Quantas não São as Vezes

Posso mudar se me penso mudado.
Agostinho da Silva

Mudam-se os tempos,
mudam-se os pensamentos.
Adágio açoriano

Tenho recebido numerosos e-mails sobre o post Texto para Reflexões. Esse maior afluxo viria salientar certa necessidade do homem de pensar nas rápidas transformações da sociedade, que deveria estar a erigir códigos de conduta, e do planeta sob o aspecto físico, a entender que, se não houver uma interiorização de valores “abandonados” ao longo dessas mutações velocíssimas, realmente estaremos em breve frente ao humano ainda mais predatório. Uma tomada de consciência generalizada, utópica talvez, teria de ser globalizada. Para tanto, empecilhos intransponíveis tornam a tarefa quase impossível: intransigências religiosas; terrorismo e guerras fratricidas; corrupção de governantes em conluio, sempre, com empresários; descaso quanto ao outro; não preocupação com a natureza; irresponsabilidade com os problemas das megalópoles, espaços em que o poder imobiliário pouco se importa com o excesso concentrado e o futuro a se pronunciar sombrio; absurdo da produção sem limites da indústria automotiva, que despeja diariamente centenas de veículos em cidades com malha viária saturada; ganância que leva determinadas castas a amealharem estratosféricas fortunas.

Simpático e-mail de um leitor menciona a necessidade do homem de buscar a transformação interior. Lera também o post sobre a responsabilidade. Acrescenta que, para isso, precisaria o ser humano reapreender conceitos que foram esquecidos, pois, segundo o missivista, apenas uma “mudança interior” poderia determinar o caminho coletivo da esperança. Uma espécie de mudança retroativa, mas a ter outra característica ao se pensar o futuro. Portanto, mudança estrutural, onde valores do passado deveriam servir como âncoras seguras para uma sociedade mais humana, a apreender que valores morais e culturais devem ser preservados. Não se confunda com a palavra “mudança” empregada à exaustão nesses tempos recentes por candidatos às prefeituras municipais e que tem única e exclusiva intenção eleitoreira. No caso, mudança a preservar a mesmice.

O Jornal da USP (24 a 30 de Setembro 2012, pg.4), no artigo “Vícios da Democracia”, assinado por Sylvia Miguel,  menciona, entre outras, posições claras de especialistas. Se de um lado o professor Humberto Dantas (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, FIPE-USP) é incisivo ao dizer que “a corrupção está no DNA do brasileiro”, o cientista político Carlos Joel Carvalho de Formiga Xavier (Fundação Instituto de Administração, FIA e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas, Nupps da USP) comenta: “Não acredito que a corrupção no Brasil seja algo cultural, nem irremediável. O grande problema é a impunidade”. Seria possível entender que apenas uma mudança absoluta de ações para o aperfeiçoamento humano através da Educação teria eficácia plena. O drama ou tragédia é que nem governantes, tampouco parte da classe empresarial, gostariam de ver proliferar a tese da Educação. Manter o cidadão na ignorância rende dividendos incomensuráveis e dessa consideração pode-se entender o crescimento dos profetas políticos, que buscam no apoio desse povo desprezado e sem condições de percepção mínima o voto que os eterniza no poder. Nada a fazer. DNA da corrupção existiria não na totalidade da população, mas numa camada expressiva de nossa sociedade. Infelizmente, ela que decide neste país pouco afeito às concentrações populares reivindicatórias. Deveriam estas pleitear a dignidade contra a corrupção, mas para tal haveria a imperiosa necessidade da mudança interior, como bem salienta o leitor. Seria possível? O hipnotismo de milhares de demagogos espalhados pelo país sobre camadas da sociedade menos esclarecidas é quase barreira intransponível.   

Sob outra égide, perdeu-se o sentido da dignidade e as manifestações de Arte, como exemplo, sofreriam rápida degeneração, seja através da grande glorificação do nada como “qualidade intrínseca”, seja pela concentração em nichos de uma “Arte” voltada à ininteligibilidade com poucos mas ferrenhos adeptos. Há dias recebi e-mail contendo link de um pseudo cantor do Extremo Oriente, a vociferar uma “canção” de imprestável teor, mas com mais de 300 milhões de acessos!!! Público incalculável e bestificado o acompanhava. O nada transformado em “tudo”.

Foi a pensar no tema que me lembrei do Soneto nº 53 atribuído a Luís de Camões e constante de “Rhythmas”, cuja edição de Manuel de Lira data de 1595. Nele, o vate maior da língua portuguesa estabelece interpretações da palavra mudança. O instigante artista plástico e escultor português Carlos Nogueira (1947- ) ofereceu-me com dedicatória, em 1981, cópia de um de seus trabalhos que mais leva à reflexão, ” A Camões e a ti”. O terceiro verso do soneto em apreço, “Todo o Mundo é composto de Mudança”, permanece desde então sobre meu piano de estudo. Cada cidadão tem consciência de determinadas mudanças que podem nascer da interiorização. Que elas se direcionem ao sentimento solidário para o bem comum.

 

On the necessity of inner changes to bring outer changes and transform the world we live in a better place.

O Entendimento de Saint-Exupéry

Être homme,
est précisément être responsable.
Antoine de Saint-Exupéry

O post anterior, a tratar do texto Desiderata, de Max Ehrmann, estimulou muitos leitores. Um e-mail em particular chamou-me a atenção por concentrar em uma palavra a apreensão de Álvaro Cabrita Salles. A mensagem, curtíssima, expressava apenas a convicção do prezado leitor de que o texto poético reforçava  incontáveis outras máximas ao longo da história e que estariam resumidas na palavra “responsabilidade”.

Quantas não foram as vezes em que externei minha admiração e fascínio pela obra de Saint-Exupéry (1900-1944), mormente Citadelle, que chegou a ser considerada a Bíblia do século XX. Essa certeza me fez lembrar das muitas interpretações, todas voltadas à elevação do homem nesse caminho em direção ao aperfeiçoamento. Ser responsável, na realidade, capta a essência essencial do ser humano e só poderia ser entendido como algo integral. Entrevistas do cotidiano veiculadas pela mídia tantas vezes apresentam determinado personagem envolvido em quantidade de atos irregulares e amorais, mas que professam, como exemplo, “responsabilidade” em relação à educação de seus filhos. A atitude frente ao significado do termo mostra-se-ia trincada, pois há falha original e a palavra perde substância.

O conjunto da obra de Saint-Exupéry exibe reflexões profundas sobre a condição humana sem subterfúgios e a exposição, não desprovida de metáforas, das virtudes e responsabilidades do homem e o almejo do bem como destino final. Visão utópica? Assim poderia ser interpretada, mas Saint-Exupéry não abandona, nessa longa construção, aspectos fulcrais voltados à dignidade, sem distinção da denominada “classe social”. 

Ao longo de Citadelle, o pensador  francês, como em seus livros mais difundidos, erige um vasto código moral e ético e insere conceitos que perpassarão toda a opera omnia. Dir-se-ia que palavras como fidelidade, amor, solidariedade, comprometimento, dever, verdade, rigor, virtude, fervor, responsabilidade e outras mais concentram a essência que o levará a aplicar suas reflexões em contextos diferentes. Saint-Exupéry não se contentaria em ser apenas o homem de ação que foi. Piloto que praticou a aviação no período heroico dos monomotores que atravessavam o Atlântico e o deserto do norte da África para entrega do correio, entendia os problemas mecânicos mais complexos daqueles frágeis aviões, consertando-os, “inventando” soluções, para que o volume de encomendas, cartas e documentos fosse entregue. O voo solitário tornou-o forte e durante as longas travessias esse imenso catálogo de qualidades humanas foi erigido, muitas delas permanentemente relegadas na atualidade, hélas.

Responsabilidade é tema recorrente em seus livros. Courrier Sud, Vol de Nuit, Pilote de Guerre, Terre des Hommes, Citadelle têm o ser humano responsável como eixo.

Em Le Petit Prince, esse encantador personagem não teria apprivoisé (criado laços, familiarizado) a raposa, a seu pedido? Não diria a raposa “só conhecemos as coisas com as quais criamos laços”? Decorreria dessa ideia a responsabilidade que perdura. Le Petit Prince é a síntese da síntese do pensamento de Saint-Exupéry, pois a concentração desse código moral está explícita num discurso suave e cativante.

Em Terre des Hommes , Saint-Exupéry relata, entre tantos corajosos feitos, o drama vivido por Henry Guillaumet (1902-1940) que ao cair nos Andes com seu monomotor Potez 25, quando a serviço da Compagnie Générale Aéropostale, caminha durante cinco dias e quatro noites  apenas com a jaqueta de piloto numa altitude mortal para as circunstâncias, cerca de 4.000 metros. Esgotado, sabia que se parasse de andar prejudicaria seus amigos. Num esforço absurdo persiste. Prestes a fechar as pálpebras em  incomensurável  exaustão lembra-se de seus companheiros e de sua mulher, Noëlle, que não teria direito ao seguro, pois o corpo poderia ser considerado perdido após quatro anos. Retoma a força interior responsável e caminha incontáveis horas até ser encontrado por camponeses. Trata-se de um dos mais comoventes relatos de Terre des Hommes. Ao final da narrativa poética do drama vivido por Guillaumet, Saint-Exupéry considera a palavra responsável na sua dimensão maior a partir do amigo corajoso, efeito de sua ação: “Sua grandeza é a de se sentir responsável. Responsável por si mesmo, pelo correio e por seus camaradas que o esperavam. Em suas mãos, o desalento ou a alegria. Responsável pelo novo que se constrói  e de cuja edificação gostaria de participar. Responsável, um pouco, pelo destino dos homens na medida de seu próprio trabalho. Ser homem é precisamente ser responsável. É conhecer a vergonha em face da miséria que não depende de si. É ter orgulho da vitória conquistada por seus camaradas. É sentir, ao colocar uma pedra, que contribuímos para construção do mundo”.  

A obra deveria ter o nome Étoile par grand vent, mas teve o título alterado para Terre des Hommes por sugestão de seu primo-irmão, André de Fonscolombe. Tive o privilégio de conhecê-lo e durante quase  dois anos (1959-1960), como relatei em post bem anterior, privei, em Paris, da amizade do Baron de Fonscolombe (André), de sua esposa e filhos. Todas as quartas-feiras  frequentava seu apartamento na Av. Hoche, 4, para ouvir trechos de Citadelle lidos pela irmã do autor, Simone, que estava a preparar a edição da monumental obra para a Bibliothèque de la Pléiade (vide ilustração). No intervalo, tocava algumas obras que estava a estudar com Marguerite Long, amiga do Baron, e o acompanhava ao piano em algumas melodias francesas que gostava de cantar, Fauré, Debussy… Inesquecíveis momentos. Pertencente ao corpo diplomático, Monsieur le Baron partiria posteriormente  para mais uma missão no Exterior.

Se a responsabilidade está a planar em Courrier Sud, Pilote de Guerre, Terre des Hommes e Vol de Nuit, livros com “enredos” compartimentados, mas tendo personagens reais, a palavra adquire o sentido da vastidão em Citadelle, obra una, mas constituída de reunião de textos esparsos que foram criteriosamente organizados. Dir-se-ia que o pensamento de Saint-Exupéry comunga, nessa obra atemporal, com os valores morais e éticos mais expressivos do homem. Em Citadelle, enciclopédia conceitual reflexiva, e no Le Petit Prince, sínteses da síntese, cria o piloto-escritor um ideário abrangente e onírico. O multum de Citadelle teria sua “sinopse” no minimo de Le Petit Prince. O vislumbre do irreal, não apenas no asteróide do menino príncipe, mas nesse reino imaginário de vastos espaços de Citadelle, dimensiona ainda mais as qualidades do grande pensador. E nessa edificação de um mundo utópico – o Templo a ser construído pedra após pedra -, a responsabilidade tão bem lembrada pelo leitor Álvaro tornar-se-ia a bússola que deveria guiar todo ser humano. Estaríamos abertos para a recepção das mensagens de Saint-Exupéry? O homem estaria preparado para esse caminhar pela História em busca do sentido pleno da humanidade? Temos de acreditar, nossa última salvaguarda.

This post is a reflection upon the many faces of the word responsibility in Saint-Exupéry’s works. The subject arose after an e-mail received from a reader, saying that the theme of messages of noble mood – such as the poem Desiderata – may be summed up in a single word: responsibility.

Quando Dias Turbulentos Exigem

Exija muito de ti mesmo e espere pouco dos outros.
Assim ficarás livre de muitos aborrecimentos.
Confúcio

Presenciando escândalos em fase de julgamento; ouvindo promessas impossíveis de serem cumpridas nesses momentos que antecedem as eleições, por todos os candidatos sem exceção; vivendo insegurança quase absoluta, o cidadão comum tem de buscar alívio. Uns o encontram junto aos familiares, outros nas profissões escolhidas amorosamente, outros mais em atividades diversas.

O post Saber Julgar despertou uma série de e-mails, alguns desesperançados, outros corajosos. De leitor assíduo recebi um texto pleno de histórico.

“Rezava” lenda urbana que um texto-poema teria sido deixado anonimamente na igreja Saint Paul, em Baltimore, em 1692, ano da construção do templo. Em data não precisa, um Pastor da igreja teria afixado esse escrito na Old Saint Paul’s Church e o “poema” divulgado e reeditado sem a assinatura do autor, o que significava o anonimato, mas com a data da construção da igreja ao alto. O nascimento da lenda teria nascido de um equívoco. Soube-se que o verdadeiro autor é Max Ehrmann (1872-1945), que escreveu o texto-poema em 1927, publicando-o em 1948 numa coletânea. Denominado Desiderata (plural do termo latino desideratum, ou seja, almejo, desejo) o poema ganhou enorme notoriedade distribuído em folhetos. Estes serviriam também à rede de contra-cultura entre os anos 1950-1970. O texto  foi amplamente divulgado durante o movimento hippie dos anos 1960. Chegou até os nossos dias, já sem a aura lendária, depois da descoberta do autor, mas com intensa carga de mensagem espiritual laica. Possivelmente esse texto-poema não teria ultrapassado a barreira do tempo se o nome do escritor fosse divulgado. Sob outra égide, os frequentadores do templo não teriam verificado minimamente estilos literários do final do século XVII e o vigente na primeira metade do século XX nos U.S.A.

Que o texto mencionado não se confunda com a quantidade de outros escritos e livros que buscam apenas a auto-ajuda. Serviria esse “depoimento”, à maneira do If (Se), de Rudyard Kipling (1865-1936), lido durante gerações em reproduções com as mais distintas caligrafias, ornamentadas e emolduradas em milhares de casas pelo mundo, como um apelo do hipotético “bem”, neste nosso país que tem necessidade imperiosa de encontrar o caminho da moralidade político-empresarial.

Para a tradução busquei a fonte em inglês e várias versões em francês. Nestas, há inúmeras alterações de vocabulário que, sem alterar o sentido, friso, configuram possível atualização. Portanto, explico ao leitor que a versão ora apresentada é quase ad libitum, mas procura manter o sentido do texto original.

Permaneça calmo entre o alarido e a impaciência,
e lembre-se da paz que decorre do silêncio.
Se puder, mas sem renúncia,
viva em bons termos com todos.
Diga o que pensa serena e claramente
e ouça os outros,
tanto os simples de espírito como os ignorantes,
pois eles também têm sua história.

Evite os indivíduos grosseiros e violentos,
são eles tormentos para o espírito.
Não se compare aos outros,
pois, ao fazê-lo, haverá risco de amargor e de  futilidade.
Sempre haverá alguém melhor ou pior do que você.

Alegre-se com o que já foi feito e com seus projetos futuros.
Ame sua profissão, mesmo que humilde;
ela é um bem precioso nesses tempos turbulentos.
Seja prudente nos negócios
nesse mundo pleno de hipocrisia.
Contudo, não fique cego à virtude existente.
Muitos lutam por um ideal
e dão mostras heróicas.

Seja autêntico sobretudo quanto aos afetos.
O amor é permanente como a relva,
portanto, fuja do cinismo que o envolve,
 sinal de amargor no coração e desencanto.
Que a idade lhe traga sabedoria,
fazendo-o renunciar com serenidade aos tempos da juventude.
Esteja forte para enfrentar  as desgraças repentinas,
mas não se destrua a partir de imaginação doentia.
Saiba que muitos medos nascem do cansaço e da solidão.
Afora uma disciplina salutar,
seja gentil consigo.

Você é filho do Universo,
assim como as árvores e as estrelas,
tendo, pois, o direito de integrá-lo.
Mesmo que a ideia não lhe pareça clara,
tudo se passa no Universo como está escrito.
Esteja em paz com o seu Deus,
seja qual for a imagem que dele você tenha.
Através de seu labor e aspirações,
apesar das vicissitudes da vida,
não deixe de estar em paz com a sua alma.

Falsidades, ingratidões e sonhos perdidos
não impedem que o mundo continue a ser maravilhoso.

Mantenha o bom humor. Lute para ser feliz.

An assiduous reader of my blog sent me a poem that, according to the common myth, was centuries old. Only in the seventies its authorship was definitely clarified: it had been written in 1927 by the American Max Ehrmann. This week’s post is a free translation of this prose poem, a reminder of how each of us should approach each day of our lives, preaching tolerance and peace on earth