O Pensamento de Daniel Barenboim

A entidade musical  apresenta pois,
essa estranha singularidade de demonstrar dois aspectos,
de existir alternativamente sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria existência
e os seus efeitos na ordem social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

Não poucas vezes tenho me posicionado sobre o músico completo, aquele que, sendo compositor ou intérprete, desenvolve, por vocação ou por aperfeiçoamento voluntário, a arte de pensar a música e o mundo. Acrescentaria, sob  conditio sine qua non, a categoria do teórico competente que, ao ter praticado um instrumento ou em outra situação, debruça-se acuradamente sobre a escrita musical, a evolução da música através da história e a análise tanto musical como social, atingindo a aura da confiabilidade. Só não pode existir, em termos da arte musical, o subterfúgio, o verniz que encobre a falta do conhecimento aprofundado.

Daniel Barenboim é uma exceção no meio musical. Não apenas um dos mais competentes pianistas de nossos tempos, como notável regente e pensador. Suas interpretações ao piano são referenciais e fogem do livre arbítrio tantas vezes pernicioso. Apesar de seu repertório tecladístico preferenciar uma parcela fundamental das criações franco-austro-germanicas, não há uma só de suas gravações que deixe de transmitir a veracidade possível da partitura e a emoção nela contida. Sob outro aspecto, sob sua batuta o denominado grande repertório já foi visitado e suas incursões nas óperas de Richard Wagner ou nas obras dos contemporâneos Pierre Boulez e Elliott Carter são provas de versatilidade competente, que está sempre a surpreender. Seus conceitos sobre Spinoza, Adorno e Wagner evidenciam o pensador arguto e seus diálogos com o intelectual palestino Edward Said resultaram em livro Parallèles et Paradoxes – avec Edward Said (Paris, Le Serpent à Plumes, 2003).

O livro La Musique Éveille le Temps, de Daniel Barenboim (Paris, Fayard, 2008), aponta para aspectos fulcrais do pensamento do intérprete. Alguns outros textos foram agregados à obra. Pode-se aquilatar o grau de profundidade de seus conceitos sobre música, mormente a complexa área da interpretação em sua essência essencial, naquilo que resultará após intenso debruçamento. Não se atém o livro unicamente à interpretação, e Barenboin discorre sobre seu comprometimento profundo  com J.S.Bach; sua confessa admiração pela criação de Mozart (entrevista); suas lembranças de aprendizado e amadurecimento; homenageia o extraordinário regente Furtwängler; traça seu relacionamento musical com Pierre Boulez; aborda Wagner e a ideologia; e não deixa de rememorar a intensa ligação com o pensador palestino Edward Said e aspectos concernentes à política e ao entendimento entre os homens que professam atávicos e divergentes princípios religiosos, deles decorrendo tanta incompreensão no mundo atual.

Como bem afirma o autor no Prélude, “Não se trata de um livro para músicos, nem para leigos; ele é destinado, preferencialmente, ao espírito curioso e desejoso de descobrir paralelos entre a música, a vida, e essa sabedoria que se torna audível para a escuta pensante”. Num primeiro capítulo Barenboim aborda temas recorrentes e que fazem parte de suas preocupações, como som, silêncio e pensamento. Já teria afirmado que “A relação entre a vida e a morte é a mesma que existe entre o silêncio e música – o silêncio precede a música, sucedendo-a”. O conceito, a envolver o nascimento do som e a sua extinção, magnificamente tratado por Vladimir Jankélévitch nos três livros a abordar a obra de Debussy, adquire, nas intenções de Barenboim, a práxis absoluta através de suas interpretações, que se tornaram paradigmáticas. Traduz-se nesse sentido de entender o encadeamento das frases musicais, dando a cada nota o próprio sentido da individualidade. Para Baremboim, “o último som não é o fim da música e se a primeira nota está ligada ao silêncio que a precede, a última deve estar ligada ao silêncio que segue”. E a partitura conteria toda a complexidade, onde cada nota deverá ter o espírito solidário, ao transferir para aquela que a sucede a missão sequencial. A inteligibilidade das notas que desfilam nessa concepção fraterna fá-lo entender que “se o tempo for muito rápido, o conteúdo advirá incompreensível, pela incapacidade do músico de tocar todas as notas claramente, ou então, do ouvinte de entendê-las; se, ao contrário, for muito lento, também será incompreensível, pois nem o intérprete, tampouco o ouvinte captarão todas as relações entre as notas”.

Pormenoriza as categorias da leitura de um livro e da escuta musical, aquela a possibilitar as associações que se estabelecem através do texto, e esta a necessitar, a partir de cada nota, da tomada de consciência das leis físicas do som, do tempo e do espaço. A acuidade do ilustre  intérprete na captação de todos os elementos sonoros que formam o léxico da partitura vertido para a interpretação aproxima-o do enunciado constante da epígrafe do post.

Barenboim entenderia como equívoco o posicionamento de intérpretes “persuadidos de que a música do passado é atemporal, universal e fonte infinita de inspiração, ao acreditarem que, limitando-se à estreita seleção de obras dos séculos precedentes, terão um conhecimento mais aprofundado”.  O pianista-regente estaria atento à curiosidade que todo músico deve ter em relação à criação contemporânea, que pode, sob outra égide, vir a explicar as obras do passado.

Dedica um capítulo a J.S.Bach J’ai été nourri de Bach. Ter-se alimentado desde a tenra infância de conteúdo essencial da obra de Bach, mormente do Cravo Bem Temperado, deu a Barenboim o sentido sinfônico, pois a polifonia que dela emana estabelece a possibilidade da diferenciação das vozes, a propiciar a leitura tridimensional, como afirma. Como curiosidade mencionaria que Barenboim escreve ter estudado o Cravo Bem Temperado ainda menino, sob influência de seu progenitor. O mesmo se deu em relação ao meu irmão João Carlos, que trabalhou os 48 Prelúdios e Fugas da magistral obra também sob a indicação de nosso pai, gravando nos decênios seguintes a integral de J.S.Bach para teclado. Sob outra égide, meu professor de matérias teóricas e ilustre músico Louis Saguer, não orientaria durante três anos em Paris o seu aluno no sentido de analisar com profundidade, a cada semana, um prelúdio e fuga do C.B.T.? A monumental obra do Kantor seria  paradigma para Barenboim, ensinando, entre outras lições, a independência absoluta de cada um dos dez dedos e a percepção decorrente, que tem tudo a haver com o sinfônico, segundo o  pianista-chefe de orquestra. Essa confessa admiração não teria resultado no futuro regente? Ainda hoje, periodicamente Daniel Barenboim apresenta em público os dois livros do Cravo Bem Temperado, exemplo que, hélas, não parece ter guarida nas novas gerações de pianistas. Nesse capítulo, destaca a prevalência, entre os três elementos básicos da música – harmonia, ritmo e melodia –, da harmonia, eixo paradigmático da composição tonal.

Um dado significativo enunciado por Barenboim e que vem ao encontro de posições que professei em 2001 e ratificadas pelo ilustre musicólogo e saudoso amigo François Lesure, quando de minha gravação para o selo belga da integral para teclado de Jean-Philippe Rameau, diz respeito à interpretação histórica. Escreve o notável intérprete: “Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas é restritivo e não é sinal de progresso”. Lesure escrevera que o anátema lançado pelos puristas não tem mais sentido. Barenboim afirma que “a visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. François Lesure afirmaria que “não é o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. O pianista-regente, ao afirmar que não tem “nenhum problema filosófico com alguém que toque Bach e o faz soar como Boulez, mas sim com aquele que busca imitar o som daquela época”, não estaria a engrossar a legião de músicos conscientes contra a intolerância? Respeita determinados músicos fabulosos que se dedicam à execução histórica, mas aderir ao que ele denomina “movimento” de cunho  ideológico, cerceia a criatividade humana. Todavia, Barenboim está ciente que tem de haver responsabilidade nessa compreensão interpretativa de obras do passado.

Na entrevista concedida à Christine Lemke-Matwey sobre Mozart, um de seus paradigmas musicais, Barenboim discorre sobre a criação, os meios empregados pelo compositor e a extrema fluidez de sua música. Jocosamente, afirma: “Vinte quatro horas com Mozart seriam como um mês com Brahms – e eu nada tenho contra Brahms”. Dessa entrevista em torno de Mozart, uma observação que seria farol de orientação durante a trajetória do pianista-regente. Ao tocar aos 13 anos a Sonata op. 111 de Beethoven diante de júri respeitável na Academia Santa Cecília, em Roma, teve nove votos a favor e um contra, este do grande pianista Arturo Benedetti Michelangeli. O músico italiano teria-lhe afirmado que uma criança não podia saber o que fazer com aquela música. Considera Barenboim: “Fiquei, pois, permanentemente confrontado com a ideia de que é necessário ter grande experiência de vida para ser um bom músico”.

A admiração inconteste de Barenboin pelo filósofo Spinoza fá-lo discorrer sobre princípios do pensamento do autor de Ética - lido pelo pianista quando ainda em seus treze anos -, e a influência duradoura sobre sua maneira de entender a vida e a interpretação. Entende como fundamento essencial do legado de Spinoza o ultrapassar a contradição entre finito e infinito.

Capítulos são dedicados à estreita ligação com o pensador palestino Edward Said, que resultaria na fundação, em 1999, da West-Eastern Divan Orchestra, arquitetada a partir de músicos provenientes de países conflitantes do Oriente-Médio e cuja ação tem repercussão no mundo inteiro, mormente por ser Barenboim de origem judaica, o que provocaria um sem número de incompreensões, apesar da aceitação inconteste por parte daqueles que sonham ainda com uma paz duradoura entre árabes e judeus. Barenboim receberia em 2008 o passaporte palestino.

Em La Musique Éveille le Temps há capítulos fulcrais em que Daniel Barenboim  focaliza com  argúcia características de individualidade na regência do grande Wilhelm Furtwängler, que servem ainda como referências. Discorre sobre sua amizade com Pierre Boulez, compositor que ele admira e que é um de seus escolhidos quando do repertório orquestral contemporâneo. Em sendo Barenboim um dos grandes regentes das óperas de Richard Wagner, um capítulo a ele é dedicado.

Na atualidade é cada vez mais rara a incursão de um intérprete de imenso valor no campo do pensar música. A agitação hodierna quase que impede a reflexão sobre música e temas humanísticos. É, pois, relevante um livro como La Musique Éveille le Temps, ao menos para músicos e leigos de espírito curioso, como sugere o próprio Barenboim. Sob o título “A Música Desperta o Tempo” o livro foi lançado no Brasil pela Martins Fontes em 2009.

On the book “La Musique Éveille le Temps” (Music Quickens Time), written by Daniel Barenboim, pianist, conductor and – exception among musicians – also an intellectual who discusses non-musical issues. In this book he talks about the West-Eastern Divan Orchestra – with Israeli and Palestinian musicians – he co-founded with his late friend, Edward Said, presents topics on Spinoza, Bach, Mozart, Boulez, Furtwängler and, above all, reflects on the duality sound-silence and on how people perceive the universal language of music.The book is an exceptionally talented musician’s foray into the world of sound and the interconnections between music and life.

 

Rememorando outra Viagem de ônibus

Que a imaginação te engorde e a matemática te emagreça.
Agostinho da Silva

Conversava com meu amigo Luca Vitali. O arguto artista lera os últimos posts de uma só vez. Disse ter gostado dos dois sobre as ferrovias, mas provocou-me: “Certamente você deve ter também outras experiências com ônibus de longo percurso, pois lembro-me de um seu post bem anterior.” Uma delas já abordei (vide Experiência que Marcou – Caminho para Varna, 18/07/2009); mas, ao continuar a nossa conversa, lembrei-me de uma cheia de situações inusitadas. Fomos direto a um curto e prolongamos ideias.

Quando na Bélgica, por várias vezes fui a Paris de comboio. Nos anos 90, de Gent a Bruxelas em trem comum, e de lá a capital francesa em TGV. Hoje há confortável linha direta a ligar Gent a Paris. Em 1999, Christiane, uma amiga que trabalhava na Rode Pomp, disse-me que eu deveria fazer ao menos uma vez a viagem em autocar e assim conhecer outras paisagens e também as auto-estradas que atravessam os dois países. Aquiesci e realizei uma dessas viagens, que normalmente duram quatro horas.

Estou a me lembrar que o ônibus saiu bem cedo, quase que lotado, e que cerca de 80% dos viajantes eram árabes do norte da África, pois suas figuras são marcantes. Há dignidade nesses semblantes, muitos deles sofridos. Alguns vestiam roupas próprias de suas regiões, os homens com toucas ou taeias e as mulheres com lenços ou xales. A linha rodoviária por autocar, Gent-Paris, não era diária, daí o afluxo. Christiane, de extrema gentileza, preparou-me alguns sanduíches e uma garrafa de água. E lá saímos em direção à Gare du Nord, eu tendo ao meu lado um jovem francês descontraído, de pequena estatura, tez bem avermelhada, olhos claros. Trajava jaqueta e boné bem surrados e imensa vontade de conversar. Como eu estava sempre a ler e por vezes olhava a paisagem, o companheiro de viagem interrompia a sua fala por determinado tempo, a me proporcionar transitório alívio.

Na fronteira dos dois países o ônibus parou e alguns guardas alfandegários franceses, armados até os dentes, subiram, a olhar com arrogância os passageiros. A certa altura, bruscamente, retiraram o jovem que estava ao meu lado e o levaram com certa truculência ao posto da polícia de fronteiras. Da janela deu para acompanhar policiais segurando com firmeza os braços do infortunado, atravessarem as duas pistas e entrarem no posto. Em nenhum momento senti-o culpado, tal a descontração e a informalidade de uma pessoa absolutamente comum.

Algo de muito estranho deveria estar a passar, pois o viajante lá permaneceu por cerca de duas horas. Não apenas não tínhamos permissão para descer, como nada respondia o policial que ficara à porta do autocar. Inútil dizer que a toilette do autocar serviria como último recurso para básicas necessidades. Após o longo interrogatório, vi o jovem atravessar a auto-estrada escoltado pelos gendarmes, sem que apertassem, dessa vez, os braços do moço. Qual não foi o meu espanto quando um dos agentes entrou no ônibus a impor, de maneira a não deixar quaisquer dúvidas, a nossa saída do veículo, com todos os nossos pertences, inclusive a bagagem do amplo porta-malas. Como estava a ler e a anotar, fui o último a descer, ficando pois no fim de uma extensa fila no posto alfandegário situado na pista em direção a Paris. Tudo, mas tudo, foi revistado. Após uma hora de investigação minuciosa e inóspita, pois bagagens, documentos e as roupas eram verificadas, calculei que ainda teria de esperar uma outra boa hora. Dirigi-me a um dos policiais e mostrei uma carta da Bibliothèque National de Paris, pois teria uma reunião no Centre de Documentation Claude Debussy no dia seguinte. Leu-a sem me olhar, deixou-me livre daquele entrave e não revistou minha bagagem. Ao solicitar permissão para ir ao toilette do posto alfandegário, o policial imediatamente afirmou que teria de me seguir. “Com todo o respeito, não há um certo exagero por parte do senhor?”, disse-lhe. Desconcertado, deixou-me ir não apenas ao toilette como retornar ao ônibus com todos os meus pertences. Exausto, adormeci uma boa meia hora. Ao acordar, senta-se ao meu lado o jovem viajante a sorrir. Afirmou-me que pensaram ser traficante e que estivesse com drogas. Teve de ficar completamente nu. Fizeram-lhe mil perguntas, pois o posto recebera aviso de que aquele ônibus estava com entorpecentes. Perguntei-lhe pelo desfecho. “Tive medo, sofri humilhações, mas não me bateram”, foi a resposta sempre em tom humorado. Contou-me que estava a retornar à França unicamente para buscar novo emprego, após ter permanecido um ano na Bélgica.

Permanecemos quatro horas nesse posto de fronteira. Foi quando abri minha sacola de mão e retirei meus três sanduíches médios. Ofereci um a ele, que imediatamente o devorou. Estava na metade de meu primeiro sanduíche quando o jovem me perguntou se eu iria comer o terceiro. Entreguei-lhe. Antes que terminasse o meu “primeiro”, os dois outros já tinham sido deglutidos por meu companheiro de viagem. Abri a garrafa de água gaseificada de 750cc, mostrei-a ao rapaz e ele nada disse. Após uns goles que acabara de dar, afirmou-me que estava com sede. Passei-lhe a garrafa quase cheia e bastaram alguns segundos para que a esvaziasse. Ainda faltava a barra de 100g de excelente chocolate belga. Ofereci ao alegre vizinho de trajeto, que com forte pressão dos dedos cortou-o e ficou com mais de metade da barra. Da parte que sobrou tirei dois pequenos pedaços, guardando o restante. Minutos após, nova pergunta “O senhor ainda vai comer o chocolate”? Nem respondi, apenas entreguei-o ao voraz “companheiro”. Tenho a certeza que, se café houvesse, teria eu sorte se ficasse com o restinho do fundo de xícara.

O ônibus ainda fez uma parada rotineira em um desses postos de conveniência no meio do trajeto. Chegamos em Paris após oito horas de viagem. Ao se despedir, o sorridente jovem ainda observou “Gostei muito de nossa conversa. O senhor é um velho simpático”. Estendeu-me a mão, cumprimentamo-nos, sorri desconcertado e lá foi ele em busca de seu destino. Fiquei a pensar, que conversa? Eu só entregava a ele o que me era pedido e o moço não parava de falar… e de comer. O certo é que tive tempo de sobra para ler e fazer a revisão dos temas da reunião parisiense. Do que a caridosa amiga Christiane me deu em Gent, bem mais de três quartos ficaram com o vizinho de assento.

Na capital francesa, o fato foi motivo de boas risadas quando narrei pormenores dessa viagem inusitada. Ao final dessa lembrança, Luca, que tem sempre um lápis ou pincel na mente, observou que a viagem de ônibus é a mais solidária, e as pessoas muitas vezes se confraternizam. Dei-lhe inteira razão. Sob outro aspecto, se a viagem fosse sem percalços, não estaria aqui a me lembrar dessas situações inusitadas. Luca me surpreenderia dias após com o desenho que serviu de ilustração. O choque a aguçar nossa memória e imaginação.

My adventures on the road from Gent to Paris with a weird and hungry seatmate.

 

Os 51 Exercícios para Piano de Johannes Brahms

Apele para a inteligência e a razão dos alunos,
conduza seus trabalhos mais com a mente do que com os dedos,
ensine-os a pensar e a se concentrar mais.
Os alunos devem entender claramente
que o importante não é a quantidade de horas
e sim a qualidade do trabalho.
O trabalho puramente mecânico, sem pensamento, é inútil.

Georges Amédée Saint-Clair Mathias (1826-1910)
Recordação de ensinamento recebido de seu mestre Frédéric Chopin

Desde 2007 foram inúmeros os posts em que abordei a problemática pianística, tanto no aspecto da interpretação como no do ensinamento. A transmissão de conhecimentos adquire tipicidade, pois durante os anos de aprendizado as aulas têm um cunho individual, mormente no Ocidente. Incontáveis são os processos de ensino, e contam-se às centenas os métodos publicados desde o período barroco, visando à edificação inicialmente de um cravista e, na sequência histórica, de um pianista. Se considerada for a essência desses métodos, quase todos seguem o desenrolar da história e, geralmente, há quase que parte de um déjà vu. Todavia, se talento houver por parte do autor, alguns processos novos quando aceitos pela comunidade, mercê dos resultados, serão incorporados aos métodos que constantemente enriquecem a bibliografia específica.

Verifica-se que a imensa maioria dos professores de piano no Ocidente dedica-se unicamente às aulas individuais. Se à prática do ensino somar-se aquela da interpretação, essas lições podem ter a configuração coletiva, as famosas master classes, quando o pianista-professor busca exemplificar in loco as intenções que estão a ser transmitidas.

Em termos de Brasil, a nossa literatura voltada à solução dos problemas em suas imensas gradações é pequena, tanto a direcionada ao técnico-pianístico como a literário-analítica, se comparada  com a de alguns países europeus, da Rússia, Japão e Estados Unidos. Apesar de basicamente partirem de acúmulos de outras culturas, louvem-se determinados atributos novos encontráveis em algumas publicações pátrias.

O pianista Nahim Marun tem sólida formação pianística e desempenha com invulgar competência a sua atividade profissional. Teve dois mestres da maior expressão, que foram Izabel Mourão no Brasil e Grant Johannesen nos Estados Unidos, onde estudou durante vários anos. Os longos períodos, em etapas diferentes, sob a orientação de dois notáveis pianistas e professores propiciaram a Marun o embasamento competente. Realizou seu mestrado no The Mannes College of Music de Nova York, doutorado na Unicamp e pós-doutorado na Paris-Sorbonne. Como pianista, Marun tem significativa discografia premiada. Presentemente é professor nos cursos de graduação e pós-graduação na Unesp. Sob outra égide, Marun tem o raríssimo dom da curiosidade, não se restringindo ao ensino ou à atividade pianística meritória, mas a buscar os porquês da problemática técnico-pianística e suas implicações no desenvolvimento de um jovem que aspira a bem tocar. Foge pois de uma mentalidade, hélas, tão presente no Brasil, do professor que tem como meta a preparação de jovens “concurseiros”, o que, em certo aspecto, pode impedir a abertura das mentes desses aspirantes para voos mais altos quanto ao conhecimento musical abrangente e à apreensão humanística.

A técnica pianística tem sofrido inúmeras transformações, mormente a partir da segunda metade do século XX, e o professor atento tem de acompanhar e preparar-se para novas abordagens. Mesmo se a apreensão repertorial fixá-la em períodos históricos delimitados, entender a evolução do técnico-pianístico a partir da tradição torna-se imperativo.

Pois teria sido essa uma das razões de Nahim Marun ter escrito o substancioso livro “Técnica avançada para pianistas – Conceitos e relações técnico-musicais nos 51 Exercícios para piano de Johannes Brahms” (São Paulo, Unesp, 2010). Segundo relatos, Brahms foi bom pianista e percorreu um repertório dos mais fascinantes, que abrangia obras importantes de Bach, Beethoven, Schubert e Schumann, assim como quase toda o sua vasta e complexa produção pianística solo, camerística ou mesmo os dois concertos para piano e orquestra de sua lavra. Essa frequência ao grande repertório publicamente apresentado seria prova inequívoca da competência pianística de Brahms. Todo esse longo caminho a desvelar para o leitor brasileiro o compositor-pianista foi traçado com profunda acuidade por Marun. Menciona comentários da época, que nos fazem captar a familiaridade voluntária do compositor com o piano e a preocupação em legar aos pósteros Exercícios que pudessem servir ao aperfeiçoamento dos pianistas.

Estou a me lembrar de ter conversado com nosso grande compositor Francisco Mignone (1897-1986) sobre os 51 Exercícios de Brahms, logo após o mestre brasileiro, informalmente, ter exemplificado com a mais absoluta destreza, em visita que fizera a nossa casa, determinados exercícios por ele criados que “enroscariam” os dedos de pianistas experientes. Realizava-os em todas as tonalidades e em andamentos bem rápidos, a manter a mesma dedilhação. Disse-me que os “seus” preparavam os dedos para as suas composições, assim como os de Brahms para as dele. O compositor alemão, aliás, igualmente propunha a transposição de seus Exercícios. Nesse item preciso, Marun pormenoriza com atenção a criação desses exercícios e sua aplicação em tantas obras de Johanes Brahms. Os pianistas sabem que há particularidades transparentes na escrita do compositor tedesco. Dir-se-ia que suas obras sinfônicas podem perfeitamente se adaptar ao piano e vice-versa. Brahms edifica um idiomático técnico-pianístico tipificado, onde não falta a presença de sólida densidade estrutural. Quantas não são suas obras que apresentam massa de acordes na configuração vertical ou fluidos, ou a insistência – verdadeira impressão digital – da relação de três figuras contra duas ou, ainda, construções técnico-pianísticas complexas? René Leibowitz não observaria (L’évolution de la musique, Paris, Corrêa, 1951) que, se houvesse a hipotética “fusão” Schumann-Brahms, teríamos o compositor romântico por excelência, pois a fluência natural e a espontaneidade melódica de Schumann se ajustariam a toda a estrutura de sólida confecção proposta por Brahms?

Nahim Marun pormenoriza, embasado documentalmente, as origens dos 51 Exercícios até a publicação em 1893 e a feitura de outros 30 adicionais, posicionando-os ao longo da trajetória. Tabelas  expostas dão a exata orientação ao leitor do histórico de exercícios e estudos ao longo dos séculos, das várias escolas que focalizavam o técnico-pianístico como um todo, assim como a aplicação dos 51 Exercícios na avaliação de Brahms, Pozzoli e Isidor Philipp. É excelente o capítulo 4, “Os 51 Exercícios de Brahms”, em que Marun detalha cada exercício e a sua utilização prática em obras do compositor. Posteriormente encaminha o leitor à destinação de cada um e como realizá-lo.

Farta iconografia, a esclarecer posições corporais e das mãos sobre o teclado, leva o leitor estudante ou pianista à compreensão da importante obra. A visualização dos procedimentos impediria o entendimento equivocado.

Em Le Piano de Marguerite Long (Paris, Salabert, 1959), método, a meu ver, que conseguiu realizar a mais completa síntese dos modelos tradicionais técnico-pianísticos em fórmulas concentradas, a lendária pianista e professora foi buscar exemplos significativos de exercícios através da história. Clementi, Bériot, Hanon, Tausig têm configurações básicas inseridas no método. Os exercícios 8a e 8b dos 51 Exercícios estão presentes na obra, em subcapítulo dedicado aos arpejos, sob o título Exercice d’après Brahms.

Considero o livro de Nahim Marun obra indispensável para a biblioteca de estudantes e pianistas. O entendimento dos 51 Exercícios não apenas  fornece elementos fulcrais à preparação e feitura de tantos procedimentos de Johannes Brahms, como aplica-se à técnica pianística como um todo, dos compositores precedentes aos pósteros que tiveram como material formulações tradicionais, corroborando pois a formação do pianista.

An appreciation of the book “Técnica Avançada para Pianistas” (Advanced Piano Practice Technique), written by the pianist and teacher Nahim Marun, in which he addresses Brahms’ 51 Exercises for Piano. Thanks to Marun’s solid professional background and rare competence, the work allows not only the understanding of techniques related to Brahms’ piano pieces, but also of a great many technical problems found in piano music as a whole. An indispensable reading for both students and teachers.