Quando a Surpresa Encanta

Mas é muito difícil você não dar tudo que pode numa corrida, tentar segurar um pouco.
Estar cercado por outros corredores tende a exercer uma influência em você.

Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais:
essa é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida.

Haruki Murakami

Reiteradas vezes tenho divagado a respeito das corridas e do bem que elas proporcionam. Na realidade, qualquer atividade esportiva praticada espontaneamente, sem pressões e com o espírito descontraído faz bem ao todo corporal e, por consequência, à oxigenação cerebral e, a finalizar, ao espírito. Tem de ser prazerosa, caso inverso deixa de trazer o bem-estar que sempre deve ser integrante do todo harmônico.

A minha participação nas corridas de rua patrocinadas por algumas organizações tem sido solitária ou, quando das provas de revezamento, com os integrantes de nossa equipe nipo-brasileira, bem mais nipo do que nacional, a TA LENTOS, grupo homogêneo e de bem com o mundo. Não seria essa a razão essencial de nosso congraçamento?

Pois veio a Meia Maratona Corpore-Netshoes, realizada no último dia 10 de Abril no campus da USP. Poderia “eventualmente” realizar a prova de 21km, correspondente à meia maratona, mas a mesma implicaria – mercê de minha faixa etária – treinos acentuadamente mais prolongados e desgastantes, aspectos reais, dificultando o vislumbre dessa distância. As três corridas de São Silvestre (15km) representaram meu limite agradável e desafio constante para os próximos anos.

Para o evento, a Corpore ofereceu corrida curta de 5km como alternativa. Tendo minha neta Ana Clara transmitido a vontade de participar pela primeira vez em uma prova, inscrevemo-nos com raro prazer. Já estava ela a praticar esteira em distâncias variando de 3 a 4km.

Veio a corrida e, surpreendentemente, surge também minha filha, Maria Beatriz. Foi redobrada alegria. Sabia que nadava mil metros, três vezes por semana, mas apreendi que treinou com disciplina durante breve período. Disse às duas que, se sentissem cansaço, deveriam andar um pouco, a fim de retomar o fôlego, reiniciando após o curso normal.

Saímos juntos e assim permanecemos durante uns bons 5 minutos. Logo depois, minha filha pediu para que continuasse com Ana Clara, pois queria manter o seu ritmo. Lá pelos 3km, foi a vez da neta dizer o mesmo.

Qual não foi a imensa alegria ao nos encontrarmos no final da prova, com pequenas diferenças de tempo, mas com o sorriso pleno da realização. Uma surda emoção teve o pai e avô ao saber que as duas correram sempre, mantendo seus ritmos, e gostaram. Três gerações que poderão, em eventos vindouros, estar novamente a desfrutar da mesma intensidade.

Ao final da prova, na arena montada pelas organizações, permanecemos ainda mais de uma hora, captando a atmosfera saudável de todos os participantes que integraram essa corrente humana que busca na corrida uma interação com a vida salutar. Observaram filha e neta que não viram uma só pessoa que estivesse com sentimento outro que o da descontração prazerosa. Transparece, e isso tenho reiteradas vezes comentado. Uma das razões de minha adesão plena a essa atividade esportiva, a mais democrática que existe, pois o praticante não necessita de “absolutamente” quase nada: tênis, meias, calção, camiseta e a vontade imensa de estar a “curtir” momentos que não serão esquecidos.

Fiquei a rememorar provas anteriores. São muitos os grupos temáticos formados por dois ou mais corredores que participam utilizando uma camisa padronizada, a focalizar a origem dos atletas amadores. Integrantes das mais variadas associações ou empresas estão imbuídos dessa centelha que leva à qualidade de vida. Reunem-se em algum espaço antes das provas e pode-se perceber que realizam alongamentos disciplinados. Há também inúmeros grupos formados e dirigidos por profissionais, que armam as tendas e dão suporte técnico e outras ajudas aos seus associados. Participo também, realmente como Matusalém, da muito bem organizada equipe Corre Brasil, dirigida por Augusto César Fernandes de Paula. Basicamente, devido aos meus horários diferenciados, não participo dos treinos da Corre Brasil – exceção à subida ao Pico do Jaraguá (vide Passeio Singular – Desafio Inusitado, 10/07/2010), mas apreendo conselhos valiosos fora dos intensos exercícios e corridas de endurance – e não são poucas – a que os integrantes se submetem. Foi Elson Otake, o maratonista, que me apresentou em 2009 a essa sua valorosa equipe.

Uma primeira participação tem sempre a possibilidade de tornar-se única. Faz parte da natureza humana prosseguir ou não. Senti contudo, após esse batismo de fogo a que se submeteram minha filha e a neta primogênita, que a semente ficou plantada. Estarão dispostas futuramente, assim me asseveraram. Quem sabe nesses próximos anos não possa formar uma equipe, apenas eu como figura masculina. Clãs costumam abraçar ideias. Veremos.

Uma semana após o encontro das gerações completei solitário mais uma prova, a Mizuno 10 miles series São Paulo. Confesso que senti a falta de minhas meninas. Habituamo-nos também ao que nos surpreende. Todavia, todos da TA LENTOS lá estavam, motivo de renovada euforia.

Many times I’ve mentioned the benefits of running for our well-being. It is a great stress-reliever, making us feel energetic and euphoric. Running is also a chance to socialize with other people. Thus I’m happy because my daughter and granddaughter became members of the “running community” and had their “baptism of fire” last April 10, when both joined me in a 5 km race through the main campus of the University of São Paulo.



Comentários Pertinentes e Diferenciados

Dites, qu’avez-vous vu ?
Charles Baudelaire 

O post anterior rendeu muitos comentários. Alguns bem incisivos e breves, atestando o interesse que o tema provocou. O próximo que pode, eventualmente, ser abissalmente distante,  aquele cordial, mas a ter uma barreira de difícil acesso, ou o falante, comunicativo, que adora a conversa descontraída, rigorosamente cotidiana, mas que mantém acesa a flama da ligação entre as pessoas.  Há igualmente o solidário que, a qualquer acidente casual, um tropeço, a dificuldade de locomoção, o desnorteamento diante do mapa do bairro, lá está para prontamente prestar ajuda. E não nos esqueçamos de Sisuphos, de tantos posts anteriores. Continua sua sina implacável. Pedro, o andarilho, este nunca mais foi visto no entorno. Teria encontrado, finalmente, sua cadência.

Dos e-mails recebidos selecionei três bem distintos, que focalizam desde o contato com a rua e seus personagens, numa busca de integração com o menos afortunado, à visão clara desse silêncio quase total que se mantém, mormente em uma cidade grande. Belo Horizonte, Paris e Lisboa são os centros em que se passam histórias de três de nossos leitores, já conhecidos através de outros posts.

A  juíza do trabalho e professora universitária Mônica Sette Lopes narra suas experiências cotidianas frente aos personagens das ruas vizinhas, ela que, em texto anexo encaminhado com o e-mail a comentar o post em questão, escreveria “amando o ouvido da rua, a conversa da rua, a frase solta da rua. Percebendo no rosto dos que cruzam a rua parte de nós mesmos, um entre nós, com essa eticidade absoluta na diferença e na pluralidade, que só tem sentido no e para o outro”.  

Escreve Mônica Sette Lopes: “Prezado José Eduardo, já disse que fui atraída ao seu blog pelos textos sobre a rua no meio daqueles sobre música, porque também me sinto da rua totalmente. Tenho amigos vários – a mendiga magra, magra, de voz forte, que me espera para a conversa na porta da padaria, a mulher que perdeu o Zé, que era cachorrinho da mesma raça do meu Tucho, o velhinho que passeia com duas cachorrinhas, o catador de papel, também com seus dois cachorros, Rex e Diana, e uma dignidade absurda de grande, os lixeiros que se reúnem e conversam num intervalo do trabalho. Bom, vá lá. Passear com o Tutu é meio de contato e de diálogo na igualdade. Mas tem também o taxista que largou o violão pelo teclado e outro dia veio quase correndo contar que está tocando o Brasileirinho, de Waldir Azevedo,  mesmo com as dificuldades da mão de direita; tem o outro que sumiu porque a vizinha de frente implicou com a altura de sua voz grossa e me falou isto quase chorando quando reclamei da saudade dele. E, como vc disse, é muito arriscado nós não nos vermos no outro da rua, não nos vermos com ele. Ontem fui levar a Lys para vacinar (a cachorrinha) e na antesala havia uma jovem que puxou conversa e queria que eu fizesse a pergunta: O que tem o seu cachorro que está internado? O cachorro dela foi envenenado pelo vizinho, que jogou chumbinho por cima do muro. Ela fora visitá-lo e, preocupada porque ele não estava conseguindo apoiar-se nas patas, estava com medo de ter que sacrificá-lo. Quando o trouxeram, fiquei pensando se o tal vizinho conseguiria apreender o sentido da reação do cachorrinho. Tão triste. Deitado, com o colar elisabetano que o protegia na recuperação, ao vê-la mexeu a cabeça e o rabo violentamente, buscando o reconhecimento dela e demonstrando o seu. Reflexo, dirão, interesse, dirão, mas foi tão lindamente relacional aquilo, tão sentida a alegria do encontro de ambos, ainda que nela doesse a consciência de saber o que poderia vir, o sacrifício dele.  Se não me vir potencialmente neste homem que tem a coragem de jogar o chumbinho (e que não enxerga nada na rua) e na menina que foi abraçar o cãozinho, estarei vivendo fora dos riscos da vida e daquilo em que posso me transformar. Por isto, paro e vou andar com meu Tutu, que dorme de barriga para cima na cama” !!!

O compositor francês François Servenière lê meus blogs através de um tradutor on-line e teceu comentários que indicam uma realidade outra,  mas que, na essência, envolve o homem e a problemática frente ao seu semelhante.

“ Compreendo bem o que você vive e descreve por ter vivido muito tempo em Paris, onde cruzamos todos os dias com figuras desconhecidas, mas que revemos cotidianamente durante longos períodos. Uma expressão francesa reza que ‘cada um é uma ilha’, a demonstrar  bem o isolamento que nosso cérebro sofre nessa turbulência da vida citadina e de nossa obrigação de nos protegermos, permanecendo enclausurados em nossa próprio pensar. Tem graça, pois ao me tornar parisiense, vindo da província, onde se diz bom dia a todos da rua, vi-me no metrô a continuar a saudar a todos, por polidez. Rapidamente me dei conta, pois ninguém me respondia. Nas grandes cidades, nós nos aglomeramos, pois há  concentração bem mais acentuada de pessoas que se assemelham ou têm os mesmos interesses que os teus, mormente nos métiers artísticos característicos das urbes maiores. Nesses centros, somos estranhos também a tantas pessoas, e podemos fazer os mesmos trajetos numa linha de metrô, no mesmo horário, sem encontrar sequer os mesmos rostos… A cidade grande é dura para as relações humanas, mesmo que um quadro tão melhor não seja visto nos centros menores. Há que se convir que, nos grandes centros, a indiferença  ajuda-nos a sobreviver, e permite também uma existência diferente, sobretudo quando não professamos ideais comuns e  padronizados. Ademais, não teremos tempo suficiente durante uma vida para interessar-nos por todos, e a seleção se faz através de polos de interesse, de profissões, de meio social… Seria possível entender que a mesma situação mental se estabeleça na cabeça dos outros, como escreve você no final de seu post. Na Paris, em determinados dias, tenho vontade de sorrir para todos aqueles com que cruzo nas ruas, e isso funciona! As pessoas se desenrugam e o gêlo se esvai. Todavia, essa situação pressupõe esforços impossíveis de serem mantidos durante muito tempo. Sob aspecto outro, quão não são as vezes que em transporte coletivo nos fechamos em nossa concha como as ostras o fazem? Fazemos o mesmo quando estamos em nosso carro particular, a carregar nosso microcosmo individual, familiar, numa bolha fechada ao próximo, com nossos critérios, nossas músicas, nossos ambientes. É de se verificar que nos transportes coletivos em Paris, Londres, Tóquio ou Nova York, o que se vê é o cidadão a digitar freneticamente ao celular, a fim de enviar SMS ou então para jogar joguinhos à disposição do usuário desses aparelhos… Novas conquistas para enclausurar e para… evitar os outros!  A tecnologia isola e o desenho de seu amigo Luca Vitali é claro ao captar você a correr em seu treinamento diante de pessoas com cabeças de tela de computador… Foi muito bem pensado…

Idalete Giga, especialista em canto gregoriano, amizade que vem de completar 30 anos, pensa no amálgama e sua expressão musical não descarta a criação do poema:

Depois de ler o texto do seu último post, ” Personagens das Ruas Vizinhas” (que achei autêntica prosa poética), e observar Os Antenados (desenho genial do seu amigo Luca), escrevi  o seguinte poema (que é mais seu do que meu ou, se quiser, é nosso, sem quantificações!) :

Os Antenados – entes abissais

Habitantes de bairro
em louco ostinato
caminhar diário
Vendam os olhos
Não querem ver

 Trancam o coração
onde o Amor secou
de solidão

Aprisionam a voz
matando
a flor-dos-lábios

São mortos-vivos
fantasmas
vazios
perdidos
que passam  por nós 

(  I. Giga e José Eduardo )
12/Abril/2011

Outros leitores se posicionaram quase que em uníssono à realidade contida no post. Agradeço a constante atenção dos frequentadores de meu blog. Cruzamos com as pessoas, infimamente a saber algo do próximo.  Apenas cruzamos. Mudanças de comportamento nesse mundo cada vez mais padronizado com seus rótulos pré-fixados. Não teria razão Jean-Paul Sartre quando afirma que a melhor maneira de ser diferente é ser como todo mundo? 

Quando o Cidadão Passa Diante do Olhar

O próximo sempre pode ser mais próximo
ou ser um ente abissal.
Provérbio Tailandês

Seria possível entender o homem com seus amparos apreendidos do cotidiano. Habitante de um bairro tem quase sempre suas preferências nesse caminhar diário para as mais variadas atividades: manutenção da morada, trabalho ou simples lazer. Não fosse o constante cruzar com personagens que podem ter as mesmas preocupações de subsistência e poderíamos não ter referências. Se morador há muito tempo, rostos tornam-se familiares e, se o sentido da observação existir, a aferição ou apresenta-se cordial ou, durante décadas, nem olhar, tampouco palavras são trocados. Faz parte do homem esse permanente “contato”, tantas vezes rigorosamente subjetivo, apenas o cruzar por força das circunstâncias.

Em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, vejo de tudo ao sair para fazer compras, para  treinos visando às corridas, ou para conversar ou tomar um curto com meus vizinhos, alguns também aposentados, que permanecem durante o dia sempre no mesmo lugar. Tenho absoluta convicção de que a minha reforma, como chamam em Portugal a aposentadoria, dando-me maior tempo, expandiu minha dedicação aos estudos, à reflexão e a esse ato extraordinário de observar sem contar com a pressão do tempo. Sob outro aspecto, viver 46 anos na mesma casa torna-me cúmplice de mortos e vivos ou, por vezes, mortos-vivos. Quantos não foram aqueles com que cruzei cordialmente, ou apenas vi durante décadas, sem um gesto sequer de aproximação. Quantos não desapareceram e durante o passar do tempo sentíamos neles o declínio físico inexorável. Se personagem sem contato, certo dia alguém comentará que o cidadão morreu. Apenas um “Ah !” de acolhida do fato e tudo volta à normalidade. Quão não são aqueles que bem efusivamente nos cumprimentam durante anos, seja com um aceno de mão acompanhado de sorriso, seja por palavras perenizadas pela rotina da saudação, e cujo nome sequer ficamos sabendo.

Estou a me lembrar de uma vizinha com quem mantinha conversação amistosa quando a encontrava. Contudo, jamais olhava para alguém ao andar para suas várias atividades e compromissos. Um dia quis testá-la. Era dia de eleição e as calçadas e ruas estavam inundadas por essa hedionda panfletagem de nossos políticos de todos os partidos. Eles jamais abdicam dessa imundície. Vinha em sentido contrário ao meu com olhar fixo à frente. Com ela cruzo quase a tocá-la sem que sequer  me tenha visto. Imitando voz cavernosa disse eu “que cidade imunda”, e a resposta veio imediata, sem que a moradora se voltasse: “imunda mesmo”.  Dei meia volta e a cumprimentei. Motivo para surpresa e sorrisos. Esse tipo de atitude não seria também consequência do medo que as pessoas têm de olhar o outro, a fim de evitar, até, que esse “contato” visual possa ser entendido com desconfiança ? Se o país mantém recordes de mortes violentas – 137 por dia !!! -, tal precaução pode significar, porque não, a sobrevivência. O malfeitor reconhecido fica na fronteira de se tornar o algoz imediato ou posterior devido à simples troca de olhares.

A rua é o lugar mais rotineiro para encontrar o inusitado. Repetitivo, mas nunca igual. Cruzar durante os treinamentos pelas vias públicas com personagens que praticam caminhada ou corrida é outra constante prazerosa. Uns são cordiais, outros, apesar de anos em prática idêntica, preferem o silêncio e a ausência de qualquer contato. Estou também a me lembrar de uma jovem sorumbática, mas bonita, que caminha em torno de local onde costumo treinar. Anos cruzando os mesmos trajetos. Jamais um cumprimento, tampouco um olhar. Certo dia estava a correr, mas esquecera o relógio. Ao passar pela rapariga pedi-lhe gentilmente as horas, pois tinha apontamento após os exercícios. Assustada, dirigiu-me palavras ininteligíveis e quem ficou aturdido fui eu. Elson Otake, que corria em outro ritmo, ao encontrar-se com o amigo ao final dos treinos ininterruptos de ambos, ao saber do ocorrido, disse-me a sorrir: “Há aqueles cordiais, outros silenciosos, mas também existem vespas. Não nos aproximemos delas”. Continuo a encontrar a jovem. Se me vê a longa distância, a depender de meu posicionamento, passa da rua para a calçada, ou vice-versa. Cotidiano. Todavia, no andar ou no correr, há aqueles  concentrados e constantes no mesmo propósito; os simpáticos, mas apenas “protocolares”; os efusivos que nasceram da empatia, todos permanentemente em nossos caminhos. Plínio Marcos tinha sábia razão, pois nossa cidade-bairro é o porto do entendimento. Que assim continue, pois outros olhares também já observaram que o peso dos anos me atinge. Felizmente faz parte de nossa passagem pela Terra. Inexoravelmente.