Rememorando outra Viagem de ônibus

Que a imaginação te engorde e a matemática te emagreça.
Agostinho da Silva

Conversava com meu amigo Luca Vitali. O arguto artista lera os últimos posts de uma só vez. Disse ter gostado dos dois sobre as ferrovias, mas provocou-me: “Certamente você deve ter também outras experiências com ônibus de longo percurso, pois lembro-me de um seu post bem anterior.” Uma delas já abordei (vide Experiência que Marcou – Caminho para Varna, 18/07/2009); mas, ao continuar a nossa conversa, lembrei-me de uma cheia de situações inusitadas. Fomos direto a um curto e prolongamos ideias.

Quando na Bélgica, por várias vezes fui a Paris de comboio. Nos anos 90, de Gent a Bruxelas em trem comum, e de lá a capital francesa em TGV. Hoje há confortável linha direta a ligar Gent a Paris. Em 1999, Christiane, uma amiga que trabalhava na Rode Pomp, disse-me que eu deveria fazer ao menos uma vez a viagem em autocar e assim conhecer outras paisagens e também as auto-estradas que atravessam os dois países. Aquiesci e realizei uma dessas viagens, que normalmente duram quatro horas.

Estou a me lembrar que o ônibus saiu bem cedo, quase que lotado, e que cerca de 80% dos viajantes eram árabes do norte da África, pois suas figuras são marcantes. Há dignidade nesses semblantes, muitos deles sofridos. Alguns vestiam roupas próprias de suas regiões, os homens com toucas ou taeias e as mulheres com lenços ou xales. A linha rodoviária por autocar, Gent-Paris, não era diária, daí o afluxo. Christiane, de extrema gentileza, preparou-me alguns sanduíches e uma garrafa de água. E lá saímos em direção à Gare du Nord, eu tendo ao meu lado um jovem francês descontraído, de pequena estatura, tez bem avermelhada, olhos claros. Trajava jaqueta e boné bem surrados e imensa vontade de conversar. Como eu estava sempre a ler e por vezes olhava a paisagem, o companheiro de viagem interrompia a sua fala por determinado tempo, a me proporcionar transitório alívio.

Na fronteira dos dois países o ônibus parou e alguns guardas alfandegários franceses, armados até os dentes, subiram, a olhar com arrogância os passageiros. A certa altura, bruscamente, retiraram o jovem que estava ao meu lado e o levaram com certa truculência ao posto da polícia de fronteiras. Da janela deu para acompanhar policiais segurando com firmeza os braços do infortunado, atravessarem as duas pistas e entrarem no posto. Em nenhum momento senti-o culpado, tal a descontração e a informalidade de uma pessoa absolutamente comum.

Algo de muito estranho deveria estar a passar, pois o viajante lá permaneceu por cerca de duas horas. Não apenas não tínhamos permissão para descer, como nada respondia o policial que ficara à porta do autocar. Inútil dizer que a toilette do autocar serviria como último recurso para básicas necessidades. Após o longo interrogatório, vi o jovem atravessar a auto-estrada escoltado pelos gendarmes, sem que apertassem, dessa vez, os braços do moço. Qual não foi o meu espanto quando um dos agentes entrou no ônibus a impor, de maneira a não deixar quaisquer dúvidas, a nossa saída do veículo, com todos os nossos pertences, inclusive a bagagem do amplo porta-malas. Como estava a ler e a anotar, fui o último a descer, ficando pois no fim de uma extensa fila no posto alfandegário situado na pista em direção a Paris. Tudo, mas tudo, foi revistado. Após uma hora de investigação minuciosa e inóspita, pois bagagens, documentos e as roupas eram verificadas, calculei que ainda teria de esperar uma outra boa hora. Dirigi-me a um dos policiais e mostrei uma carta da Bibliothèque National de Paris, pois teria uma reunião no Centre de Documentation Claude Debussy no dia seguinte. Leu-a sem me olhar, deixou-me livre daquele entrave e não revistou minha bagagem. Ao solicitar permissão para ir ao toilette do posto alfandegário, o policial imediatamente afirmou que teria de me seguir. “Com todo o respeito, não há um certo exagero por parte do senhor?”, disse-lhe. Desconcertado, deixou-me ir não apenas ao toilette como retornar ao ônibus com todos os meus pertences. Exausto, adormeci uma boa meia hora. Ao acordar, senta-se ao meu lado o jovem viajante a sorrir. Afirmou-me que pensaram ser traficante e que estivesse com drogas. Teve de ficar completamente nu. Fizeram-lhe mil perguntas, pois o posto recebera aviso de que aquele ônibus estava com entorpecentes. Perguntei-lhe pelo desfecho. “Tive medo, sofri humilhações, mas não me bateram”, foi a resposta sempre em tom humorado. Contou-me que estava a retornar à França unicamente para buscar novo emprego, após ter permanecido um ano na Bélgica.

Permanecemos quatro horas nesse posto de fronteira. Foi quando abri minha sacola de mão e retirei meus três sanduíches médios. Ofereci um a ele, que imediatamente o devorou. Estava na metade de meu primeiro sanduíche quando o jovem me perguntou se eu iria comer o terceiro. Entreguei-lhe. Antes que terminasse o meu “primeiro”, os dois outros já tinham sido deglutidos por meu companheiro de viagem. Abri a garrafa de água gaseificada de 750cc, mostrei-a ao rapaz e ele nada disse. Após uns goles que acabara de dar, afirmou-me que estava com sede. Passei-lhe a garrafa quase cheia e bastaram alguns segundos para que a esvaziasse. Ainda faltava a barra de 100g de excelente chocolate belga. Ofereci ao alegre vizinho de trajeto, que com forte pressão dos dedos cortou-o e ficou com mais de metade da barra. Da parte que sobrou tirei dois pequenos pedaços, guardando o restante. Minutos após, nova pergunta “O senhor ainda vai comer o chocolate”? Nem respondi, apenas entreguei-o ao voraz “companheiro”. Tenho a certeza que, se café houvesse, teria eu sorte se ficasse com o restinho do fundo de xícara.

O ônibus ainda fez uma parada rotineira em um desses postos de conveniência no meio do trajeto. Chegamos em Paris após oito horas de viagem. Ao se despedir, o sorridente jovem ainda observou “Gostei muito de nossa conversa. O senhor é um velho simpático”. Estendeu-me a mão, cumprimentamo-nos, sorri desconcertado e lá foi ele em busca de seu destino. Fiquei a pensar, que conversa? Eu só entregava a ele o que me era pedido e o moço não parava de falar… e de comer. O certo é que tive tempo de sobra para ler e fazer a revisão dos temas da reunião parisiense. Do que a caridosa amiga Christiane me deu em Gent, bem mais de três quartos ficaram com o vizinho de assento.

Na capital francesa, o fato foi motivo de boas risadas quando narrei pormenores dessa viagem inusitada. Ao final dessa lembrança, Luca, que tem sempre um lápis ou pincel na mente, observou que a viagem de ônibus é a mais solidária, e as pessoas muitas vezes se confraternizam. Dei-lhe inteira razão. Sob outro aspecto, se a viagem fosse sem percalços, não estaria aqui a me lembrar dessas situações inusitadas. Luca me surpreenderia dias após com o desenho que serviu de ilustração. O choque a aguçar nossa memória e imaginação.

My adventures on the road from Gent to Paris with a weird and hungry seatmate.

 

Os 51 Exercícios para Piano de Johannes Brahms

Apele para a inteligência e a razão dos alunos,
conduza seus trabalhos mais com a mente do que com os dedos,
ensine-os a pensar e a se concentrar mais.
Os alunos devem entender claramente
que o importante não é a quantidade de horas
e sim a qualidade do trabalho.
O trabalho puramente mecânico, sem pensamento, é inútil.

Georges Amédée Saint-Clair Mathias (1826-1910)
Recordação de ensinamento recebido de seu mestre Frédéric Chopin

Desde 2007 foram inúmeros os posts em que abordei a problemática pianística, tanto no aspecto da interpretação como no do ensinamento. A transmissão de conhecimentos adquire tipicidade, pois durante os anos de aprendizado as aulas têm um cunho individual, mormente no Ocidente. Incontáveis são os processos de ensino, e contam-se às centenas os métodos publicados desde o período barroco, visando à edificação inicialmente de um cravista e, na sequência histórica, de um pianista. Se considerada for a essência desses métodos, quase todos seguem o desenrolar da história e, geralmente, há quase que parte de um déjà vu. Todavia, se talento houver por parte do autor, alguns processos novos quando aceitos pela comunidade, mercê dos resultados, serão incorporados aos métodos que constantemente enriquecem a bibliografia específica.

Verifica-se que a imensa maioria dos professores de piano no Ocidente dedica-se unicamente às aulas individuais. Se à prática do ensino somar-se aquela da interpretação, essas lições podem ter a configuração coletiva, as famosas master classes, quando o pianista-professor busca exemplificar in loco as intenções que estão a ser transmitidas.

Em termos de Brasil, a nossa literatura voltada à solução dos problemas em suas imensas gradações é pequena, tanto a direcionada ao técnico-pianístico como a literário-analítica, se comparada  com a de alguns países europeus, da Rússia, Japão e Estados Unidos. Apesar de basicamente partirem de acúmulos de outras culturas, louvem-se determinados atributos novos encontráveis em algumas publicações pátrias.

O pianista Nahim Marun tem sólida formação pianística e desempenha com invulgar competência a sua atividade profissional. Teve dois mestres da maior expressão, que foram Izabel Mourão no Brasil e Grant Johannesen nos Estados Unidos, onde estudou durante vários anos. Os longos períodos, em etapas diferentes, sob a orientação de dois notáveis pianistas e professores propiciaram a Marun o embasamento competente. Realizou seu mestrado no The Mannes College of Music de Nova York, doutorado na Unicamp e pós-doutorado na Paris-Sorbonne. Como pianista, Marun tem significativa discografia premiada. Presentemente é professor nos cursos de graduação e pós-graduação na Unesp. Sob outra égide, Marun tem o raríssimo dom da curiosidade, não se restringindo ao ensino ou à atividade pianística meritória, mas a buscar os porquês da problemática técnico-pianística e suas implicações no desenvolvimento de um jovem que aspira a bem tocar. Foge pois de uma mentalidade, hélas, tão presente no Brasil, do professor que tem como meta a preparação de jovens “concurseiros”, o que, em certo aspecto, pode impedir a abertura das mentes desses aspirantes para voos mais altos quanto ao conhecimento musical abrangente e à apreensão humanística.

A técnica pianística tem sofrido inúmeras transformações, mormente a partir da segunda metade do século XX, e o professor atento tem de acompanhar e preparar-se para novas abordagens. Mesmo se a apreensão repertorial fixá-la em períodos históricos delimitados, entender a evolução do técnico-pianístico a partir da tradição torna-se imperativo.

Pois teria sido essa uma das razões de Nahim Marun ter escrito o substancioso livro “Técnica avançada para pianistas – Conceitos e relações técnico-musicais nos 51 Exercícios para piano de Johannes Brahms” (São Paulo, Unesp, 2010). Segundo relatos, Brahms foi bom pianista e percorreu um repertório dos mais fascinantes, que abrangia obras importantes de Bach, Beethoven, Schubert e Schumann, assim como quase toda o sua vasta e complexa produção pianística solo, camerística ou mesmo os dois concertos para piano e orquestra de sua lavra. Essa frequência ao grande repertório publicamente apresentado seria prova inequívoca da competência pianística de Brahms. Todo esse longo caminho a desvelar para o leitor brasileiro o compositor-pianista foi traçado com profunda acuidade por Marun. Menciona comentários da época, que nos fazem captar a familiaridade voluntária do compositor com o piano e a preocupação em legar aos pósteros Exercícios que pudessem servir ao aperfeiçoamento dos pianistas.

Estou a me lembrar de ter conversado com nosso grande compositor Francisco Mignone (1897-1986) sobre os 51 Exercícios de Brahms, logo após o mestre brasileiro, informalmente, ter exemplificado com a mais absoluta destreza, em visita que fizera a nossa casa, determinados exercícios por ele criados que “enroscariam” os dedos de pianistas experientes. Realizava-os em todas as tonalidades e em andamentos bem rápidos, a manter a mesma dedilhação. Disse-me que os “seus” preparavam os dedos para as suas composições, assim como os de Brahms para as dele. O compositor alemão, aliás, igualmente propunha a transposição de seus Exercícios. Nesse item preciso, Marun pormenoriza com atenção a criação desses exercícios e sua aplicação em tantas obras de Johanes Brahms. Os pianistas sabem que há particularidades transparentes na escrita do compositor tedesco. Dir-se-ia que suas obras sinfônicas podem perfeitamente se adaptar ao piano e vice-versa. Brahms edifica um idiomático técnico-pianístico tipificado, onde não falta a presença de sólida densidade estrutural. Quantas não são suas obras que apresentam massa de acordes na configuração vertical ou fluidos, ou a insistência – verdadeira impressão digital – da relação de três figuras contra duas ou, ainda, construções técnico-pianísticas complexas? René Leibowitz não observaria (L’évolution de la musique, Paris, Corrêa, 1951) que, se houvesse a hipotética “fusão” Schumann-Brahms, teríamos o compositor romântico por excelência, pois a fluência natural e a espontaneidade melódica de Schumann se ajustariam a toda a estrutura de sólida confecção proposta por Brahms?

Nahim Marun pormenoriza, embasado documentalmente, as origens dos 51 Exercícios até a publicação em 1893 e a feitura de outros 30 adicionais, posicionando-os ao longo da trajetória. Tabelas  expostas dão a exata orientação ao leitor do histórico de exercícios e estudos ao longo dos séculos, das várias escolas que focalizavam o técnico-pianístico como um todo, assim como a aplicação dos 51 Exercícios na avaliação de Brahms, Pozzoli e Isidor Philipp. É excelente o capítulo 4, “Os 51 Exercícios de Brahms”, em que Marun detalha cada exercício e a sua utilização prática em obras do compositor. Posteriormente encaminha o leitor à destinação de cada um e como realizá-lo.

Farta iconografia, a esclarecer posições corporais e das mãos sobre o teclado, leva o leitor estudante ou pianista à compreensão da importante obra. A visualização dos procedimentos impediria o entendimento equivocado.

Em Le Piano de Marguerite Long (Paris, Salabert, 1959), método, a meu ver, que conseguiu realizar a mais completa síntese dos modelos tradicionais técnico-pianísticos em fórmulas concentradas, a lendária pianista e professora foi buscar exemplos significativos de exercícios através da história. Clementi, Bériot, Hanon, Tausig têm configurações básicas inseridas no método. Os exercícios 8a e 8b dos 51 Exercícios estão presentes na obra, em subcapítulo dedicado aos arpejos, sob o título Exercice d’après Brahms.

Considero o livro de Nahim Marun obra indispensável para a biblioteca de estudantes e pianistas. O entendimento dos 51 Exercícios não apenas  fornece elementos fulcrais à preparação e feitura de tantos procedimentos de Johannes Brahms, como aplica-se à técnica pianística como um todo, dos compositores precedentes aos pósteros que tiveram como material formulações tradicionais, corroborando pois a formação do pianista.

An appreciation of the book “Técnica Avançada para Pianistas” (Advanced Piano Practice Technique), written by the pianist and teacher Nahim Marun, in which he addresses Brahms’ 51 Exercises for Piano. Thanks to Marun’s solid professional background and rare competence, the work allows not only the understanding of techniques related to Brahms’ piano pieces, but also of a great many technical problems found in piano music as a whole. An indispensable reading for both students and teachers.

 

A Magia da Amizade

La grande objection
que les matérialistes ont toujours faite aux spiritualistes
et qu’ils font encore, mais moins hardiment aujourd’hui,
se résume en ceci: Pas de pensées sans cerveau.
L’âme ou l’esprit est une sécretion de la substance cérébrale;
le cerveau mort, la pensée s’arrête et il ne reste rien.

Je ne suis qu’un instant de Dieu,
mais tout instant est éternel.
Maurice Maeterlinck
(Gent – 1862, Nice – 1949)

As relações humanas são muito complexas, mormente quando envolvem a atividade principal do ser. Quando o músico tem o privilégio de gravar no Exterior, pode ele ser instado a fazê-lo em vários centros do planeta. Estou a me lembrar que, após recital na Rode Pomp em 2006, um agente de gravadora super conhecida mundialmente, durante o jantar no restaurante contíguo à sala de concertos, e que funcionava de quinta à sábado à noite após as récitas, convidou-me para com eles gravar, a dizer que a tiragem seria bem superior à artesanal da Rode Pomp e que a difusão, por consequência, resultaria extraordinária. Perguntei-lhe em que lugar eles gravavam. Respondeu-me que dependia das circunstâncias e que elas poderiam ser realizadas em qualquer parte do mundo. Fiz-lhe uma segunda pergunta, já a saber a resposta, pois conhecia inúmeras gravações do importante selo: “posso escrever o texto do CD”? A resposta foi clara, “não”, pois geralmente nem textos explicativos havia nesses CDs. Para mim, o texto do intérprete que acarinhou um projeto contém algo de etéreo e espiritual, a formar o amálgama com a mensagem sonora. Naquele instante chegava André Posman. Diante do agente, disse ao grande amigo que nossas gravações continuariam ad eternitatem a se processarem na mágica capela Sint-Hilarius, em Mullem, sob a direção de meu querido amigo e engenheiro de som Johan Kennivé. O cidadão ficou um tanto quanto pasmo quando me levantei e dei um afetuoso abraço em André Posman. Se anteriormente gravei CDs na Bulgária e, circunstancialmente, em Portugal, para um projeto preciso e dignificante a envolver o extraordinário compositor Lopes-Graça, é em Sint-Hilarius que meu de profundis aflora e que consigo transmitir minha mensagem musical na atmosfera do inefável. É uma dádiva ter um Grande Mestre como Johan Kennivé, sensível e sereno a captar as reverberações de Sint-Hilarius. O que podem significar a grande divulgação ou aquela palavra tão decantada, “sucesso”, diante daquilo que realmente somos? A “herança musical a ser deixada”, proposta por André Posman, tornar-se-ia o desafio incessante em busca da qualidade ímpar.

A honraria outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, que me foi entregue pelo Sr. Cônsul Geral da Bélgica em São Paulo, Sr. Peter Claes, teve comentários vindos das longínquas terras, que me comoveram sensivelmente. Essas amizades ficaram de tal maneira intensas que seria difícil transmiti-las ao generoso leitor. Três desses amigos que estão presentes no meu cotidiano e que anualmente são motivo de alegria imensa quando chego a Gent, escreveram pequenos textos: Johan Kennivé, André Posman e Tony Herbert. Cada um a mostrar dados que nos uniram indelevelmente. Um quarto depoimento veio de Magnus Bardela, meu ex-aluno na universidade e há tantos anos meu professor absoluto na computação e no apreciar as edições de meus CDs. A ele devo gratidão eterna pela edição de quatro dos meus CDs gravados em Sint-Hilarius quando não tinha as menores condições físicas de fazê-la devido às intensas quimioterapias. Magnus foi impecável, mercê da competência muito elogiada por Johan Kennivé. Da França, François Servenière traça comovente apreciação do relacionamento humano e estabelece bela metáfora. Por fim, Álvaro Guimarães, saudoso amigo, responsável pela minha primeira visita às terras flamengas. Estivesse entre nós, certamente Álvaro teria participado desses momentos que ficarão guardados no coração e na mente (vide Álvaro Guimarães 1956-2009, In Memoriam. 04/07/2009).

“A cada ano em que meu amigo José Eduardo gravava na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, num piano vindo especialmente para suas gravações, os compositores podiam apreciar os sons no pequeno cemitério que circunda o templo. O piano de concerto que ocupava a capela tornava-se o centro de uma religião extraordinária e imaterial. Assim como anualmente temos a Páscoa e o Natal, assim também todo o ano meu amigo José Eduardo retornava às gravações. Representava ele a definição da duração de cada ano. Quando nós dois, irmanados, lá estávamos na obscuridade e no silêncio da noite, José Eduardo impedia que o tempo continuasse a sua trajetória, pois o cansaço não o atingia. Diria que meu amigo tinha uma outra noção do tempo. Dez horas da noite, meia noite, 5 da manhã, e a eternidade nunca esteve tão próxima. Nós ambos, o piano, a reverberação de Sint-Hilarius e os compositores que ouviam e entendiam a amizade eterna através da Música.

Penso que agora os compositores não entendem o porquê de a Música ter desaparecido de Mullem. Eu expliquei a eles: José Eduardo começou a correr. Atravessou os oceanos para mostrar aos brasileiros a pequena cidade de Mullem com as suas cervejas Triplet-Trappists, com os túmulos ancestrais do cemitério, com os compositores que reviviam a cada ano, numa ressurreição de seus espíritos e suas músicas, através das mãos do grande pianista José Eduardo Martins. Foi devido a esse trabalho, com repertórios por vezes duríssimos, noites e noites, como o alpinista que deve continuar ou morrer, que José Eduardo sofreria cirurgias na base de seus dois polegares, destruídos pelo esforço. Ele sofreu com amor. Não seria a estética uma maneira de sofrimento? Como amigo eu digo que José Eduardo Martins merece a honra de receber de Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Tenho a certeza de que José Eduardo dirá: ‘Je t’aime beaucoup et je t’embrasse de tout coeur’.
José Eduardo é um amigo para a vida e para a eternidade”.
Johan Kennivé – Engenheiro de som

“Foi em 1999 que André Posman, organizador dos concertos na Rode Pomp, pediu-me para abrigar o grande pianista José Eduardo Martins. À sua virtuosidade como intérprete, José Eduardo tem o dom da curiosidade. Eu gostava de contar a ele tudo o que eu sabia sobre a Bélgica e sobre a minha cidade natal, Gent; José tudo ouvia interessado. Percorremos a cidade ao longo dos anos, e nada lhe era indiferente. Certamente a vida cotidiana e os costumes locais diferem bem daqueles de São Paulo. Tudo o que ele via era motivo de questionamento: como e porquê. Rapidamente vi-me incapaz de lhe dar uma boa resposta. Na realidade eu não sou especialista nesses aspectos da minha Gent. Todavia, José não podia ir dormir sem antes saber todas as respostas. É bem possível supor que ele perguntasse a cada Gantois que cruzava seu caminho, ou ainda ter ele pesquisado na biblioteca – eu não sei – mas no dia seguinte, durante o café da manhã, ele me dava a resposta bem detalhada à pergunta que eu não conseguira responder no dia anterior. Em pouco tempo, José Eduardo sabia mais do que eu sobre a vida cotidiana belga.

Resumo: José Eduardo é como os novos aspiradores robotizados. A informação é para ele o que a poeira é para o aspirador. Ele busca a informação e as assimila, sem nada escapar. Evidentemente, José Eduardo é mais do que um aspirador-robot; tem um coração de ouro, onde a Bélgica ocupa um lugar importante.
E, finalmente, José Eduardo tem um bom senso de humor.
Viva a Bélgica! Leve België! Viva o Brasil”!
Tony Herbert – meu eterno anfitrião em Gent. Sua foto ilustra o post anterior. (vide TTTT e o Saber Viver. 12/04/2008)

“Foi com imenso prazer que eu soube que você receberá a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Como presidente da entidade cultural De Rode Pomp em Gand, eu estou profundamente orgulhoso, pois ajudei a construir a sua “herança artística” através dos 11 CDs da mais alta qualidade gravados para o nosso selo, assim como organizei mais de vinte apresentações suas como recitalista e camerista em minha sala de concertos em Gand. Também traduzi para o flamengo, para a nossa revista de música “Nieuwe Vlaamse Muziek Revue”, artigos escritos por essas mãos ricas de cultura e de conhecimento, oportunidade que tive para conhecer muitas coisas interessantes sobre a música e a cultura brasileiras.  Curiosamente, eu propus projeto similar de ‘fixação de herança artística’ para muitos grandes artistas, mas você foi o único que o realizou, você foi o único que compreendeu a empreitada, tendo vontade de investir a energia, esportividade em entender as várias situações e o precioso tempo para realizar um projeto internacional que construímos solidários. Eu lhe agradeço de todo o meu coração e chegará o tempo em que  escreverei nossa história desde os primórdios.
Eu desejo ao meu querido amigo muitos anos de fértil produção”.
André Posman – Presidente da Rode Pomp

“Acompanhei meu amigo e professor em algumas de suas atividades nas terras flamengas e lembro-me bem do inverno que enfrentamos em 2004, na ocasião do “Internationale, tweejaarlijkse vertolkerswedstrijd van hedendaagse kamermuziek” (Bienal Internacional de interpretação de música de câmara contemporânea), concurso da Antuérpia, onde JE durante três dias participaria  como membro do júri. A neve e o vento gelado nos castigavam naquelas longas caminhadas entre a estação de trem e o teatro De Singel – o que nos resultou em um resfriado de épicas proporções. Segundo a meteorologia, havia sido o pior inverno dos últimos anos.
Visivelmente cansado, pois passara as madrugadas da semana anterior gravando em Mullem, JE permanecia firme e bem humorado. No entanto, não sabíamos que o considerável esforço físico, somado à perda recente de seu querido genro, iriam despertar os primeiros sintomas de um grave linfoma, o qual combateria, durante os próximos meses, com a fé e o querer-viver incomuns que possui dentro de si.  Lembro-me do grave e-mail enviado pelo amigo: relatava o sombrio diagnóstico dos médicos e dizia que não se deixaria abater. E, de fato, não se abateu, pois fixou metas, deu recitais ainda convalescente e se propôs a gravar a integral dos Estudos de Debussy no ano seguinte – “se Deus assim permitir…”, como dizia.
Para JE, viver era poder retornar aos palcos coloridos criados por Boris Chapovalov na Rode Pomp; era se dirigir à madrugada silenciosa da planície flamenga, ao coração de sua querida Capela St. Hilarius em Mullem e deixar sua herança musical sob a companhia de pedras de mil anos e dos modernos microfones do amigo Johan Kennivé.
De lá para cá, muito aconteceu. O professor teve concedida não apenas a Divina Permissão  para o CD Debussy, mas também para tantas outras gravações, recitais, blogs, livros, honrarias e corridas(!) que vieram e ainda estão por vir.
Assim sendo, penso que a condecoração recebida do Reino da Bélgica no último dia 18 deveria ser entendida de maneira especial. Afinal, não seriam os mais de vinte CDs e inúmeros recitais lá realizados o resultado dessa relação amorosa com o país e as pessoas que JE elegeu para confiar sua música? Se assim entendermos, descobriremos o que a distinta medalha vem realmente reconhecer: o amor e a dedicação incontestes desse grande artista e amigo”.
Magnus Bardela – ex-aluno, hoje meu professor nessa complexa área da informática.

“Essa história de amor com a Bélgica contada por você é apaixonante de se ler. Descobrimos todo o tecido de relações, palavra terrivelmente adequada, quando percebemos que toda essa ramificação, efetuada por mais de 15 anos ao seu redor, foi construída por você ou por outros daquele país, para se chegar aos dias de hoje. Uma aranha não teria construído uma teia tão perfeita”!
François Servenière – compositor e orquestrador francês

In this week’s post I publish messages I received from friends in different countries with stories inspired by the insignia I received from the Belgian government.