Frente ao Inevitável

Radiografia pré-operatória. Seta a indicar a articulação da base do polegar esquerdo. Clique para ampliar.

O estudo de piano necessita prolongados esforços.
Esses não implicam lutar contra a natureza.
Uma mão normal é feita para tocar piano
e todo pianista que não compartilha dessa convicção
é indigno de sua arte.

Marguerite Long (Le Piano de Margueite Long)

Ao estudar a integral dos Estudos para piano do grande compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915), apresentando-a em 1977, deparei-me com um problema singular, a quase total inexistência da passagem do polegar em sua opera omnia para o instrumento. Ter-me debruçado sobre a totalidade da produção de Scriabine levou-me a considerar hipóteses que mereceram um laudo médico sur le tard.
No início dos anos 80 conversei com o Prof. Dr. Heitor Ulson, competente especialista de cirurgia da mão, sobre um mal do qual Scriabine teria sofrido em sua mão direita (1890), o que o impossibilitou, durante certo período, de tocar com as duas mãos e, posteriormente, utilizar de maneira a mais econômica possível a chamada passagem do polegar. O cirurgião aventou a possibilidade de o compositor russo ter sofrido do mal de De Quervain, síndrome descoberta por Fritz de Quervain (1868-1940), cirurgião suíço, mal este descrito em 1895 (tenossinovite do extensor e abdutor do polegar). Para artigo que redigi para revista especializada francesa, o Dr. Ulson escreveu esclarecedora nota de rodapé, a posicionar sua teoria (Quelques Aspects Comparatifs dans les Langages Pianistiques de Debussy et Scriabine. In: “Cahiers Debussy”, Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nouvelle série, nº 7-1983, pgs. 24-37). Apreendi através de colegas pianistas que mestres russos acataram nossas teorias e admitiriam posteriormente que não havia sido detectada até então essa particularidade do técnico-pianístico em Scriabine, ou seja, a sua quase que absoluta rejeição à passagem do polegar e, paradoxalmente, o emprego acentuado de grandes aberturas da mão direita e da esquerda (esta por analogia) em sua extraordinária criação. Sob aspecto outro, as citações bibliográficas voltadas à suposta inflamação da mão direita e datadas do final do século XIX ainda perduravam. A causa da provável inflamação, segundo consenso, foi provocada por estudos pianísticos excessivos. O jovem Scriabine teria sido, inclusive, tratado com óleo de rícino e frequentado estância termal.
Em meados dos anos 90 – à época, a beirar os sessenta anos – comecei a sentir dores nas articulações da bases dos polegares. Aconselhado por amigo, consultei reumatóloga conceituada. Após examinar pormenorizadamente minhas mãos, disse-me que já tocara muito em minha vida, sugerindo que, doravante, o ideal seria tocar apenas para meu deleite. Com a maior serenidade !!! Escusado dizer que levantei-me, paguei a consulta e deletei por completo o vaticínio contra natura de minhas intenções e índole.
Durante os estudos pianísticos observava, progressivamente, o mal se avantajar. Consultas abalizadas com o ilustre Dr. Heitor Ulson, primo irmão de minha mulher Regina, resultavam sempre no esclarecimento a levar-me à certeza da intervenção cirúrgica. Fatalmente ela iria ocorrer. Tivera experiência outra quando, no final dos anos 80, o Dr. Ulson me operou de uma tenossinovite estenosante (dedo em gatilho), com amplo sucesso. Contudo, no mal que progredia nos polegares, eu só sabia protelar. Gravações no Exterior desde 1995, recitais com repertórios tantas vezes a solicitarem um limite sonoro extremo nas altas intensidades eram precedidos por fortes doses de anti-inflamatórios cada vez mais poderosos. Mas, com receio da intervenção, persistia em evitar o inevitável.
Foi após a gravação dos dois CDs na Bélgica e da longa tournée em Portugal em Maio último que o processo chegou ao limite. Dores e inchaço, mormente na região do polegar da mão esquerda. Algumas obras do extraordinário Lopes-Graça exigiam sessões longas de grande impacto e num processo técnico-pianístico em que as mãos permanecem em ampla abertura. Ao regressar, radiografias apontavam para a imperiosa necessidade de cirurgia reconstrutiva. A inflamação da base da articulação dos polegares, denominada Rizartrose, lá estava instalada, a não sugerir sofismas. Acatei o competente diagnóstico e agendamos à operação para o dia 5 de Julho último. Tinha a certeza da escolha do cirurgião. Decisão irrevogável. O médico Heitor Ulson, Prof. Dr. do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNICAMP, Coordenador da Área de Cirurgia da Mão e Ex-Presidente da Associação Brasileira de Cirurgia da Mão, teria a acurada atenção que o tornou respeitado no Brasil e no Exterior.
Para a elaboração de um post elucidativo para leigos, músicos e médicos, solicitei ao cirurgião um laudo esclarecedor, inclusive com imagens, tanto da radiografia como do ato cirúrgico. As fotos tiradas durante a cirurgia podem causar impacto, daí ter, para a ilustração em menor formato, inserido uma tarja azul sobre a área que estava sob intervenção cirúrgica. Se o prezado leitor se interessar, poderá clicar sobre a imagem para visualizar a foto ampliada sem tarja. Contudo, não recomendo essa vizualização àqueles mais sensíveis. Friso, o post só foi feito com a mútua anuência do paciente e do cirurgião. Aliás, o ato cirúrgico, que foi bem documentado, é parte da apresentação que o Dr. Heitor Ulson fará durante o XIº Congresso da Confederação Internacional da Sociedade de Cirurgia da Mão, a ser realizado entre os dias 30 de Outubro a 5 de Novembro em Seul, na Coréia do Sul.
Eis o precioso depoimento:
“Atendendo a seu pedido sobre o procedimento cirúrgico a que tivemos a honra de submetê-lo recentemente, passo a considerar os fatos mais relevantes: Inicialmente, a afecção – assim chamada de ‘osteo-artrose da base do polegar’ (Rizartrose) – é bastante frequente, acometendo principalmente as mulheres em torno ou após a menopausa. Entretanto, não poupa os homens e está em ascensão, pois as faixas etárias mais elevadas são crescentes em todo o mundo. Vivemos mais e nos desgastamos mais! Estes ‘desgastes’ ou alterações degenerativas também são influenciados por fatores genéticos, hormonais, ocupacionais e ainda por outros, menos conhecidos. Quando o estágio de desgaste da superfície cartilaginosa da junta é avançado, ocorre atrito das partes ósseas expostas, produzindo cada vez mais dor e limitação funcional correspondente ao polegar que, sozinho, representa 42% da função da mão. Assim, ou nos adaptamos temporariamente à situação dolorosa – que tende a progredir de forma variável na intensidade e velocidade, porém quase sempre para pior – ou procura-se tratamento médico-cirúrgico.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Foto: Ortoclínica Manus. Clique para ampliar.

Há várias décadas os cirurgiões especialistas da área procuram resolver essa situação aflitiva e os métodos variam bastante, indo de operações sobre partes moles ou articulares, com ou sem próteses. Para os casos onde há demanda de movimentos mais amplos, variados e, se possível, indolores, a técnica cirúrgica por mim preferida é a biológica, esta usando tecidos do próprio paciente. Reconstroem-se ligamentos após a ressecção parcial do osso ‘doente’ (trapézio) e introduz-se em seu lugar uma porção de massa muscular da eminência tenar, que servirá de coxim amortecedor das pressões exercidas na ‘nova’ junta, quando forem realizadas as diversas modalidades de pinça entre o polegar e os demais dedos. O pós-operatório costuma ser tranquilo, com imobilização temporária em tala gessada – 3 a 4 semanas – apenas envolvendo polegar e punho, ficando livres os dedos para uso parcial da mão. A reabilitação no geral completa-se com o importante auxílio de terapeuta da mão, sendo bem tolerada, durando 5 ou 6 semanas com sessões semanais e podendo ser necessário o uso de órtese à noite para a manutenção da posição correta. Anexo, para melhor ilustrar, uma radiografia pré-operatória da articulação da base do seu polegar esquerdo, recém-operado (trapézio metacarpiano) e que facilmente demonstra o grau de desgaste já avançado. Incluo também demonstração da técnica, utilizando-se a massa muscular tenar como ‘almofadinha’ a preencher o espaço ampliado da junta após a remoção dos tecidos ‘doentes’. No seu caso, tem sido importante a sua total colaboração para a obtenção do resultado funcional precoce. Nem sempre, contudo, encontramos tal determinação, a qual certamente o tem levado a retomar os seus estudos, enfrentando teclado com agilidade, precisão e duração, o que muito surpreendeu pelo resultado. Finalizo, caro José Eduardo, profícuo concertista, pesquisador, professor acadêmico e importante difusor internacional de autores brasileiros, parabenizando-o pelos seus resultados.” Heitor J. R. Ulson Ortoclínica Manus e Hospital Samaritano São Paulo, SP e-mail: ortoclínicamanus@ig.com.br

Polegar em recuperação. Cicatriz em destaque. Foto: Elson Otake. Clique para ampliar.

A reabilitação se processa. Dois dias após a cirurgia, com faixas e tala gessada, já dedilhava com o conhecimento do médico, com muita dificuldade e dores evidentes, cinco minutos diários. Foi assim durante todo o longo mês de Julho, com aumento progressivo do tempo até meados de Agosto. Abdiquei nesse período dos treinos e corridas, seguindo orientação estrita do cirurgião. Uma queda poderia por tudo a perder. Preparei-me progressivamente para o recital a fazer parte do Curso O Som de Portugal, que será oferecido na Casa de Portugal de São Paulo e a ser ministrado pelo ilustre musicólogo e professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso, entre os dias 25-29 de Outubro. Será o tema do próximo post. O recital do dia 27, unicamente dedicado à música portuguesa, não terá obras de forte impacto – sonoridades altíssimas -, pois a paciência e a esperança na recuperação completa, que deverá acontecer dentro de seis a sete meses segundo o especialista, apontam para o caminho da prudência.
Em Fevereiro será a vez do polegar da mão direita. E a saga continua…

For many years I’ve been suffering from rhizarthrosis, a chronic and progressive wear of the cartilage of the joint at the base of the thumb. I’ve always postponed surgery, but the extreme exposure of my hands due to the piano practice made it unavoidable: I could no longer stand the pain. This post is a detailed account of the surgical technique used on my left hand three months ago and of the post-surgery treatment given by the doctor himself, the hand surgery specialist Dr. Heitor Ulson.

Quando os Minutos Parecem Eternos

Extraordinária foto de Guilherme Kastner/Diário de Guarulhos/Futura Press, 22/09/10. Clique para ampliar.

Granizo de pelouros e frechas.
Mas o granizo de balas,
que sobre eles caia incessante,
desconcertou-os totalmente.

Arnaldo Gama (O Segredo do Abade)

Estamos sujeitos às surpresas, assim denominadas, pois advêm quando acreditamos que tudo está a indicar normalidade. Ao ouvir na manhã de 21 de Setembro, durante as transmissões dos noticiários pelas rádios paulistanas, que costumo acessar logo após os abomináveis programas políticos obrigatórios, apreendi que o tempo seria bom durante todo o dia, mas que pancadas de chuvas isoladas poderiam ocorrer durante a tarde. Preconizavam, sim, aguaceiros maiores e queda de temperatura para o fim da semana. Incautamente segui as previsões. Hélas, trois fois hélas, como se costuma dizer em França. Deveria viajar pela manhã, mas protelei para após o almoço.
Estou a me lembrar de duas situações relacionadas à meteorologia. Em Nova York, durante os dias fronteiriços 1987-88, a temperatura chegou aos 18º negativos. Em uma noite, liguei a televisão para saber a respeito do tempo que faria no dia seguinte. O locutor, à certa altura, disse que aproximadamente às 16:30 haveria uma enorme tempestade de neve. Deu-se a borrasca precisamente no horário. Em outra oportunidade, já comentada anteriormente, durante gravações que estava a realizar em Mullem, na Bélgica Flamenga, em gélida madrugada – estávamos no início do século XXI -, Johan Kennivé, o impecável engenheiro de som, pediu-me para interromper a performance, pois um vento com fortes rajadas deveria chegar em aproximadamente sete minutos, a provocar ruídos sobre os vitrais da Capela de Sint-Hillarius. Estranhei, interrompi a gravação e fui ter à Van de meu dileto amigo e lá tomar chocolate quente. Pois, exatamente no tempo citado, uma ventania intensa e de assustar chegou, mas dois minutos após se foi. Johan soubera por seus sensores meteorológicos.
Teria de sair de São Paulo. A revisão de livro a ser publicado no próximo ano na Europa impelia-me ao refúgio em Bragança Paulista. Quando da redação de determinados textos para o Exterior, leitura acurada de outros mais para publicação, ou escuta de CDs gravados na Bélgica para edição final, é sempre no Hotel Bragança, em frente à Praça José Bonifácio, que me recolho durante dias, pois a última revisão deve ser sempre a do autor. Assim entendo. Às 15:30, tranquilamente empreendi a curta viagem, que oscila entre pouco mais de uma hora até duas, no máximo. Tempo bom. À altura da Av. Tiradentes, o céu plúmbeo apontava para chuva que deveria cair proximamente. Fato normal. Ao atingir a marginal do Tietê – via expressa de maior afluxo do país – com o tráfego a fluir com a lentidão costumeira, a descarga veio abaixo em forma de granizo. Estava próximo ao estádio da minha infortunada equipe de futebol, a Portuguesa de Desportos, como se o proclamado São Pedro quisesse punir a nau lusitana permanentemente à deriva e a ter como estandarte a Cruz de Avis. O granizo, em formato de bolas de gude, caiu como um bombardeio. Imediatamente, a seguir velho conselho, coloquei a mão direita contra o vidro do para-brisa. Dizem que impede estilhaços. Confesso que é assustador. Durante mais de dez minutos, que pareceram uma eternidade, os “pedregulhos” de gelo, ensurdecedoramente, agiram como instrumentos de percussão no mais alto volume. Já me preparava, caso o vidro não suportasse os projéteis, para abandonar o veículo. A situação piorou, pois aqueles que estavam sob as pontes lá ficaram – proteger-se pode ter fortes doses de egoísmo e de instinto de sobrevivência -, a fim de evitar os duros impactos, o que fez o trânsito parar totalmente. Em determinado instante caiu sobre o capô um gelo do tamanho de uma bola de pingue-pongue, estilhaçando-se no vidro dianteiro. Marca indelével ficou sobre o metal.
Quando o trânsito começou lentamente a fluir, com a torrente aérea a despencar acompanhada de pedras em menor quantidade, pouco se via. O piso permaneceu imaculadamente branco por instantes. Perdi a entrada da Fernão Dias e fui parar bem longe, na direção da Penha, a seguir fluxos descontrolados pela marginal do Tietê. Entrei, a acompanhar motoristas visivelmente desorientados, por ruas que me fizeram lembrar outras localidades periféricas da cidade, com gelo ou plenas de água, e mais, com crianças a mergulhar naqueles “lagos” lamacentos ! É realmente surreal. Retornos e mais ruas inundadas. Finalmente, um bom samaritano me apontou a única possibilidade de chegar à via Dutra e de lá acessar a rodovia Fernão Dias. Ufa, consegui !
O drama não se encerrara, pois até antes de Atibaia, só chuva forte, por vezes seguida de granizos. Ao passar pelo túnel da Mata Fria, a longa descida até Mairiporã proporcionava banhos permanentes da lama que descia pelas encostas, atingia a estrada e se projetava no para-brisa, levantada pelas descidas desenfreadas de caminhões e ônibus conduzidos por motoristas irresponsáveis. Não havia, nesse longo declive, a menor possibilidade de buscar abrigo no acostamento, pois nessas situações o caos impera. A viagem durou ao todo quatro horas e meia e, ao chegar a Bragança, nenhuma só gota tinha caído na aprazível cidade. Só à noite houve aguaceiro de moderado a forte, mas de curta duração.
Segundo o meteorologista André Madeira, da Climatempo (Estadão, 22/09), “Calor e umidade colaboraram com as condições atmosféricas necessárias para a formação dessas nuvens pesadas, profundas e altas, típicas de tempestade. Essa água no topo da nuvem forma esse granizo”. Só teria de discordar de uma frase do especialista citada no jornal: “Granizo são pedrinhas de gelo”. Para quem vivencia o episódio é dantesca a cena. Sob aspecto outro, os meteorologistas afirmaram ter sido o fenômeno rigorosamente atípico, impossível de ser detectado com antecipação.
O fato é que não me recordo de situação paralela. Presenciei, ao longo da existência, chuvas, aguaceiros e tempestades intensas e variadas. Essa ficará marcada, pois certamente foi a que maior susto trouxe ao velho observador. A experiência leva-me doravante a ter mil cautelas quanto às previsões meteorológicas da cidade. Satélites e tantas outras tecnologias dão-nos certa segurança. Confiarei nas previsões… delas a desconfiar.

Tempo final 1:05:05. Clique para ampliar.

Seria injusto se não dissesse que os meteorologistas acertaram ! Previram, naquela terça-feira, a ficar lembrada, que frente a avançar do sul atingiria São Paulo com forte aguaceiro a partir da madrugada de domingo. Ao acordar às 5:30, para a terceira etapa (10km) do Circuito das Estações – Adidas (Primavera), temporal com trovoadas se abateu sobre a cidade. Houve alternância de chuva forte a moderada durante o aquecimento e a prova pela Av. Pacaembu e o Minhocão. Apesar de ter corrido com a bela camisa dois da Internazionale de Milano, que me foi presenteada por meu genro italiano, nem a grande cruz vermelha que a caracteriza amainou São Pedro. Creio que o festejado santo está a me penalizar. Mas dele continuarei devoto.

On the afternoon of 21 September, with meteorology predicting good weather with isolated showers, I decided to go to the neighboring city of Bragança Paulista, a one-hour trip under normal conditions. As I was driving through Marginal Tietê in São Paulo, the country’s most congested expressway, I was trapped by a severe hailstorm followed by heavy rain. Hails the size of marbles fell for more than 10 minutes, bringing traffic to a stand still. I got lost due to poor visibility and needed help to find the highway leading to Bragança, where I managed to arrive after more than 4 hours – most of the time in the rain -, just to learn that not a single drop had fallen in the city. Although based on reasonable sound data, our weather forecasts leave a lot to be desired. The only certainty is that nothing is certain.

Enfrentar Instrumento Desconhecido

 Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Contra um piano difícil, não adianta lutar,
pois ele sempre sairá vitorioso.

Yara Bernette
(frase colhida por JEM,
durante conversa amistosa em Belém do Pará)

O promissor intérprete que motivou o post Carta a um Jovem Pianista – A Qualidade como Destino (13/02/10) tornou a escrever-me, questionando-me sobre um tema que aflige basicamente a todos os pianistas que se apresentam em determinadas cidades onde o instrumento não oferece condições ideais. Em termos de Brasil, essa é uma triste realidade, mormente se considerarmos os impostos abusivos que incidem sobre a importação de instrumentos. Quando um piano de concerto novo chega ao Brasil, todos os que pertencem ao métier ficam a saber. Isso não é bom, pois retrata a excepcionalidade e não aquilo que deveria ser rotina. Sob aspecto outro, dos poucos que aqui chegam, alguns ainda não estão devidamente “amaciados” e isso pode provocar dissabores. Apesar dos esforços ainda não atingimos o nível de excelência na fabricação de pianos no Brasil. Estou a me lembrar que, nos meus 16 anos, fui indicado por meu professor José Kliass para “amaciar” um piano novíssimo que a Sra. Luba Klabin recebera da Steinway & Sons de Hamburgo. Estudava das 10 às 13 horas todas as quartas-feiras e no fim do mês recebia das mãos do mordomo meus “honorários”. Morava essa Senhora ligada à música erudita em São Paulo, na imensa casa que deu lugar à construção futura do MuBE na Av. Europa.
O jovem talentoso – não o conheço pessoalmente – escreve a respeito da preparação para uma apresentação: “ No ensaio tentei de todas as formas tocar com o toque de Mozart normal, mas as notas falhavam muito, então tive que pressionar muito sobre cada nota. Não tive outra escolha senão abrir mão parcialmente da delicadeza do toque natural de Mozart, infelizmente”. Narra a experiência durante o concerto: “O toque não estava dentro do estilo de Mozart porque fui literalmente obrigado a tocar muito sólido (tratava-se de um piano zero km duríssimo – o mais duro que já toquei na vida).” E conclui “Realmente precisamos de pianos melhores no Brasil, não é verdade”???
Vários são os problemas relacionados ao piano em nosso país. Independentemente da dificuldade quanto à importação de número maior de instrumentos novos, mercê dos escorchantes impostos, o material de reposição, a sofrer taxações igualmente altíssimas, é pouco procurado pela grande maioria de alunos, amadores e mesmo profissionais. Nossos afinadores, alguns competentes, buscam soluções as mais variadas, quiçá criativas, e atendem dentro do possível.
O piano, sendo o mais abrangente dos instrumentos, impõe uma série de obstáculos aos intérpretes. Fiquemos restritos à problemática brasileira. Quantas são as cidades que têm pianos realmente bons? Poucas. Nas urbes maiores há instrumentos de qualidade, mas em que quantidade? Se levantamento fosse feito, chegaríamos a cifras constrangedoras. Qualquer comparação com países outros que cultuam a música de concerto, clássica ou erudita como continuidade de cultura enraizada, é desfavorável ao Brasil. A particularizar o exposto acima, quando uma Universidade recebe alguns instrumentos, festeja-se. Ao receber um piano denominado de “cauda inteira”, determinada sociedade de concertos organiza inclusive série de recitais para celebrar o feito. A esporadicidade desses acontecimentos faria supor que vivemos melhores dias, mas, infelizmente, tem-se a “aparência” da verdade. Não só existem bons pianos em centros grandes ou pequenos do Exterior, como periodicamente são eles trocados por outros em melhores condições, sendo que muitos instrumentos “descartados” estarão a servir outras instituições de ensino menos aquinhoadas.
A escassez leva fatalmente à manutenção – ou à falta dela – dos pianos existentes no país. O mesmo se dá com os carros, pois quão mais velhos, mais visitam as oficinas. Independentemente do número cada vez menor de jovens que sonham um dia tornar-se recitalistas ou concertistas e que se dedicam com afinco ao estudo de piano, o desestímulo diante de instrumentos velhos ou sem manutenção é fato a ser registrado.

Há teclados bem duros. Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Se pensada for a relação de outros músicos que transportam seus instrumentos, no caso daqueles de corda, madeira ou metal, há como acréscimo a proximidade. O contato direto, aconchegado, proporciona uma relação íntima que pode, se talento e dedicação existirem, resultar num belo amálgama. Quanto ao piano, o instrumentista tem a relação afetiva com a sua arte, com o som e com o repertório. O teclado está distante das cordas, e o intimismo é criado em outro universo de proximidade. O instrumento de convívio, aquele doméstico, que recebe horas de dedicação, não será o das apresentações. Uma primeira separação se faz. Em outro contexto, a surpresa é o fato constante quando das performances. Sabe-se onde haverá o concerto ou recital, nunca se sabe qual a empatia que haverá com o instrumento a ser desvendado. Se afinidade houver, tem-se o maravilhamento; caso contrário, um “combate” permanente. Notável pianista belga disse-me certa vez que deparar-se com pianos de certas salas de concerto é como desafiar um touro miúra. Ou entramos na arena e o enfrentamos, ou desistimos.
A possibilidade de um entendimento só pode concretizar-se se, acima de todas as dificuldades, o intérprete assumir a sua relação com a música como uma missão. Enfrentará os seus miúras durante a trajetória e saberá combatê-los. Se vence ou não, vai depender inclusive do estado bom ou mau do piano. Não poucas vezes será subjugado pelo instrumento. É o tributo a pagar. Longe estamos do pianista legendário que fazia transportar seu próprio piano para as salas de concerto. Guiomar Novaes o fez inúmeras vezes, Vladimir Horowitz, sempre, e outros tantos também. Mas os tempos do tapete vermelho a recepcionar a lenda viajante passou. O Japão recebeu Marguerite Long e, em outra oportunidade, Alfred Cortot, dois nomes referenciais do piano daquela maneira. Família Imperial a recepcionar artistas. Foi ofertada a Cortot, como presente do Imperador, uma ilha, Cortoshima. Outros tempos, rigorosamente impossíveis nos dias atuais. Em aeroporto da Europa vi, ainda este ano, um dos maiores instrumentistas da atualidade a carregar suas malas e pegar o autocar, como um cidadão absolutamente comum. Situação impensável naqueles tempos. Enfrentam-se malas e, por vezes, teclados desiguais ou duros. Faz parte da opção de vida. O importante é jamais tergiversarmos com a qualidade. Só ela importa. A gravação em países conceituados nessa atividade possibilita a escolha certa do instrumento. Já na sala de concerto, a depender do local, deparar-se com o piano ideal é apenas esperança. Talvez seja pedir muito.

A young pianist wrote to me pointing out the poor conditions of a piano he had been offered for a recital. This is a routine problem faced by pianists in Brazilian concert halls: inferior or worn-out pianos, out of tune, in need of good repairs. This widespread neglect of many instruments is mostly due to the astronomic price of a new one. Few organizations can afford to buy a new concert grand and keep it in top playing conditions. When a performer sits down at the piano in front of an audience, the unexpected is the rule and he can only pray for a reliable instrument.