Cidadão, Figura Indefesa

Catador de papel. Desenho de Manuel Martins.1936. Clique para ampliar.

Que falta nesta cidade ?… Verdade.
Que mais por sua desonra ?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha
Quem a pôs neste socrócio ?… Negócio.
Quem causa tal perdição ?… Ambição.
E no meio desta loucura ?… Usura

Gregório de Matos

Não foram poucos os posts em que deixei registrada minha indignação contra o acúmulo da falta de respeito que governo e iniciativa privada têm pelo cidadão comum. Falou-se, e isso continua a ser prioridade na conversa e nos textos de articulistas conscientes, sobre a corrupção, outra endemia que atinge ambos os setores, o público e o privado. O cidadão que paga tributos, entre os mais elevados do mundo, não tem sequer o mínimo ressarcimento através de atendimento de saúde, educação e segurança. Se recursos ele não tiver, estará condenado às filas intermináveis, ao atendimento o mais burocrático – abusivamente lento – por parte do governo. Realmente, vive-se o desrespeito ao mínimo anseio do indivíduo. Ele só existe perante o governo desde que contribua com os polpudos impostos, e que não falhe nesses pagamentos, pois o Leviatã estará pronto para atingi-lo no cerne. Um dia de não pagamento e o aparelho de contagem sempre ascendente do Estado será impiedoso até às últimas consequências.

O desrespeito estaria demonstrado em pequenos atos que se tornaram rotineiros. Uma das empresas de telefonia tem gravação automática com a frase “esse telefone não existe”, sempre que, por qualquer motivo, o aparelho estiver fora do gancho ou em outra função. Aquilo que não existe é inexistente, daí o prefixo in + existente. Ora, o número existe, mas está por alguma razão indisponível. Essa frase seria passível de ação judicial, houvesse vontade individual ou coletiva, caso não estivesse o cidadão comum tão anestesiado pelos sucessivos desrespeitos. Sem pensar em outras categorias de desrespeito: crianças e adultos jogados nas calçadas e levados ou às drogas ou à difícil situação de catadores de latas e papelão.

Empresas as mais diversas e instituições governamentais em quantidade desrespeitam o cidadão comum ao fazê-lo esperar para ser atendido ao telefone, através de vozes gravadas e “músicas” repetidas ad nauseam. Se paciente o cidadão comum não for, terá, por vezes, de aguardar minutos, ou dezenas deles. Essas vozes eletrônicas desfilam números sequenciais para orientar o infortunado por caminhos sem respostas, causando irritação, preocupação que inexiste para senhores que instituíram tal procedimento. Criada pelo homem a fim de afastar questionamentos por parte do usuário, só ao final indica a gravação que haverá alguém – humano ! – para atender o incauto. Com sorte, como num jogo de azar, tem-se esclarecimentos. Se houver atendimento, dirá a voz do atendente – tantas vezes – “orientando” o desorientado para que busque outro número, ou mais, instante estressante, cai abruptamente a ligação. Havia regulamentação, s.m.j., a respeito de penalidades contra esses abusos diários e quantitativamente assustadores. Hoje a voz gravada quando adentramos um estacionamento para a  retirada do ticket retrata nosso fracasso frente à máquina erigida por quem pode. Se problema houver, todo o mecanismo trava.

Nada acontece neste país para que regulamentação seja feita em defesa do cidadão comum, pois poderosos não são punidos. Pelo menos é o que parte consciente da mídia escrita e falada cotidianamente professa com outras palavras. Como se não bastasse, há o rosto oculto, o total obscurantismo, quando dados só são transmitidos via internet. Generalizou-se esse processo. Os poderosos ficam ainda mais protegidos. Sem solução prevista, pois um ser “humano” sem rosto, o lobista,  saberá no momento preciso articular a vontade dos “interessados”  junto aos legisladores. Nada mais a fazer, pois radicada a prática nas entranhas do poder. E todo o mal está feito.

Foi pois com indignação que verifiquei esse desrespeito ao cidadão quando leitores generosos me escreveram ou me comunicaram por telefone, no início de Março, que meu blog “não mais existia”. Graças ao meu dileto amigo Magnus Bardela, conhecedor profundo dos meandros da internet, chegamos a recuperá-lo a duras penas. Numa das “conversas” via chat, informaram-me que haviam escrito e-mail em Novembro a dizer que o blog, pago religiosamente, seria desativado em Fevereiro. Não apenas não acusei ter recebido, como a empresa deveria, semanas ou dias antes, prevenir-me do desligamento abrupto, a fim de que pudesse comunicar aos meus leitores bem antecipadamente. Mercê da ação rápida e longa de Magnus, através de inúmeras “conversações” com a empresa, conseguiu a migração do blog para o site, assim como, mais tarde, recuperar o antigo e atual endereço. Se eu, com minhas limitações na área, tivesse de resolver o problema, hoje o prezado leitor não mais teria acesso ao blog, tampouco eu poderia postá-lo.

Houve, contudo, modificações no menu e na estrutura, o que foi resolvido por Magnus após longo labor. Nada que altere o conteúdo, esse que pretendo manter intocado e a atender a fidelidade semanal que me acompanha desde 2 de Março de 2007. Toda a dedicação de meu ex-aluno, hoje meu mestre nessa mutante internet que não consigo acompanhar, merece meu agradecimento pleno.

Continuarei. É o que sei fazer. Enquanto o pensar estiver a produzir textos, eles surgirão. Isso máquina alguma poderá estancar. A não ser o imponderável. Mas aí, só dependemos de um Poder Maior que nos concede tréguas para que trilhemos nosso destino.

- – - – - – -

O post foi publicado e horas após já recebia da Alemanha comentário do excelente maestro Roberto Duarte. Transcrevo-o sob sua permissão:

“Só gostaria de acrescentar mais um desrespeito, porém em nossa área de trabalho. Segundo consta, a OSB no Rio de Janeiro resolveu, unilateralmente, fazer uma ‘avaliação de desempenho’ em t-o-d-o-s os seus integrantes, sob pena de demissão. Qualquer empregador tem o direito de avaliar os seus funcionários, é verdade, mas, onde está o respeito àqueles que há décadas partilham com a OSB dos dias de glória e das grandes dificuldades financeiras que a instituição passou ? O ser humano, no caso o instrumentista, será uma peça descartável e sem alma que o seu ‘dono’ poderá dispor ao seu bel prazer ? Transformar-se-ão as nossas orquestras em meros robôs ? Qual é o futuro desta ‘nova’ humanidade ? A situação é preocupante”.

- – - – - – -

“Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro”

 Clique para ampliar.

Para mim, a criação musical não exige somente talento,
mas também, e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
mesmo que modesto,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.

Serge Nigg

Quer-me parecer que um compositor deve ser,
antes de mais, um homem de cultura
que saiba traçar grandes linhas de força sobre o tempo.

Eurico Carrapatoso

Serge Nigg é compositor francês de grande mérito. Após estudos com Olivier Messiaen, conheceu René Leibowitz, que o introduziu na técnica do dodecafonismo serial logo após a Segunda Grande Guerra. Em 1946 escreve obra primordial, Variações para Piano e 10 Instrumentos, na qual teria pela primeira vez em França utilizado a técnica dodecafônica. A partir de 1950 se distancia da técnica serial, que seria, entretanto, tendência entre os jovens compositores. A partir dos anos 60, a utilização do dodecafonismo em Nigg estaria conjugado com a busca da beleza sonora, da estrutura impecável e da não concessão. Autor de composições reverenciadas e abordando vários gêneros, interpretado por músicos de primeira grandeza, foi professor respeitado no Conservatório Nacional. Prêmios e condecorações, assim como funções essenciais em instituições relevantes da cultura e das artes em França, marcaram a existência de Serge Nigg.
Em depoimentos que se prolongaram durante mais de dez anos (1998-2008), até os estertores da existência, Serge Nigg respondeu a inúmeras perguntas formuladas por Gérard Denizeau (Serge Nigg, compositeur – capter le passé, apprénder le présent, pressentir le futur. Entretiens avec Gérard Denizeau. Paris, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série “Temoignages”, nº 3, 2010). A fazer parte da Collection Observatoire Musical Français, dirigido pela ilustre professora Danièle Pistone, o testemunho de Serge Nigg tem real valor, pois, através de um profícuo diálogo, o compositor revela qualidades inerentes do pensador e temáticas perpassam os depoimentos envolvendo aspectos musicais, humanísticos e da arte como um todo.
Aderiu com fervor à escritura serial dodecafônica. Exemplefiquemos para os leitores não músicos: foi a partir dos anos 20 que o atonalismo – liberdade frente à tradição tonal – se expandiu e avançou pelos países ocidentais. Um novo léxico musical ganhava força. Num breve resumo: existem doze sons na escala temperada ocidental. Tendo o piano como exemplo fácil de entendimento, encontramos sete notas brancas e cinco pretas. Schöenberg e seus discípulos partiram para o emprego de uma série de doze sons sem que houvesse a repetição de qualquer um deles na organização proposta. Dispostos pois sequencialmente, formavam o alicerce de uma obra em sua essência. Nigg, na sua juventude, entusiasma-se com essa soma de mais cinco notas suplementares às sete da escala tonal. Como um dos exemplos dessa cartilha que obedecera, a recusa da repetição exata, como praticaram compositores barrocos e clássicos. Considera: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação”, princípio tão praticado nos períodos citados. Observa: “Schöenberg no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Teria consciência mais tarde dos excessos produzidos pelo fanatismo a que tinha chegado, fazendo a crítica tardia a essa exacerbação que se apoderou de toda uma geração naqueles anos pós guerra, a entender como infortunado o músico que não aderisse às novas tendências.
Contrário a concessões e desconfiado de sucessos imediatos, Serge Nigg entende que há tênue fronteira, por vezes, entre obra prima e outra, medíocre. Ter ouvido obras de compositores que tiveram aceitação em suas épocas e muito bem escritas e, sob outro contexto, criações consagradas, mas desprovidas de originalidade, leva-o a pensar na diferença fundamental entre a arquitetura e a música. Naquela, a solidez é premissa, mesmo que esteticamente o edifício se apresente como um fracasso. Na música “grandes sucessos musicais poderão não satisfazer aos teóricos, da mesma maneira que uma disposição harmônica agradável aos olhos pode soar apenas aceitável. Em contrapartida, partituras impecáveis do ponto de vista escritural e das técnicas de composição podem muito bem atingir um miserável resultado sonoro”.
Por meio de metáfora, compara o ex-aluno que não consegue libertar-se do aprendizado à criança que, ao começar a ensaiar os primeiros passos, titubeia. Contudo, ao tornar-se maior, andará normalmente, ao contrário do eterno aluno. Defende a liberdade de expressão, mas observa: “o artista sabe, melhor do que ninguém, a que ponto o livre arbítrio é conquista perigosa; para apreciar a liberdade plenamente, deve ele ganhar uma certa serenidade, condição de sua realização como criador, na plena acepção do termo”. Conscientemente questiona o criador: “O que é o verdadeiro artista criador, a não ser aquele que conjuga o controle do instinto, a evidência do estilo, a recusa de soluções fáceis e, sobretudo, a originalidade do emprego de meios – mais que os meios em si – com uma afetividade profunda ? Mas sem a técnica, e se apenas subsiste a afetividade, a obra não existe”.
É cáustico ao abordar modismos. Entende perigosa a posição de tantos compositores e intérpretes que se preocupam com o que está vigente, numa alusão não apenas a procedimentos como à possibilidade material. Afirma: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda. Ela passará seguramente, a música nesses termos também, enquanto, em outro contexto, a música pensada fora dos modismos conserva uma chance de se increver na história”. Torna-se um axioma para Nigg frase atribuída a Arnold Schöenberg e de “admirável consistência moral”, que poderia ser aplicada a todos os artistas criadores: “há meios degradantes de emocionar”. Serge Nigg combateria durante décadas aquilo que ele considerava a febril busca da reputação, a necessidade feérica de tantos, através da mídia, de agradar sob qualquer pretexto, contrapondo-se à reflexão: “apreciam-se melhor os raros oásis do gosto e da beleza que pagariam todo o resto”. Em outro contexto, comenta que novas gerações adoram julgar obras a partir da dificuldade que ela possa apresentar. Os depoimentos colhidos anos antes da morte encontram Nigg num espírito de síntese, a considerar a criação pelo essencial, independente da acolhida pública hostil ou favorável. Detém-se sobre a única questão que merece resposta: a obra traz alguma coisa para a música, para sua história, para a sua estética” ?
Sabemos que a música eletro-acústica é bem ventilada pela mídia. Apesar disso, merece por parte do público guarida bem discreta, se comparada à grande acolhida do repertório instrumental. Seria possível pressupor que o contato humano direto, geralmente inexistente, esteja a apontar as causas, mesmo que Festivais tenham público aficionado. Nigg observa “De minha parte, fui sempre totalmente alérgico à música eletro-acústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletro-acústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê ? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade. Eis o que é um som vivo ! Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. Acrescento que acredito extremamente grave que alguns possam imaginar que a música do futuro seja música de engenheiros com jalecos brancos, manipulando botões. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma noção que me aterroriza”.
Serge Nigg vê com cautela a proliferação de compositores, a acreditar que muitos jovens, ao sairem dos bancos escolares, já se consideram criadores. Para ele, todo grande compositor é um grande técnico, conhecedor profundo do métier. Saberá esquecer receitas adquiridas no aprendizado e terá sua linguagem, após consciente assimilação. O grande é, simplesmente. Considera que, se no passado conhecia músicos de todas as áreas, atualmente não existem senão “… compositores ! Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas” ! Cita Schöenberg, que afirmaria que, dos mais de mil alunos que teve durante cinquenta anos de ensino, dez teriam feito carreira. Destes, segundo Nigg, permaneceram Webern, Berg, Eisler, Zillig, Robert Gerhard e Skalkottas. Se considerarmos que apenas os dois primeiros podem figurar no firmamento dos ‘grandes compositores’, tem-se algo para reflexões”. E dessa quantidade abusiva de compositores hoje, conclui: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”.
Serge Nigg tece instigante observação nessa ampla visão que a idade proporcionaria: “É necessário compreender que o compositor, ao atingir o crepúsculo, é um homem que consagrou quase todas as forças para construir um mundo abstrato, um universo sonoro que corresponde fielmente àquilo que ele pretendeu. Asseverou-se de estabelecer leis e respeitá-las, jamais cessando de observar que os frutos de seu trabalho o levaram a múltiplas interrogações. Combateu todas as tentações da fantasia que podem permitir derivações, mas sempre a ter em conta a impalpável palavra nomeada inspiração… e que nem sempre está disponível ! Seu caminho é de uma lógica inevitável, mas a que preço, a não ser o da solidão” ?
Após tecer admiração pelos intérpretes profissionais – “escuta segura, instinto musical, senso dos andamentos, infalibilidade rítmica, etc.”- Nigg comenta determinado tipo de compositor “É muito desagradável verificar homens desprovidos da mais elementar bagagem musical imporem a grandes executantes diretivas que eles não dominam sob qualquer hipótese”. Pormenoriza-se nesse caminho complexo, no qual experiências até bufas são aceitas, considerando-as como falsificação. Agrada aos snobs inconsequentes e à crítica incompetente”. É severo e convicto quando julga “Não sou contra certa forma de provocação, não me desagrada essa mexida nos hábitos do público habitual, mas não admitirei jamais que o gesto sagrado da criação artística seja ridicularizado, mormente quando a grosseira mistificação tem como única função dissimular a vacuidade do saltimbanco de plantão”.
A respeito da obra aberta é categórico. Sem condená-la, pois não se mostra ditatorial, acredita que obra esboçada, a ser completada pelo intérprete, não pode receber o status de obra, entendendo-se a sua compreensão desde o Renascimento. Desenvolve raciocínio lógico ao observar: “Que seria de um romance a ser completado pelo leitor, da estátua na qual tenhamos a liberdade de suprimir ou acrescentar um membro ? A grandeza de uma obra reside na aposta, que faz supor o acabamento”.
Sobre a tão decantada desacralização, Nigg diz que a palavra o irrita. “Desacralizar o quê ? A Arte, o artista ? A obra ou seu autor ? Na verdade, trata-se, de certa maneira, de tentativa de certos funcionários da ‘Cultura’ justificarem suas existências, suas atividades… eventualmente seus salários” ! Mostra-se implacável ao dizer que “acreditar que basta um pequeno toque de varinha mágica para esvaziar milênios de tradição, isso se chama utopia”.
A uma pergunta provocativa de Gérard Denizeau, responde a questionar “O que é na realidade progresso em arte ? Outra coisa concernente ao passado, bem entendido; mas podemos falar de um progresso em forma de qualidade ? Podemos fazer algo melhor do que o canto gregoriano, do que a Catedral de Chartres ou da Missa em si, ou mesmo Don Giovanni… ? Que haja obrigação de renovar-se o material, os meios técnicos; porém, os princípios de elaboração de uma obra, a história nos ensinou”. Seu pensamento se estende à necessidade de redefinição inclusive da finalidade da arte e, nesse raciocínio, seu vocabulário e sua sintaxe. Nesse permanente fluxo, que pressupõe movimento e evolução, Nigg questiona se é possível fazer-se melhor, sobretudo se forem pensados períodos históricos difíceis.
As posições precisas, onde não há espaço para o tergiversar, tiveram exemplo claro na sua postura quando participou de júris: “Não é fácil quando se é compositor, mas o essencial é não se referir ao seu próprio gosto, à sua própria estética. Haveria nesses casos um intolerável abuso de poder; pois, no desenrolar de sua carreira, o artista já terá de suportar a ditadura do gosto, do dinheiro, do comércio, da política, etc. Melhor não o intimidar já nos primeiros passos”.
Os depoimentos de Serge Nigg bem evidenciam o artista em sua avaliação autocrítica nos anos finais da existência. Compositor e pensador mostram-se amalgamados e a concessão ficaria rigorosamente soterrada. Ao dizer, no curso do longo depoimento de uma década, que “a abnegação é necessária, como a paciência, a perseverança, a coragem a toda prova, uma certa capacidade de suportar o isolamento físico e a solidão moral”, já não demonstraria qualidades inalienáveis que o tornaram um dos grandes músicos franceses do século XX ? Pouco a pouco, Serge Nigg compositor ressurge. É bom sinal.

Pormenores do Olhar

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Luca Vitali, pintor e amigo, faz uma série de perguntas ao me ver retornar à cidade bairro Brooklin-Campo Belo: “independentemente da música, o que mais teria marcado sua última viagem a Paris ? Interessa-me o cotidiano. Há muita diferença do seu tempo de estudante com o atual” ? Tem ele o dom de ver as palavras, e toda narrativa lhe interessa, pois possível de descrição através da imagem.
Perguntas desse teor forçosamente remetem-me ao passado. Recentemente, naqueles poucos dias de Janeiro-Fevereiro, não deixei de me lembrar dos anos de aprendizado. As muitas viagens à Cidade Luz, independentemente da música, como frisou o amigo artista, trazem recordações nostálgicas daqueles tempos de estudante, quando a cidade estava apenas a 13 anos do fim da Segunda Grande Guerra. Prédios, museus e estabelecimentos públicos cinzentos, muitos ainda necessitando de reformas profundas, o cotidiano longe das comodidades oferecidas nos dias atuais. Seria possível acreditar que o meu olhar era também outro. O necessário excesso de estudo, a insegurança frente à vida, a concorrência pianística naqueles tempos de preparação para os concursos internacionais, a busca incessante pelo conhecimento teórico-musical e cultural mais abrangente, a solidão, todos fatores que influenciavam, certamente, o julgamento. Do que mais gostava era o desabrochar da primavera, quando daqueles galhos retorcidos nasciam folhas de um verde único e flores que o olhar guardou; ou, no sentido oposto, o desnudamento dourado no início do outono, quando as calçadas ficavam multicoloridas. O Parque Monceau, bem perto de onde morava, continua a ter a vocação para abrigar essas mutações. Mensagens serenas da natureza em transformação são inesquecíveis, pois sempre levam à paz interior.
Reiteradas vezes escrevi sobre minhas amizades absolutas, que estão a se prolongar há mais de cinquenta anos. Basta uma possibilidade de estar em Paris e o reencontro com todos se transforma num verdadeiro hino amoroso.
Luca questiona: “E o cotidiano, transporte na cidade, houve muita alteração” ? Começaria por um trem que pegava na chamada Gare du Pont Cardinet, não distante da Gare Saint-Lazare, e que atravessava parte da cidade. Para ir ao curso matutino da legendária Marguerite Long tinha de pegá-lo, pois me deixava bem perto da Academia da notável pianista e pedagoga. No inverno era bem difícil ficar à espera na manhã escura e varrida, por vezes, por ventos gélidos. Mas fazia parte do aprendizado. Ficara-me a impressão, àquela altura, de um povo meio soturno nos meses frios.
Contudo, a diferença maior que sinto quando vou a Paris é quanto ao povo que frequenta o metrô. Naqueles tempos, estou a me lembrar de uma grande maioria de franceses, mas era menos numerosa a presença de oriundos. Norte africanos, mormente argelinos. O cotidiano é implacável e difícil é esquecê-lo quando a atenção ou curiosidade levam à observação mais atenta.
Nos espaços de tempo que variam de dois a quatro anos, períodos que separam minhas idas a Paris, é possível perceber transformações que se mostram tênues para o viajante de passagem, e quase que imperceptíveis para o parisiense, pois elas se apresentam diariamente, não havendo, pois, recuo temporal para melhor avaliação. Sempre a ter o metrô como referência, cresceu imensamente, aos meus olhos, o afluxo dos povos da África e da Ásia, principalmente descendentes das ex-colônias francesas, assim como do Extremo Oriente. Como curiosidade, ao pegar na super movimentada Gare St. Lazare, entroncamento de tantas linhas, o metrô com destinação a St.Ouen, uma surpresa. Cerca de 90% pareceram-me desses continentes. Podia-se perceber que pertenciam a vários países, sendo que os mais jovens tinham possivelmente nascido em França. Muitos eram estudantes, havia professores também. Os alunos, de tantas raças distintas, conversavam descontraidamente em voz alta e era possível notar diferentes acentuações quanto à língua francesa. Tentei me concentrar nas falas e estranhei a quantidade de palavras fora do dicionário dito culto. Disseram-me mais tarde que há, nas várias raças que habitam a cidade, quantidade de termos que passam a frequentar a conversa do povo. Numa percepção outra, deu para sentir pessoas mais apressadas, a correr para seus compromissos. Ou não percebera antes, ou a idade faz com que tenhamos outra dimensão do tempo.
Naqueles anos juvenis era considerável a parcela de leitores de livros de bolso baratos. Foi uma das impressões que ficaram. Continua-se a ler na extensa rede metroviária parisiense. É questão cultural. Também não me esqueci da própria figura dos longínquos anos, “espelhada” no vidro da janela do metrô, quando nos túneis escuros. Questionava-me sobre passos futuros, e aquele imagem refletida parecia estar a me dizer para sempre continuar. Sentado, entre divagações, voltava à sempre leitura. Cinco décadas passaram e eis-me novamente diante da realidade desse “espelho”. Em poucos segundos, frente à porta, faço um resumo de mim mesmo. Em outro contexto, na prática ainda não havia em Paris a proliferação dos grafiteiros que inundaram o metrô de tantas cidades. Hoje essa espécie de vandalismo já se apresenta e os “espelhos” exibem excessivos rabiscos. Nos longos subterrâneos onde os vagões deslizam, paredes grafitadas, muitas delas com palavras obscenas, inclusive em português !!! Tempos outros.
Estamos habituados a ver mendigos e pedintes em nossas ruas paulistanas e, nos semáforos, aprendizes de acrobatas. Há presentemente, em locais precisos de Paris, imigrantes sentados nas calçadas pedindo esmolas. Ao passar lentamente por vários deles, que estavam a dialogar com conterrâneos, ouvi acentos eslavos, mas confesso que não saberia dizer a procedência. Como transitei vários dias pelos mesmos locais, lá estavam os personagens, exatamente nos lugares por eles escolhidos.
As livrarias parisienses chamam-me sempre a atenção pela diversidade, e preços médios são constantes em edições, tantas vezes primorosas. Elas proliferam pelos bairros, o que é salutar. Adquiri alguns sobre música e aventuras. Livros de bolso com papel reciclado têm tido uma grande guarida e não me pareceram caros. Em contrapartida, comprei, para um jantar oferecido por amigos, garrafas de um vinho chileno bem comercializado em São Paulo. É de pasmar, custava E$ 6,50 a garrafa, sendo que em supermercado bem conhecido de nossa cidade o preço ultrapassa os R$ 34,00 !!! Para chegar à França, a nobre bebida atravessou todo o Atlântico !!! E já houve críticas de governantes à campanha diária e essencial de uma de nossas emissoras: “Brasil, o país dos impostos” !!!
Observar o cotidiano tem interesse. Regressos à sempre belíssima Paris despertam incondicionalmente novas reflexões. Aprendemos com esse revolver permanente, balanço dos acúmulos. São estes que tornam o envelhecer, a depender das individualidades, um outono onde as folhas douradas podem representar a diferença.

During my recent visit to Paris, I couldn’t help comparing the place where I lived in the fifties with the city as it is today. Impossible not to sense how it has changed. I was impressed by the influx of immigrants – mainly Africans, Asians and Eastern Europeans – and by the changes the ethnic composition of the city has undergone in just half a century. But something has not changed: it is still the “city of light”, fascinating and incomparable.