A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música

Finalement, il faut y insister, le XXe siècle signe, avec la scolarisation massive des filles,
l’accès des femmes à la parole théorique, littéraire et artistique,
et cette appropriation de la culture n’as pas encore produit tous ses effects.
Françoise Thébaud

Em reiterados posts tenho-me debruçado sobre dissertações e teses, aceitando integrar júris no Brasil e no Exterior somente ao verificar tratar-se de trabalho acadêmico original e profundamente estudado, assim também, como premissa, saber quem orienta. Não poucas vezes insisti que de um bom orientador pode-se esperar majoritariamente dissertações e teses consistentes, pois este saberá assistir, ler e estar atento inteiramente às tentativas e aos acertos do orientando. Em contrapartida,  um mau orientador “gerará” trabalhos plenos de equívocos. Há casos em que o “orientando”  está tão acima do mau orientador que o ajuste da bússola dependerá unicamente do candidato. Hélas, pululam maus orientadores por esse imenso país, mercê das avaliações burocráticas universitárias e dos institutos de fomento que glorificam a quantidade sem penetrar no âmago das obras produzidas pelos docentes. Currículos que estariam a demonstrar, em tantos casos, a competência apenas aparente.

Ao aceitar a participação no júri que deveria julgar a tese de doutorado da professora Susana Cecília Almeida Igayara-Souza, já partia do pressuposto que não permite o tergiversar. Admiro trabalhos anteriores da professora, a segurança como coralista e regente coral, a  capacidade como musicóloga e o devotamento pleno à causa musical. Integrei o júri que analisou sua dissertação de mestrado, a versar sobre a extraordinária Missa de Requiem, de Henrique Oswald. Sua orientadora no doutorado, a professora Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, apresenta currículo real e é considerada nos meios acadêmicos.

A singularidade da tese já está expressa no título: Entre palcos e páginas: a produção escrita por mulheres sobre música na história da educação musical no Brasil (1907-1958). Entende-se, pois, ter a professora Susana escolhido a Unidade de Educação da USP.

Curiosamente, na pintura, figuras como Georgina de Albuquerque (1885-1962), Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973) tiveram suas criações respeitadas e ombreadas àquelas produzidas por pintores renomados brasileiros. Mesmo nessa seara, dois exemplos de pressão da sociedade que entendia a criação como domínio masculino estariam a demonstrar submissão da mulher criativa, ou sob o peso do magister, no caso de Auguste Rodin (1840-1917) e Camille Claudel (1864-1943) em França, ou sob a égide da ideologia camuflada em estética, protagonizada por Monteiro Lobato e Anita Malfatti. Ambas sofreriam perenes sequelas.

Se considerarmos que em 1849 o Brasil se tornaria o terceiro maior importador de partituras da França, músicas essas destinadas à prática doméstica ou aos salões, muitas delas transcrições de obras em voga na Europa; se entendido for o país como também forte  importador  de pianos; se a realidade mostraria ser a mulher a prioritária “pianista” familiar, sendo a prática um dos atributos da boa educação, não seria difícil apreender que, no momento em que uma consciência de liberação feminina surgiu, no campo da música ela se destinasse à transferência de prática até certo ponto caseira - experiência viva -, para textos ou livros em que mulheres corajosas depositaram seus conhecimentos e seus aprofundamentos, que já se faziam sentir. Paradoxalmente, movidas por motivos tantos, a área composicional permaneceria, no campo da música erudita, de concerto ou clássica reservada aos homens. Se exemplos existiram da presença de mulher compositora de méritos no século XX, eles foram raríssimos.   

Preliminarmente louve-se Susana Igayara por ter buscado na área musical segmento que poderia ser considerado árido se comparado à composição. Digno da tese e de tantos outros registros essa forte tendência da mulher de voltar-se aos estudos da educação musical em suas várias divisões no período que se estende de 1907 a 1958. Quais não foram os percalços a fim de que a mulher conseguisse sair de uma experiência pianística majoritariamente amadora para esses descortinos que a levaram à necessidade de transmitir o conhecimento, de aprofundar-se em pesquisas que se mostravam nebulosas? Como bem salientou Susana Igayara em sua competente sustentação, à mulher era vetada até  a presença nas orquestras no início do século XX, pois determinados instrumentos não eram considerados pertinentes à sua condição. Sobre outra égide, a mulher prioritariamente buscava o estudo da área musical no ensino superior. Através do Recenseamento Geral de 1940, de 9.650 mulheres com curso superior, seria a Música a ostentar primazia, pois 2.648 se formaram. A seguir vem a área da Farmácia, com 1.841, e Odontologia, a formar 1.225. Curiosamente, apenas 456 homens estariam formados no segmento da Música, segundo o Censo. Essa realidade corrobora a edificação do pensar de Susana Igayara.

Em sua tese, a autora apresenta diversas categorias de textos ou livros sobre música escritos por mulheres. Esses livros teriam como temática a escolarização; o ensino especializado; a formação técnica; a qualificação cultural e artística; a divulgação. A partir dessas várias opções Susana constrói com segurança o seu trabalho acadêmico e figuras que ficaram esquecidas no turbilhão da história emergem e nos causam admiração pela abrangência com que desenvolveram seus escritos naquela primeira metade do século XX. Ao debruçar-se sobre a professora Alexina de Magalhães Pinto, revela-nos o olhar arguto da personagem, que encontraria nas canções de crianças e do folguedo popular e no folclore rico do país farto material a ser tratado literariamente. Alexina tem a chama do pioneirismo. Susana Igayara estuda Amélia Rezende Martins, imbuída da cultura européia, pois oriunda de família aristocrática e voltada à musica. Um de seus livros, apesar de nítida releitura das obras sobre Beethoven de Romain Rolland, lega  uma apreensão do compositor inédita no Brasil. Sua filha, Maria Amélia, foi professora e excelente pianista.

A primeira metade do século XX assiste ao desabrochar desse olhar atento à educação musical de jovens, assim como um cuidado especial ao repertório. Se a França continuaria a ser um espelho, mormente nos primeiros decênios, frise-se o debruçar sobre o nosso cancioneiro popular e o rico folclore pátrio. Emerge a figura de Heitor Villa-Lobos, que estará a frente de tantas decisões educacionais do Estado. A mulher terá participação decisiva, a atuar como professora, e a denominada normalista seria referência nessa transmissão. Nomei-se o Canto Orfeônico, que seria fundamental a esse aprendizado coletivo, e grupos ou mesmo massa de participantes davam, inclusive, o viés ideológico claro no Estado Novo. Como sempre à testa, como mentor institucional, Villa-Lobos. Susana Igayara observa bem essa “missão” atribuída ao autor das Bachianas. Canto Orfeônico e Canto Coral, temas relevantes que a autora soube bem distinguir, a evidenciar, por vezes, a vontade no período de os ter como quase sinônimos.

Duas figuras emblemáticas são estudadas nesse mister voltado à formação de professores e à condição da mulher a lecionar: Leonila Beuttenmüller e Ceição de Barros Barreto. Autoras de livros publicados no final da década de 30, apresentavam características bem definidas, a primeira ainda a guardar uma tradição onde não faltaria até envolvimento “onírico”, a segunda já a apontar para caminhos que mais acentuadamente conduziriam aos trabalhos acadêmicos, hoje essenciais. Acompanhar embates de Ceição de Barros Barreto com a hierarquia da Instituição é verificar prática que apenas se propagaria posteriormente. Frise-se a produção literária musical da professora, que se estenderia de 1930 a 1950.

A presença do Palco reservado à mulher artista é devidamente estudada. Em sendo o piano o instrumento referencial desde meados do século XIX, dedilhado preferencialmente por mulheres, tornar-se-ia evidente que as três extraordinárias pianistas que ocuparam a atenção no Brasil e no Exterior pertencessem a essa majoritária faixa de praticantes. Antonieta Rudge (1886-1974), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979) encantaram com suas interpretações de altíssimo nível platéias pelo mundo. Registros fonográficos evidenciam a qualidade das três expoentes da arte do piano. Contudo, Susana Igayara detém-se igualmente na arte do canto, com figuras como a excelsa cantora Bidu Sayão (1902-1999) e as notáveis Vera Janacopoulus (1892-1955) e Madalena Lebeis (1912-1984). Menção a Cleofe Person de Matos (1913-2002), regente coral, professora e musicóloga, assim como a tantas outras intérpretes de mérito, a ratificar, em sua tese, o multidirecionamento e a importância da mulher na música brasileira.

Três pianistas que se dedicariam ao texto como veículo maior de suas intenções são apresentadas por Susana Igayara. Victoria Serva Pimenta, aluna de Luigi Chiafarelli, sistematiza em livro  o seu método de ensino; Sofia Melo Oliveira publicaria uma quantidade de textos, a evidenciar o papel preferencial da análise para o conhecimento amplo musical; Iza de Queiroz Santos é autora de obras que ainda hoje são referências, caso específico de Origem e Evolução da Música em Portugal e sua Influência no Brasil (1942).

A tese não deixa de considerar algumas biografias escritas por mulheres sobre personalidades da música brasileira: Iza Queiroz sobre Francisco Braga, Leozinha de Almeida sobre Henrique Oswald. Outros relatos biográficos são mencionados. Durante minha arguição, ponderei a problemática da biografia escrita por admiradoras confessas de músicos estudados, mormente se houve relacionamento musical intenso professor-aluna, compositor-intérprete. Quando escritos sur le tard, esses trabalhos podem adquirir a aura fantasista e dados correriam o risco de ser contestados à luz da evidência. Seria também o caso da legendária pianista francesa Marguerite Long ao escrever, em três livros, suas relações pianísticas com Fauré, Debussy e Ravel.

A tese de Susana Igayara será doravante referencial, pois à quantidade de documentação apresentada soma-se a alta competência vocacionada da autora. Esperemos, que após devidas adaptações visando à publicação destinada a músicos e ao leitor menos especializado, o significativo estudo de Susana Igayara seja essencial para próximos debruçamentos sobre a matéria, que resultarão em novas dissertações e teses, a sedimentar a importância da mulher na cultura musical brasileira no século XX.

A banca examinadora, presidida pela Profª Drª Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da USP, teve a participação dos professores-doutores Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (F. de Educação-USP), Anibal Francisco Alves Bragança (Universidade Federal Fluminense), Maura Lucia Fernandes Penna (Universidade Federal da Paraíba) e este, aposentado da Universidade de São Paulo.     

Comments on the PhD thesis defended by Susana Igayara at Universidade de São Paulo. It is a historical study that aims to situate and analyze the written production of women about music, related to several educational contexts in Brazil, during the first five decades of the 20th century.

Respondendo a Questionamentos

Pour l’auditeur, l’interprète et l’auteur se confondent aisément, même s’il croit les distinguer.
Au fond, l’auditeur se préocupe peu des intentions de l’auteur et ne s’arrête qu’à ce qu’il entend.
André Souris

Não encontrava Maurício desde os tempos em que ensaiamos nos anos 80 para uma apresentação piano-orquestra. Lembrava-me dele, pois um dos raros jovens a me pedir orientação quanto a algumas intenções da obra que estava a ser preparada. O acaso motivou nosso encontro em um corredor de supermercado. Era Maurício um dos instrumentistas do conjunto. Toquei àquela altura um concerto de Mozart. Aliás, minhas apresentações com orquestra foram raras, dado o caminho que empreendi ao longo da trajetória, a buscar o inusitado para piano solo. Contudo, a razão do post foi a quantidade de boas perguntas que o músico, nessa ainda juventude da idade madura, me propôs. Continua ele a dar aulas e a integrar várias orquestras em São Paulo, da mesma maneira que parcela considerável de nossos instrumentistas.

Como de hábito, ao encontrar alguém disposto a desenvolver uma conversa salutar, proponho logo um curto em café nas proximidades de meu reduto. Lá fomos nós e permanecemos por mais de meia hora a comentar interpretação. As perguntas, brotadas de mente inteligente, foram a respeito da interpretação e do solista frente à orquestra. Integrante de uma estante nos vários conjuntos em que atuou ou atua, sente entre os mais variados solistas distintos posicionamentos diante de obra executada. Tendo percebido  desde o início de seus estudos que seu amor à música era inconteste, apesar de também entender que seu destino deveria ser a orquestra,  Maurício aprendeu a ouvir e a sentir reações, não apenas de seus pares, mas dos convidados solistas. Esse é um dom notável, e fiquei atento às suas ponderações. Perguntou-me o que entendia por categorias de intérpretes. Enumerou-as:  aqueles em que o gesto é primordial, pois sabe o executante que considerável segmento do público acredita que movimentos faciais ou corporais têm tudo a ver com envolvimento por inteiro; outros em que a virtuosidade se torna o essencial e os movimentos bem rápidos por vezes levam os músicos da orquestra a sérios problemas para acompanhá-los, mal se importando o “star” com essa situação; e outros mais, em que o executante é poeta e o que mais o preocupa é a condução da frase musical. Acrescentou o instrumentista “e aqueles que tocam com precisão, mas dando a impressão de desinteresse”, a seu ver os solistas mais maléficos em relação à música, pois que, garantida a notoriedade, “aprofundam-se” em uma rotina sem volta.

Confesso que me causaram impacto suas considerações, que vinham ao encontro de diversas concordâncias de minha parte, já expressas em inúmeros posts nesses últimos quatro anos. Mas, a atender seu propósito, teci lá minhas opiniões relacionadas a essas várias categorias pensadas por Maurício.

O gesto. Quão não foram as vezes em que mencionei o gestual excessivo a causar impacto à platéia leiga, até como um desrespeito à essência da música? Estou sempre a me lembrar do insigne pianista Claudio Arrau que, na idade madura, entendeu que o necessário a ser transmitido aos ouvintes consistia na integridade absoluta da música e não no visual. Seria possível entender que, na fase erótica da existência, o gesto excessivo corresponda a ímpetos naturais. Mas vem a maturidade. Se o gestual permanecer exacerbado, haveria outras explicações, até de ordem psicológica. Contudo, a austeridade não monástica, mas espontânea, poderá um dia ser a constante de uma interpretação integralizada, a adquirir  transmissão essencial. Cabe ao intérprete cuidar dessa interação. Disse ao Maurício que, sob outro aspecto, o esportivo, assisti a um ótimo jogo de vôlei que decidia o Circuito Nacional. Jogavam em Belo Horizonte Cruzeiro e Sesi. Um muito bom jogador do Cruzeiro, Felipe, não apenas incitava os torcedores do Cruzeiro a cada ponto que sua equipe fazia, levando-os ao delírio, como transmitia, por osmose,  essa atitude aos adversários. Do lado do Sesi, absolutamente impassível nas feições, Murilo,  considerado o melhor jogador do mundo no ano passado. Sem gestual desnecessário, fazia seus muitos pontos para o Sesi, que se sagrou campeão. Quão não são os intérpretes, bons ou excelentes, que não se beneficiam de gestos, à la manière do excelente Felipe? Quantas não são as vezes em que o público que frequenta os mesmos repertórios não se impressiona com o visual em detrimento da música? Quantos outros não admiram o envolvimento e a precisão de personalidades como a de Murilo?

No caso específico do virtuosismo pelo virtuosismo, nada a fazer, apenas se mentalidades forem alteradas. Maurício asseverou que não são poucos os solistas voltados à virtuosidade que “puxam” o andamento de determinadas obras, não o fazendo durante os ensaios, mas sim quando os holofotes incidem sobre eles no momento da apresentação. Também no caso, instrumentistas que estavam habituados a determinado andamento e que assim se prepararam, por vezes são impelidos à aceleração. Nem sempre um bom regente pode “segurar” o intérprete desenvolto, qual um potro em descampado, pois este está preocupado unicamente com a sua performance. Foi quando Maurício comentou o lamentável episódio da Orquestra Sinfônica Brasileira, OSB, e a situação que dirigentes criaram a constranger instrumentistas responsáveis à prova de aferição. Desfile de prepotência e vaidade. Conversamos a respeito dos “superiores” na hierarquia que estabeleceram esse estranho encaminhamento, quem sabe movidos por idiossincrasias pessoais com determinados músicos da orquestra. Luminares internacionais teriam mais respeito… Não nos esqueçamos da célebre frase de Saint-Exupéry, “a vaidade é uma doença”. Como se sentirão os “selecionados” aprovados? Qual a certeza que poderão ter de não passar brevemente pelo mesmo constrangimento?  Em post anterior, o Maestro Roberto Duarte, que une altíssima competência a profunda apreensão humanística, já observava com serenidade o lamentável affaire da OSB (vide Desrespeito Endêmico – Cidadão, Figura Indefesa, 12/03/2011).

Há o intérprete poeta. Ele existe, geralmente fora da ribalta do aplauso fácil. Chega a comover público e membros da orquestra. Tem a plasticidade e a humildade de ser solista, mas a entender as orquestras e ser por elas entendido. Por fim, Maurício apontou para o intérprete da rotina, preciso mas sem interesse. Hélas, ele também existe. Nesse caso, nada a fazer, apenas lamentar ter ele escolhido uma senda enfadonha. 

Finalizávamos esses conceitos quando Maurício olha para o celular. Os horários são implacáveis. Ensaios o esperavam. Bom sentir um músico que pensa tão argutamente em problemas essenciais que reiteradamente passam ao largo da maioria.

A few days ago I had a chance meeting with an orchestral musician I hadn’t seen since the eighties. At the time he took part in an ensemble and we played together a Mozart concerto. While taking a cup of coffee we talked about soloists and their distinctive ways of performing when standing in front of an orchestra. Some interesting issues have been discussed and I sum them up in this post.

Betho Ieesus

 

Azul, azul do céu
Onde meus olhos se perdem
Onde longe é azul
Intocável azul
Azul da andorinha
Calor
Longe
Ao longe
Betho Ieesus

Estava a estudar quando tocam a campainha. Atendo meu amigo e vizinho Alberto, cujo pseudônimo é Betho Ieesus. Trazia-me impresso seu livro de poemas que acabara de chegar às suas mãos, A Casa de Vidro (São Paulo, Sun Trip, 2011) Conhecia-os todos, pois escrevi o prefácio movido pelo interesse inusitado que as curtas mensagens imbuídas de carga poética me proporcionaram. Conversamos um bom momento a respeito não apenas da feitura gráfica do livro, como das fiéis reproduções dos desenhos de Betho Ieesus nele contidos. Brevemente haverá o lançamento, que poderá ser acompanhado através de seu site www.bethoieesus.com.br. Entendi oportuna a inclusão no post da semana do prefácio de A Casa de Vidro, coletânea de seus poemas. Ei-lo:

Betho Ieesus é figura singular, entendido na multiplicidade curiosa de seu pensar. Poucos têm vários dons e apreendem  a multiplicação. Engenheiro de áudio, pintor, cantor, instrumentista, poeta e conversador polêmico. Em todas as atividades a que se propõe deixa a marca de seu entusiasmo. Na área artística atua sem culpa por mim, palavras suas tiradas de outro contexto, mas que bem poderiam ser transplantadas para o todo de seu multidirecionamento. Betho Ieesus consegue interpretar a vida de maneira crítica, sem perder o humor.

Conhecia alguns de seus quadros, onde não faltam alusões permanentes à musica e ao violão, seu instrumento eleito. A visão pictórica forte não despreza a subjacente reverberação sonora, razão basilar de seu desempenho profissional. Quando se projeta no canto, acompanhando-se ao violão, interpreta sua dupla criação música-poema com uma voz plana, mas não desprovida de interesse. Há tantos exemplos entre cantadores cult consagrados pela mídia que assim desfilam seus repertórios. Percebe-se que busca transmitir a dupla mensagem com sinceridade, sem qualquer empáfia. Letra e música de seu CD Hora Absurda traduzem a inquietude social, mesmo que a realidade do cotidiano tente mascará-la.

Betho Ieesus reuniu vários de seus poemas,  ilustrando-os  com desenhos de sua lavra. Nasceu A Casa de Vidro. Se há nítida admiração pela poesia concreta, se Ieesus é cultor desde sempre de Fernando Pessoa, há certamente ascendências em seu trato poético. Os curtos poemas, contituídos tantas vezes de frases aparentemente sem lógica, se relidos justapõem-se como em um jogo mental de puzzle. Para o leitor apressado ou para o menos avisado, essas frases pareceriam sem nexo. Contudo, uma soturna coerência paira no todo dos 63 poemas.

Diferentemente da visão onírico-nostálgica de Chico Buarque, denuncia a violência à espreita em “A Janela”: As janelas perderam seus vigias/Senhoras que viam o tempo passar/Moças bonitas esperando um belo olhar/agora… a ausência/A grade que impede o olhar.  É-lhe preferencial o tempo, esse passar inexorável em “Olhos que Passam”: Pessoas passam/Como sempre passam/Passarão novas pessoas/Olhando passarão/Olhos fundos/Olhos que passam/Que sempre passarão. A ritualística na significativa metáfora em “Chuva”: … A chuva que passa/Estendida pelo chão/Esquartejada pelas rodas…  A sempre preocupação com o tempo cronológico no poema “Página”, quando Ieesus amalgama físico-mente : Meu tempo de voar é agora/Nem antes ou depois/Já voei com asas/Já voei com a mente/Agora com asas e mente…  Johan Kennivé, o magnífico engenheiro de som da Bélgica, confessava-me que o silêncio é seu equilíbrio para transportá-lo às incontáveis gradações sonoras que compõem seu universo musical. O triângulo de Betho Ieesus é preciso e revelado em “Pedra”: Bater na pedra/Rebater/contar/No canto das pedras/Silêncio/Música/Deus. Sob outra égide, um brincar com as letras daria bem a medida da “Rua Direita”: “Calça ali/Calça leve/Calça aqui, breve/Caça ali/Caça leve/Caça apenas Caça/Breve”. O quebra-cabeça não tem peças basicamente idênticas ?

O lúdico como elemento inseparável vaga por vários poemas. Reminiscências do “Balão”: Colorido balão/Habite meus pensamentos/Volte de lugar nenhum/Dos lugares por aí/De visitar tudo/Sem nunca precisar esquecer. Mais acima do espaço baloneiro vem “Culpa”: Céu de estrelas/Longe cidade/Céu aberto/Um milhão de estrelas/Olimpo/Lá conversam sobre o homem/Lá na terra das estrelas/Nos palácios cheios de infância/Onde vi a estrela cadente e pedi/Pedi por mim/Sem culpa/Por mim.

Um poema é dedicado ao “Violão”, seu instrumento eleito. Ele, Betho, aluno do saudoso Henrique Pinto: Tenho um violão que brilha/Enquanto velho perde a cabeça/Toca coisas para dentro de mim/Sujeito cheio de coisas/Ensina a viver dentro de mim.

Segue Betho Ieesus seu caminho. Por vezes parece-me um sonhador, ou aquele que tudo observa, ou um conquistador de horizontes imaginários. Para quem for à leitura de seus breves poemas, a releitura dará sempre um novo sentido. Um puzzle em movimento, sempre à espera da peça que falta.

Betho Ieesus is a multi-talented artist: sound engineer, painter, guitar player, composer, singer, writer. I’ve in hands his just published book “A Casa de Vidro” (The Glass House), a selection of some of his poems illustrated by the author himself. Short free-verse poems, showing influence of the concrete poetry. I see them as “puzzle poetry”: provocative and often making readers experience a baffling effect, until new readings unravel the secret and one finds the missing piece.