E Tudo Começou Motivado pelo Acaso

Néanmoins, nous avons la certitude que l’infini existe,
puisqu’il est impossible d’imaginer qu’il n’existe point
et parce que son contraire, le fini,
est encore moins admissible.
Maurice Maeterlinck

Desde Março de 2007, reiteradas vezes abordei a temática relacionada às minhas ligações com a Bélgica, nascidas em 1995. Ao lembrar-me das origens dessa aproximação, que se tornaria perene, não deixo de fixar-me no acaso. Diria que trinta segundos a mais de uma situação absolutamente cotidiana e nada teria ocorrido. Em posts longínquos já escrevia sobre o fato.

Primeiramente, músicos da Bélgica estiveram no Brasil em 1994 e adquiriram na loja da Funarte, no Rio de Janeiro, três LPs gravados para o selo estatal e nos quais constavam obras do notável compositor romântico brasileiro Henrique Oswald. Dois de música de câmara e um de piano solo. Faziam parte de projeto acalentado pelo ilustre compositor Edino Krieger, então presidente da entidade. Com Antônio Del Claro, gravamos a integral para cello e piano e com Elisa Fukuda, a sonata para violino e piano e mais o trio op. 9, com a participação do  competente violoncelista.

O mentor da conexão musical Bélgica-Brasil foi certamente o saudoso Álvaro Guimarães, músico atuante que residia em Gent, na região flamenga. Procurou-me no início de 1995, a dizer que os belgas estavam encantados com a obra de Henrique Oswald. Todo o projeto foi por ele organizado. Primeiramente gravamos em Bruxelas, em Julho de 1995, a integral para violino e piano, com o excelente Paul Klinck ao violino. Estou a me lembrar que cheguei em uma sexta-feira pela manhã na capital dos belgas e Paul estava a me esperar. Conheci-o naquele intante e fomos direto a Gent. Meia hora após chegar, já realizávamos o primeiro ensaio. Dez minutos a seguir, Paul ficou de costas para mim e prosseguimos. A certa altura, intrigado, perguntei-lhe o porquê dessa postura. Respondeu-me bem calmamente “nossa compreensão da obra me leva à certeza de que nos entenderemos bem”. Ensaiamos ainda à noite, no dia seguinte Paul se casava, mas mesmo assim estudamos novamente, para na segunda e terça realizarmos, sem transtornos e na mais absoluta harmonia, a gravação das obras excelsas de Henrique Oswald em Bruxelas. Momentos extraordinários.

Em Novembro dava-se o Concerto de encerramento da Novecanto, totalmente dedicado a Oswald. Fizemos, no Muziekconservatorium de Gent, obras para violino, violoncelo, trio de cordas, canto, todas com minha participação ao piano. Tivemos ainda peças para piano solo e, para finalizar, o Coral Novecanto apresentou, de maneira sublime, a missa de Requiem a capella de nosso compositor. Chorei copiosamente ao ouvir, na platéia, a impecável execução da Missa. Concerto que teve a duração de quase duas horas. No intervalo foi lançado o CD que gravei com Paul Klinck.

À noite, mal conseguia dormir. Pensamentos contraditórios me levavam a rememorar os momentos mágicos vividos, que iriam estiolar-se na manhã seguinte, quando retornaria ao aeroporto de Bruxelas e, de lá, a São Paulo. E vem o acaso.

No momento exato em que o motorista de táxi que me levaria até à estação ferroviária Saint-Peters estava para fechar o porta-malas do veículo, desce de um carro que estacionara no meio fio, André Posman, o Diretor da De Rode Pomp. Não o conhecia e estranhei quando se aproximou sorrindo, a me dizer que adorara o concerto e que gostaria de conversar comigo.  Tenho o hábito de chegar bem antes da partida de qualquer vôo. André retira a minha bagagem do porta-malas, leva-me à sede da Rode Pomp e, posteriormente, de lá ao aeroporto. Nascia uma ligação definitiva, que me fez ir à Bélgica, até o presente, 22 vezes para recitais na sala da sociedade de concertos e gravações para o selo De Rode Pomp, assim como para apresentações em tantas cidades belgas.

O meu relacionamento com a Bélgica, tendo nascido de ato amoroso musical, permanece nestes 16 anos de intensidades. Foram inúmeros os posts em que abordei com alegria as viagens ao país, mormente à região flamenga. Só na sala da De Rode Pomp são mais de vinte recitais, sempre com repertório diferente. Sob outro aspecto, foi somente após três anos consecutivos de apresentações que André Posman me convidou para gravar “É necessário deixar a sua herança”, disse ele. Dos 22 CDs gravados no Exterior, 14 tem o selo respeitado da Rode Pomp, e outros foram gravados para serem lançados em Portugal e no Brasil com a anuência da organização. André, mulher e filhos tornaram-se membros de minha família belga. Conservaria a chave da moradia de André e tantas foram as vezes em que entrei de madrugada para estudar no piano da pequena sala de concertos. Infelizmente o auditório foi demolido, mas a força de vontade de André está sempre a pensar soluções novas. À mesa dos Posmans  - André, Jamila e os filhos Taha e Yassim - sempre há um lugar à espera do amigo quando este chega a Gent.

A não mais de 200 metros da Rode Pomp moram Tony Herbert e Tânia. André recomendou-me em 1997 a morada, pois se tratava de um Bed & Breakfast.  O casal teve filhos e nossa amizade apenas ficou ratificada em torno de Tycho e Trixie. Continuo a ser o único ex-cliente a lá se hospedar e seria uma desfeita imensa se buscasse outro abrigo. Extensão familiar. Tony de mil talentos é meu companheiro nos muitos almoços que compartilhamos sempre nos mesmos restaurantes de Gent e nas conversas prolongadas nos momentos de descontração. Personifica, a meu ver, muito das características dos habitantes da bela cidade medieval. De sua casa saio em treinamentos para as corridas da agenda oficial de São Paulo. Correr em baixa temperatura é experiência a ser vivida.

Johan Kennivé é o mestre absoluto da gravação. Um dos mais perfeitos engenheiros de som do planeta. Sereno, psicanalista, uma outra formação pois, Johan ausculta tudo. Nada lhe passa ao largo. Nossas gravações são sempre realizadas na capela Sint-Hilarius em Mullem, na planura flamenga. Todo ano vivemos três noites mágicas, que atravessam a madrugada até o raiar. Vivemos invernos rigorosos que, ao calor dos aquecedores, trazem a temperatura ideal ao intérprete nessa transmissão decisiva. Nos momentos de cansaço, é Johan que, na condição de psicanalista, sabe interromper uma gravação para conversa sem tensão, chocolate quente e torta de maça em sua Van com a mais moderna tecnologia de gravação e que fica estacionada na parte externa da capela, junto ao pequeno cemitério que a circunda.

Ter convivido com alguns dos grandes mestres da composição na Bélgica foi outro fato que marcou. Reiteradas vezes confessei que algumas de minhas amizades mais expressivas estão entre compositores, pintores e escritores. Gravei um CD unicamente com obras de 10 compositores belgas. Boudewijn Buckinx, Lucien Posman, Frederick Devreese, Yves Bondue, Stefan Meylaers, Roland Coryn, Daniel Gistelinck, Hans Cafmeyer, Raoul De Smet, Stefan van Puymbroeck são os criadores dos Études.

O competente compositor francês François Servenière, em análise crítica, escreve sobre essa gravação de Estudos belgas para piano: “esse CD com obras dos compositores do Reino da Bélgica e dedicados ao pianista José Eduardo Martins, aqui também formidavelmente virtuose, é uma lição da renovação que se opera na  música contemporânea da Europa e que o artista brasileiro não deixou de suscitar através das encomendas ou sugestões a esses criadores, mestres de sua arte seja qual for a tendência ou a geração. Podemos constatar, ao ouvir esse CD, que não há mais muros, barreiras e limites para a  criação e que a bandeira da liberdade é novamente aquela que está a impulsionar as mais brilhantes inteligências inventivas”. Raoul De Smet (1937), compositor da Antuérpia, dedicou-me seis Études, que apresentei paulatinamente ao público belga. Sabedor de meu projeto de Estudos, que hoje conta com 70 e tantos, escreveu mais nove. Deveria tocá-los este ano, contudo as cirurgias dos polegares (rizartrose) em 2010 e 2011 obrigaram-me a adiar a edificação da coletânea, pois estamos diante de Estudos realmente de dificuldade transcendental. Creio que em 2013 ou 14 poderei gravá-los em Mullem. Avanço na idade e no entusiasmo. Sob outra égide, foi um privilégio ter sido lembrado, através dos anos, em traços e cores marcantes por cinco artistas na Flandres: o saudoso Yves Dendal, que compareeu a todos meus recitais em Gent, Lutgard Wittocx e Tim Heirman (Bélgica), Joep Huiskamp e J.D.Wachter (Holanda) e Boris Chapovalov (Rússia). Seus trabalhos podem ser visualizados no item portraits de meu site.

Foram muitos os cameristas com quem me apresentei, mormente Paul Klinck, Herwig Coryn, Françoise Vanhecke e o Kwartet Rubio, que foi um dos mais prestigiados da Europa, hoje, hélas, desativado. Tantas as cidades em que me apresentei na Bélgica, quase todas percorridas através da eficiente malha ferroviária que corta o país.

Todo esse breve histórico para dizer aos generosos leitores que vivi emoção muito grande ao receber, das mãos do Exmo. Sr. Cônsul Geral do Reino da Bélgica em São Paulo, Peter Claes, a comenda “Officier dans l’Ordre de la Courone”, outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, em comovente cerimônia realizada na residência oficial. No momento da entrega, o flash a conter toda essa relação amorosa passou pela mente. Longa preparação para as gravações, apresentações públicas, amizades que se perpetuam em intensidade sem limites, todas as imagens que me levaram a certeza de estar a sentir na Bélgica, nos contatos musicais e afetivos, algumas das mais sensíveis experiências de minha vida. Sinto-me profundamente honrado com a comenda, que será guardada com carinho exemplar e um dia pertencerá às filhas e netas. Ter chegado aos 73 anos torna-me mais fragilizado quanto às reações afetivas. Ter sido lembrado pelo Reino da Bélgica em momento tão especial calou-me fundo.

A Bélgica continua a ser um de meus refúgios paradisíacos da mente. Dela lembrar traz-me reconforto e estímulo, pois projetos estão em permanente ebulição. Enumero a seguir os posts, editados desde 2007, tendo como temas a música, a arte e as amizades que o tempo sedimentou: Gent – A Flandres Rejuvenescida, 28/04/2007; Mullem – Sint-Hilarius, 01/05/07; A Comunhão das Pedras – A Magia de Sint-Hilarius, 03/05/07; Victor Servranckx (1897-1965) – A Grandiosidade do Fragmento ou Esboço, 12/03/08; Recitais Diferenciados – O Lúdico e o Alento, 18/03/08; Sint-Hilarius em Mullem – Meu Desiderato Sonoro, 25/03/08; Tony Herbert – TTTT e o Saber Viver, 12/04/08; Nova Travessia – Retornar à Região Flamenga, 06/02/09; Gent e seus Templos Góticos, 13/02/09; Um Belo Concerto – Qualidade sem Empáfia, 28/02/09; Álvaro Guimarães (1956-2009) – In Memoriam, 04/07/09; Travessia, Travessia – Quando Projeto Acalentado Chega a Termo, 14/05/10; E Continua o Caminhar – 21/05/10; Passar do Tempo e Gent, 04/02/11.

Last 18 August I received, from the hands of Mr. Peter Claes,  Consul of Belgium in São Paulo, the insignia “Officier de l’Ordre de la Couronne”, bestowed by His Majesty Albert II, King of the Belgians, in recognition of my dream of strengthening the ties between Belgium and Brazil through music. I was deeply moved by this tribute and the ceremony brought back memories of my many trips to the country: the privilege of knowing great musicians and composers , the 22 CDs recorded in Mulem and, above all, the rare treasure of making good friends, a blend of affection, respect and trust  that makes me feel comfortable and safe whenever I’m in Belgium.

 

 

 

 

 

 

Temas Recorrentes

O homem tem preguiça, em geral, de pensar todo o pensável
e contenta-se com fragmentos de ideias,
recusa-se a uma coerência absoluta.
Não leva até o fim o esforço de entender.
E, exatamente porque não o faz, toma,
em relação à sua capacidade de inteligência,
uma absurda posição de orgulho.
Compara o pouco que entendeu
com o menos que outros entenderam,
jamais com o muito que os mais raros puderam perceber.
Agostinho da Silva

Supermercado pode ser ponto de encontro fortuito ou oportuno. Tantas vezes vizinhos ou então amizades, que se distanciaram pelos decênios, repentinamente surgem por detrás de uma estante. Minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, sempre a surpreender. Maior consciência tive eu do fato quando peguei uma carona com Magnus, a fim de comemorar, em casa de uma das filhas em Perdizes, o aniversário da neta primogênita. No trajeto percorrido pelo amigo resolveu ele cortar caminho e passamos pelo populoso bairro de Vila Madalena, pleno de belos prédios e de infindáveis bares e restaurantes, sem contar subidas e descidas, algumas íngrimes. Tive a nítida sensação de estar em outra cidade, tão diferente da minha, pois diversos o panorama e o pulsar das pessoas que se aglomeravam em alguns desses locais de encontro. A premissa apenas para ratificar ainda mais minha condição de morador de cidade-bairro que, sinceramente, me dá um tipo de segurança mental nessa insegurança com a qual estamos habituados a conviver diariamente.

Após tantos anos reencontro velho conhecido ao contornar uma estante em supermercado. Carlos hoje mora em São Paulo, mas conheci-o em Uberaba, quando lá estive algumas vezes para recitais. Dedicou-se à música durante algum tempo, mas o curso de Medicina levou-o a outros caminhos e presentemente atende a dois hospitais. Houve a possibilidade de um bom curto e de conversa agradável.

Carlos não perdeu contato com a música, pois frequenta uma série de recitais e concertos que são oferecidos diariamente na cidade. Sabia de minha trajetória pianística e acadêmica, esta finda após a aposentadoria da USP, mas vivificada hoje através de visitas constantes a universidades d’além-mar. Uma pergunta intrigou-me: “escritos acadêmicos são chatos?”. Perguntei-lhe pela origem da questão. Afirmou-me evasivamente que lera a instigante consideração em texto publicado recentemente.

Disse-lhe que realmente há textos acadêmicos chatos, chatíssimos até. São eles majoritariamente escritos por “falsos” futuros mestres e doutores, que escrevem por obrigação universitária. Seus trabalhos sem originalidade são defendidos sem brilho pela ausência de conteúdo. Chatice a imperar. Quando a relação não é plena, o texto acadêmico  torna-se fatalmente enfadonho por falta de embasamento e até de relação amorosa com o tema. Não obstante esse lamentável fato, dissertações e teses de valor passam ao largo da palavra pejorativa, pois escritos por pesquisadores competentes. Mais um texto universitário é inovador ou ratificador de teorias que tendam ao alargamento do conhecimento e das mentes, mais ele se torna interessante. Em todas as áreas. Lógico seria supor que aquele(a) que generaliza um texto acadêmico, normatizando-o como sendo chato, não tem certamente a menor condição de compreender o trabalho competente feito para a Academia,  pois deve ter escolhido, entre tantos, o texto errado, certamente chato e, a agravar ainda mais a situação, aquela dissertação ou tese que mergulhará nas profundezas dos arquivos da universidade por falta de consistência.

A chatice não se coaduna com a competência. Patamares distintos situam os textos nessas condições, o primeiro a ser esquecido no rés do chão, o segundo, nas alturas, a servir de referência. Trocamos ideias, ele a considerar as condições de quem escreve e que assim se pronuncia, a lançar anátema aos textos acadêmicos, generalizando-os. Considerei que somente poderá avaliar uma dissertação ou tese em sua plenitude, e a vaticinar sua qualidade, aquele que se encontra instaurado na área, através do conhecimento. Na Academia, será o médico especialista; o engenheiro em sua especificidade; o músico compositor, intérprete, teórico; o doutor em direito, todos esses que estarão plenamente prontos a decifrar conteúdos inerentes às inúmeras áreas do conhecimento. Seria claro igualmente que poderá esse texto ser ininteligível para o leigo ou soi disant, daí também o pretexto para que este leitor rotule de chata a produção acadêmica de alto nível.

Portanto, inexpressivas ou competentes, dissertações ou teses poderão não ser compreendidas pelo leigo. Contudo, se este tiver uma cultura abrangente, discernimento e a mente aberta ao desvelamento, certamente encontrará o maravilhamento em trabalhos acadêmicos relevantes. Há que se considerar também, que a tese competente sofre determinadas modificações quando publicada no formato livro. Deve-se o fato à necessidade de abreviá-la tanto em seu texto essencial, como no consequente número de notas de rodapé. Todavia, nas duas formatações, livro e tese serão relevantes para o entendido na matéria. Acredito, pois, que a chatice alegada ou é pela palavra mesma aplicada à inconsistência e, nesse caso, a aplicação é corretíssima, ou pela falta de alcance do leitor quando se depara com dissertação ou tese de alto mérito. Neste caso, pouco a fazer.

Perguntou-me sobre quais livros sobre música procurar. Respondi-lhe que, ao buscar um bom livro sobre a matéria, seu paraíso eterno, primeiramente deveria inteirar-se da origem de quem escreve. Aquele sem o embasamento sólido na área musical estará sujeito a tantos pecados, que se estendem do  desconhecimento àquilo que é bem mais grave, ao livre arbítrio, ou então à simples repetição, com outras palavras, de textos lidos em quantidade incalculável de livros escolhidos sobre a área. Porém, “obras” escritas nessas condições não serão referenciais.

Meu amigo regressará à sua Uberaba. Afirmei-lhe que teria imenso gosto em voltar a me apresentar nessa bela cidade do triângulo mineiro. Despedimo-nos, pois Carlos teria de dar plantão em hospital próximo. Ainda brinquei a dizer que esperava que a noite não tivesse a chatice enunciada no tal artigo que lera há dias.

 

On the difficulties of finding a wider audience for academic theses, which I divide basically into two categories: the second-hand ones, written by bad researchers and that no one will ever read, and those written by serious researchers, a result of rigorous investigation methods, but relevant only to those who work in the same field and not to the layman.

 

 

Interesse a Levar ao Descrédito

A morte dos outros me afeta:
e seu morrer, a sua morte,
são parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

Joan Reventós i Carner

Em post bem anterior reproduzia artigo que saiu publicado aos 12 de Março de 1993 no Suplemento Antília, de O Telégrafo, da cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do Arquipélago dos Açores (vide “Um Trágico Amalgamar” – Quando a Morte é Espelho da Realidade, 27/03/2010). Àquela altura houve o insólito episódio de impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello e o brutal assassinato de jovem atriz televisiva. Escrevia sobre a consequência política da primeira situação, que ficará registrada para sempre em todos os compêndios de história do país, e da tragédia do cotidiano que se esvai, tão logo outros infaustos acontecimentos eclipsem o antecedente. A mídia, faminta por notícias sensacionalistas, voltou-se para a comoção popular estimulada pela enxurrada novelesca diária em nossas televisões, a dar muito maior destaque ao circunstancial trágico em detrimento do inusitado histórico-político. Teria havido algum aperfeiçoamento no sentido de se privilegiar o mais importante e não o circunstancial, mesmo que envolvido em brutal desfecho? A resposta é não. Passaram-se dezoito anos do impeachment e da tragédia e nada mudou, antes recrudesceu de maneira geométrica.

A monstruosidade do que ocorreu na Noruega no dia 22 de Julho, provocada por um desequilibrado absoluto, poderá ter consequências inimagináveis. Extremo-nacionalistas, fanáticos religiosos, desnorteados que se espalham pelo planeta têm dado provas de que não há mais segurança em nenhum rincão. Em quase toda a Terra, atentados diários promovidos por grupos que semeiam o terror, ceifam centenas de inocentes. Os países nórdicos seriam exemplos da constante serenidade. Os terríveis acontecimentos em Oslo e na ilha de Utoeya não serão esquecidos em nenhum volume que retratará a Noruega naquilo que lá existe de tolerância e respeito aos direitos humanos e que viu nascer o extraordinário compositor Edward Grieg (1843-1907).

O que aconteceu no país nórdico é de uma brutalidade imensa. Quando alta autoridade, questionada a respeito da presença de um único helicóptero da segurança pública em Oslo, a fim de socorrer possíveis vítimas, a resposta não leva à dúvida. Nada acontece no país que tem, no máximo, 20 assassinatos anuais – no Brasil 137 por dia. Um outro personagem entrevistado afirmou que 21 ou 30 anos de prisão para esse tresloucado seria um prêmio, pois as prisões norueguesas são exemplares. Para uma população de quase cinco milhões de habitantes, a presença hoje de 11% de imigrantes deverá ser acrescida, a mudar o perfil da Noruega. Oriundos de países árabes, mas também de outros, o país terá de conviver com a nova configuração racial que, bem administrada, terá reflexos positivos no desenvolvimento da nação. O que provoca verdadeiro choque é que o criminoso é norueguês e com tendências ultra-nacionalistas. Quando cerca de 80 vítimas tombaram na Noruega, seria impossível que um povo pacífico não ficasse absolutamente desnorteado. A tragédia ainda está longe de uma avaliação ponderada. Por toda parte existem fanáticos que, em grupo ou isoladamente, respiram o ar da destruição. Inocentes são mortos em nome do nada. Se o Brasil não tem esse tipo de ação, não foi premiado por nenhuma divindade, pois a violência explode diariamente em todos os cantos movida pela droga, pelo descaso das autoridades ou pela simples vontade de matar, ato perpetrado por outros tresloucados.

Voltemos a 1993 e o caso Collor e o da jovem atriz de telenovelas. Naqueles infaustos acontecimentos, como os do presente, tivemos a mesma reação mediática, pois logo após a morte de uma jovem cantora de carreira recente, mas ventilada nos meios de comunicação, mormente pelo fato de que a auto-destruição, graças às drogas e ao álcool, estava a anunciar a sua morte, fazendo jus,  em interpretação mais imediata, ao mors certa hora incerta. Todos os holofotes se voltaram à tragédia individual. Foi de pasmar. Os principais noticiários, das TVs aberta e a cabo, dedicaram horas à Amy Winehouse. Entrevistaram em profusão figuras conhecidas da mídia e do show business, alguns a dizer que Amy era inigualável, que seu legado permaneceria para sempre, que seu trajar seria referência para a juventude (sic) e mais uma quantidade de bobagens. Algumas interrupções para que se voltasse à Noruega, quando repórteres davam últimas notícias, para imediatamente retornarem os canais à figura estranha que desaparecera, resultado dessa chaga universal que é a droga, acrescida de alto teor alcoólico. Certamente alguns leitores receberam, via e-mails que inundam a internet, série de fotos da cantora, que evidenciam a curta, mas inexorável derrocada. As fotos espantam, tal o realismo. A figura humana no seu mais abjeto estado. O massacre mediático a mostrar a desgraça da infortunada moça, mas a erigi-la como de “importância” fundamental na música pop de nossos dias (sic), a possibilitar, inclusive, a edificação do paradigma ou até do “mito”. Quão não são os hesitantes que poderão sofrer a influência desse atentado ao bom senso mostrado na televisão? Triste realidade.

O lamentável episódio norueguês estará em aberto e já passou para a história, assim como, sob outra égide, o impeachment de Collor de Mello. A jovem atriz ficou perdida na tragédia e desapareceria da mente do povo, assim como a infeliz cantora inglesa que, em pouco tempo, será apenas lembrada por poucos aficionados ou pela mídia se, hélas, outro cantor (a) morrer aos 27 anos de idade. E a mídia não aprende. Nada a fazer, pois incontáveis interesses estranhos estão em jogo.

On the bias of the mainstream media towards sensationalism to the great detriment of serious events that affect a given society or are globally relevant.