinante. Li avidamente Les Mains sales, Le Mur, La Nausée, L’Âge de Raison, Le Sursis, Le Diable et le Bon Dieu, La P… Respectueuse, Morts sans Sépulture, das edições Le Livre de Poche. Devorava-os no metrô ou em algum banco de parque parisiense. Discutia com amigos, mas com o passar dos anos a “magia” dessa leitura seria atenuada.

Ao abordar Nietzsche, Noudelmann o situa como aquele entre os três que maior intimidade teve com a música. O filósofo alemão não apenas tocava piano com certa destreza como chegou a escrever mais de 70 composições, muitas para piano, sem originalidade, é fato, mas a conhecer os meandros da composição. Sua obra literário-crítico-filosófica não dispensa incursões na área musical. Elegeu, ao longo de uma vida atormentada que o levaria à demência, compositores determinados. Chopin, Schumann, Bizet, Wagner. Idiossincrasias transparentes fizeram-no mudar abruptamente de posições “sedimentadas”. Do convívio com Wagner e sua mulher Cosima (filha de Liszt e anteriormente casada com o grande pianista e regente Hans von Bülow) houve o fascínio pelo pensamento e a criação de Wagner e o repúdio posterior. Nietzsche envia a von Bülow uma obra para piano a quatro mãos, Manfred-Meditation terminada em 1872.  A crítica severa, cáustica e totalmente destruidora do renomado músico foi decisiva para um afastamento de Nietzsche da “ideologia” wagneriana. Nouldelmann entende Nietzsche um dissidente de sua época. Wagner representaria o moderno. Haveria uma nítida desconstrução de um mito antes aceito. A denúncia nietzschiana atinge toda uma necessidade de supremacia do autor da Tetralogia, a ser imposta através dos processos criativos mas profundamente egocêntricos. Assevera: “O teatro de Wagner tem necessidade de uma só coisa – os Germânicos!… Definição dos Germânicos: obediência e pernas longas… É muito significativo que o crescimento de Wagner tenha coincidido com o aparecimento do Império”. Nietzsche nessa idiossincrasia wagneriana, iria voltar-se às belas melodias de Carmen, de Bizet, e nesse novo “culto” não ficariam desprezadas a sua admiração inconteste por países como Itália, França e Polônia (Chopin), em detrimento da sua Alemanha. Transcreve segmentos de Carmen para o piano. Se Chopin teve lugar reservado entre seus afetos, considere-se que o afluxo musical iria servir, até como inspiração, aos textos literários mais expressivos. Insaciável, houve período em que Nietzsche buscava partituras de Schumann ou transcrições de ópera para realizá-las ao piano. Apenas em período determinado pelo conhecimento de um outro teclado, o da máquina de escrever, Nietzsche transfere sua digitação à novidade. Contudo, o piano seria sempre, frise-se, o companheiro do solilóquio sonoro. O amálgama música-texto filosófico a fazer, contudo, a história ungir o filósofo. Não escreveria: “Talvez Zaratustra pertença inteiramente à música, o que é certo é que ele pressuporia um verdadeiro renascimento da arte de escutar”. Como afirma Noudelmann: “Assim falava Zaratustra é um canto de glória, uma ascensão realizada, a cumeeira atingida após tantos caminhos incertos”. Para os estudiosos, Nietzsche teria de ser entendido nessa dupla atividade unificada de músico-filósofo e, como salienta François Noudelmann, pianista, particularmente. “O piano foi pois mais que um ‘instrumento’ para Nietzsche, não tendo sido apenas um meio de expressão, mas o espaço sonoro no âmago do qual o músico-filósofo definiu seus valores, suas medidas e suas intensidades”, segundo o autor. Num outro sentido, o da recepção posterior (não mencionada por Noudelmann, pois fora do contexto a que se propôs), o compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915) leria com fervor Zaratustra e seria decididamente influenciado pela obra. Suas composições e seus textos místico-filosóficos visando a uma união ideal Artes-Cosmos refletem essa influência. A última fase composicional de Scriabine pode ser apreendida a partir dessa transformação de seu pensar expressa nos escritos literários. Verdadeiro amálgama. Os textos de Nietzsche não teriam interessado Scriabine, igualmente, através da sedução poético-sonora?

Ao abordar Roland Barthes e sua relação íntima com o piano, Noudelmann perpassa as muitas configurações literárias e retóricas do filósofo, crítico literário, semiólogo, sociólogo e escritor francês. O instrumento musical também, no caso, seria partícipe das mais profundas reflexões barthesianas. Esse processo poderia advir de variadas situações. Quando definiu as preferências para emissões radiofônicas destinadas à France Musique, Barthes apresentou o tradicional mais ventilado, como Schubert, Schumann, Dvorak e até Maria Callas a cantar Bellini. Pelas ondas do Rádio confessaria, em instante de empolgação, amar a obra de Schumann. Nem por isso apresentava criações de compositores como Anton Webern (1883-1945). Toda essa atração musical em que o romantismo está presente poderia, paradoxalmente, estar na contramão do semiótico voltado a outros códigos. Assim como Sartre e Nietzsche, Barthes tem o piano como confidente. Elege Schumann em suas investidas pianísticas, a preferenciar as obras mais lentas. Haveria a nítida intenção barthesiana de livrar Schumann de sua coetaneidade e nacionalidade. Considerá-lo “não atual” e “não territorial” não viria ao encontro da célebre frase do musicólogo Maurice Beaufils, que considerava Schumann o mais francês dos germânicos? Num direcionamento que faz sentido, Barthes associaria Schumann a Fauré, Debussy a Ravel. Noudelmann salienta bem a percepção do toque pianístico amador, a visar contudo a realização “fiel” de uma partitura. Importaria mais, no caso de Barthes, uma relação quase corpórea com a música e esta aparentemente se dá na maneira como o pensador compreende compositores escolhidos e na interpretação velada.

Le Toucher des Philosophes tem interesse maior se apreendermos o espaço que os três autores preferenciados proporcionam à música. Se Jean-Paul Sartre receberia até carga genética e desde a tenra infância conviveria com o piano e repertório pequeno, mas escolhido amorosamente, se Friederick Nietzsche tem uma apreensão da música e do piano a beirar o profissionalismo, Roland Barthes captaria, através da sensação corpórea, teclado, som, entendimento, uma espécie de magia singular. Exceção a Nietzsche, Sartre e Barthes mantêm reservas a essas preferências exacerbadas ou íntimas de específico repertório romântico, mormente pelo fato de que suas imagens e ideias públicas já estavam sedimentadas. Na realidade, após a leitura do excelente ensaio de François Noudelmann, nós, músicos, podemos nos dar por redimidos. São tantos os literatos e filósofos que ignoram solenemente a música!

This post is an appreciation of the book Le Toucher des Philosophes (The Philosopher’s Touch), written by François Nouldemann. The French author focus on three philosophers and amateur piano players – Sartre, Nietzsche and Barthes – pointing out that the composers they elected and the music they played indoors are frequently discordant with their philosophical outlook, enabling us to read their inner thoughts and feelings against their musical preferences.