A Música para Junqueiro

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Porém, a arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual,
que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação ao amor.
A arte atravessa a nossa mente com pés de pomba,
à mínima tempestade torna-se invisível, substituída pelos apelos do cotidiano.

Miguel Real

Estava a organizar livros que se acumularam. Reconheci a lombada de volume caro a meu pai: A Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro (Porto, Lello & Irmão, 1926). Acostumamo-nos a ouvir, durante décadas, nosso progenitor recitar com empolgação o longo poema O Melro, integralmente e sem vacilos. Abri e folheei. Logo na abertura, chamou-me a atenção o extenso prefácio à segunda edição (fragmento inédito), escrito pelo autor em 1887. Incisivamente, Guerra Junqueiro (1850-1923), polêmico escritor e poeta português, posiciona-se em relação à sua autonomia: “Nunca discuti, nem jamais discutirei com quem quer que seja, o valor literário duma obra minha. / Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima. / Não faço versos por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz a resina, a pereira, pêras e a macieira, maçãs: é uma simples fatalidade orgânica. Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim”. E em outro segmento, a dimensionar a qualidade de uma obra: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável. As grandes obras são como as grandes montanhas. De longe vêem-se melhor. E as obras secundárias, essas quanto maior for sendo a distância, mais imperceptíveis se irão tornando”. O tempo se mostraria o grande aliado de Guerra Junqueiro, a perenizar sua obra.
Compositores buscaram, ao longo dos séculos, na poesia popular ou nos poemas entendidos como cultos ou eruditos, fonte indispensável à existência das canções ou lieds. Há poetas e poetas. Alguns, apesar do imenso valor, não têm em seus versos a “musicalidade” essencial. Intuitivamente ou não, os músicos, ao buscarem poemas para as suas composições, tendem à essa volatização que se expande de uma poesia. Nem sempre o poeta que perdura tem versos musicais, mas tantos outros, que a história ajudou a esquecer, tiveram poemas magistralmente musicados por compositores do período romântico, como Franz Schubert, Robert Schumann… Se Claude Debussy teve o dom de captar a essência essencial de Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine e Charles Baudelaire para as suas mélodies, não deixou contudo, por vezes, de frequentar poetas menores. Em L’harmonie du soir, um dos poemas de Les Fleurs du Mal de Baudelaire, não somente criou uma de suas mais expressivas mélodies para canto e piano, como do verso Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, um dos mais sensíveis Prelúdios para piano solo. Sob égide outra, o cancioneiro popular, “uma bíblia em música”, segundo Guerra Junqueiro, deve sua existência à plasticidade do verso geralmente anônimo do povo, que saberá, como fluxo inexorável, adequá-lo a uma melodia. Há todo um aspecto “mágico” nessa interação ancestral.
Quando do recital em Braga no início de Junho, lá esteve meu amigo António Menéres. Dele recebi A Música de Junqueiro (Porto. Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa. Coordenação: Henrique Manuel S. Pereira, 2009). Li-o com interesse. Trata-se de obra fundamental para o conhecimento não apenas de uma característica poético-musical do grande poeta e escritor, mas também para a compreensão de todo um processo que leva o compositor a buscar poemas que emanem “sonoridades”. Tão mais sonoros são os versos junqueirinos quão mais entendemos que, ao longo de um século, apesar de toda a trajetória da escrita composicional, os poemas de Junqueiro jamais deixaram de interessar aos músicos. Torna-se evidente que a visitação constante, na maior parte constituída de compositores expressivos, é inequívoca presença dessa imanência musical nos poemas de Guerra Junqueiro.
A coletânea de textos escrita por autores competentes, contida em A Música de Junqueiro, está a demonstrar a insistência do autor de Pátria em precisar a importância da música frente à poesia. Já não seria a evidência de que a frase musical esteve sempre a integrar o seu de profundis? As inúmeras incursões, opiniões, “certezas” até de Guerra Junqueiro em relação à música são inquestionáveis.

Página manuscrita de Guerra Junqueiro. Extraído de A Música de Junqueiro, pág. 34. Clique para ampliar.

A cuidadosa seleção de referências à música, realizada pelos responsáveis de A Música de Junqueiro, vem demonstrar uma atração à temática por parte do poeta e escritor. No artigo Música de e Música para Junqueiro, Henrique Manuel S. Pereira seleciona criteriosamente segmentos do escritor e poeta em que a arte dos sons está presente reverencialmente. No texto, S.Pereira penetra na hermenêutica, a dar sentido à música interior de Guerra Junqueiro expressa na prosa em períodos vários de sua existência. Junqueiro realiza uma glorificação ao cantar: “ser o cantador, ser a voz da água e do vento, da rocha e da floresta, dos homens e dos monstros, dos infusórios e dos sóis, das nebulosas e dos átomos! Cantar o riso, o beijo, o olhar, a dor, a lágrima!”. E prossegue nessa louvação emocional às formas, matérias, ideias, paixões. Faz o amálgama das artes ao afirmar que “a luz é música. O prisma é um instrumento de música” e a luz seria uma orquestra, “um hino de cores”. O ter sido colecionador respeitado de obras de arte não seria a ratificação de uma vocação à integração das artes? Situação bem próxima não teria ocorrido com Alexander Scriabine (1872-1915), o notável compositor russo, que buscava a identidade das artes em Prometeu, o Poema do Fogo e no Mystère (inacabado) que deveria ser a união de todas em direção ao Cosmos?
Guerra Junqueiro, na comparação com o verso, afirmaria que “no canto há (ainda) mais amor entre as palavras, socializam mais, fraternizam mais”. E prossegue: “o verbo cantar é um dos filhos radiantes do verbo supremo, do verbo eterno, do verbo divino e criador, que é o verbo amar”. A assertiva do poeta viria de um tríplice entendimento: o cantar a prevalecer sobre o verso, e este, por sua vez, sendo “mais belo do que a prosa”. Entendimento que o faz captar a condução de uma linha poética expressa nas palavras: “o verso errado é um delito”. Tem o poeta o dom da associação metafórica: “cantar é por os sons em harmonia, torná-los amigos, parentes próximos, irmãos devotados e inseparáveis. Cantar é moralizar o som”. Ao preferenciar órgão e violino, pelo fato de que “as notas são contínuas, fundem-se, convivem mais, porque cada uma delas sacrifica, por amor à outra, uma parte do seu individualismo, o seu limite”, ao contrário do piano onde o som, por força do mecanismo do instrumento, evidenciaria, ao ver de Junqueiro a “contiguidade, não continuidade”, não demonstraria uma percepção, intuitiva, dos meandros sonoro-musicais e da plasticidade ininterrupta? A erudição quanto ao repertório musical sacralizado o levaria, através da escuta, à dedução: “A música é poesia incorpórea. Há sonatas de Beethoven que se me afiguram ser as melódicas almas imortais de grandes epopéias que morreram…”. O texto de Henrique Manuel S.Pereira tem, entre outras virtudes, a de ser ponte importante a ser transposta, a fim de que entendamos o porquê dessa frase musical no verso de Guerra Junqueiro, e a compreensão consequente por parte de tantos compositores de méritos que se debruçaram sobre sua poesia.
Se a canção predomina em sua básica formatação canto e piano, a poesia musical de Junqueiro serviria, sob outra égide, para outros entendimentos quanto à destinação. Em texto de síntese e bem elaborado, Fernado C. Lapa apresenta essas várias configurações nas quais os versos do poeta estimulariam a ideia do compositor. Quinteto de sopros, coro de câmara e quarteto de cordas, coro a capella e os muitos endereçamentos não eruditos visitados por músicos de várias tendências populares ou pop. Salienta o compositor F.C. Lapa, ao caracterizar as vertentes musicais erudita e popular que apreenderam o conteúdo inerente na poesia de Guerra Junqueiro: “podemos afirmar que nelas se reflectem duas das atitudes mais contrastadas na abordagem da poesia de Junqueiro: a atitude naturalista (a vida no campo, a singeleza da natureza, a bondade universal…) e uma atitude mais construtivista (filosófica, dramática, por vezes irónica)”. Nomes expressivos inspiraram-se em seus versos. Mencionaríamos, à guisa de exemplificação, compositores como Fernando Lopes-Graça, Cláudio Carneiro, Tomás Borba, António Fragoso, Luís de Freitas Branco, Óscar da Silva, José Viana da Mota e o brasileiro Barrozo Netto. Seria do vocalista da banda Houdini Blues uma consideração pertinente à poesia e à letra da canção. Faz distinção: “A primeira dificilmente se musica com sucesso por já ter uma melodia e uma cadência inerentes, a segunda dificilmente sobrevive incólume à ausência da música”. Algumas das poesias de Guerra Junqueiro, como A Moleirinha, Canção Perdida, Morena, Regresso ao Lar, tiveram várias leituras realizadas por compositores de tendências distintas.
A edição esmerada de A Música de Junqueiro apresenta artigos instigantes, todos os poemas que foram a fonte essencial para a criação sonora, entrevistas com intérpretes, a relação cuidadosa de todos os compositores e mais dois CDs, contendo o resultado musical da ampla pesquisa. Modelo a ser seguido.

During my recent visit to Braga I was given the book “A Música de Junqueiro” (The Music of Junqueiro). Guerra Junqueiro (1850-1923) was one of the greatest poetry and prose writers of the 19th century in Portugal. The book unveils Junqueiro’s thoughts about music, examines the musicality of his poetry and the works of composers who have drawn inspiration from his writings thanks to the musical effects of the language he used. It presents all of Junqueiro’s poems that were set to music, stimulating articles, interviews with performers, lists the composers who worked on his poetry and comes with two CDs with works by names such as Fernando Lopes-Graça, Cláudio Carneiro, Tomás Borba, António Fragoso, Luís de Freitas Branco, Óscar da Silva, José Viana da Mota and the Brazilian Barroso Netto. An interesting reading for anyone who wants to go deeper into the art of this great writer and into the creative process of composers when their inspiration comes from poetic works.

Aparição a Assustar Companheiras

Fantasma. Charge de Luca Vitali. Junho de 2010. Clique para ampliar.

Aquele que ressurge é um novo homem.
Provérbio vietnamita

O homem tem por característica apegar-se às referências. Em quase todas as áreas e sentidos. Elas lhe dão segurança. Perdê-las pode ocasionar as mais variadas reações, motivadas pela ligação que se formou entre seres humanos. Há referências abstratas: não as conhecemos, mas aprendemos a admirá-las ou não. O negativo conteria igualmente carga referencial, que interfere longamente ou esporadicamente sobre nós. Qual não é o impacto ao sabermos que determinada pessoa que conhecemos e estimamos desapareceu? Nos últimos dias fui surpreendido pela morte de figuras humanas sensíveis, de quem muito gostava. Por mais que a morte seja nossa única certeza, sempre há esse choque, mormente se afeto existe. Nada a fazer, a não ser nos conformarmos. Essas referências que partem permanecem com intensidade durante certo tempo e após, como bem frisava Fernando Pessoa, pouco a pouco se diluem. Tornam-se lembranças vagas, dependendo das gradações variáveis de afetos. É a realidade.
Conversávamos descontraidamente: Luca, o pintor, Elson, o maratonista, e eu. O tema surgiu com naturalidade. No pequeno parque perto de minha casa, por dois anos, em 2006-07, realizei meus primeiros trotes, a visar ao aperfeiçoamento físico. Com o passar do tempo, o espaço, com pista de 300 metros e movimento constante, tornou-se impraticável, pois aumentei as passadas, a quilometragem e fui para as ruas, a correr de 6 a 10km três vezes por semana. Luca é atento observador e o poeta do lápis ou pincel. Elson, o amigo certo. Bem mais jovem e rápido, dá-me constantemente preciosos conselhos. Autêntico guru do septuagenário corredor. Sou atento ouvinte e busco o aperfeiçoamento durante as corridas oficiais pelas avenidas e ruas da cidade.
A certa altura, Elson e eu comentamos com Luca algo inusitado. Subíamos uma das ruas de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, quando os amigos do cantinho dos aposentados, aqueles já tantas vezes mencionado em blogs anteriores, desciam. Contaram algo curioso. Como desapareci do parquinho por volta de 2008, lembranças ficaram, pois tínha o hábito de conversar amistosamente, após os exercícios, com vários frequentadores do espaço, então aprazível. Técnicas, alongamentos, respiração, passadas, tudo era motivo para um bom papo.
Recentemente, vários de meus bons amigos aposentados, frequentadores do parque, mas inimigos dos exercícios físicos, discutiam sentados política, futebol ou o tempo – acredito firmemente – , quando, a certa altura, três senhoras que estavam a realizar marchas forçadas encontraram-se e pararam em frente ao banco. Como falavam alto, os amigos silenciaram por momentos. Foi quando uma delas, dirigindo-se às duas outras, perguntou se sabiam algo do pianista que corria pelo parque após intensas quimioterapias. Mais silenciosos ficaram meus amigos. As senhoras, após dúvidas e questionamentos, chegaram a conclusão que o pianista já deveria ter morrido. Lamentaram o possível passamento e continuaram seus exercícios. Pianista e companheiro das marchas e leves corridas. Morto e sepultado.
No encontro na rua aludida perguntei aos amigos se eles confirmaram a minha existência. Muito pelo contrário, pois, assim que as senhoras desapareceram em uma das curvas da pista, deram boas gargalhadas.
Passaram-se semanas desse episódio. Em uma manhã em que estava a estudar piano para a longa tournée de Maio último, fui atender ao toque da campainha. Imediatamente reconheci uma de minhas conhecidas que andava e corria pelo parque e, com certeza, uma das que me entendia no além. Ao me ver, uma só frase, a traduzir estupefação e alegria: “Que bom !!! Você ainda vive !!!
Na charge de Luca Vitali, Fantasma, não faltou o gavião que devorou os canários de meu vizinho Uyara (vide A Vingança do Gavião – Falco Femoralis. 11/04/08). Seu apetite voraz não poupa as “almas aladas”.

On my presumed death and resurrection and the stare of sheer amazement of a fellow runner when she saw me alive and well.

Quando Renovar tem Implicações

Medalha em cerâmica nº 02-50 da Casa Memória Lopes-Graça. Tomar. Clique para ampliar.

O que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro.
Agostinho da Silva.

Retorno à minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo. A certeza de que a tournée pela Bélgica e Portugal teve guarida, mormente se considerada for a programação, pois dois recitais inteiramente dedicados à criação do notável compositor português Fernando Lopes-Graça. Se gravação durante três madrugadas na Bélgica, oito recitais em Portugal, três conferências e mais três masterclasses preencheram o mês inteiro, salientaria que há público e público. Para repertórios especiais há sempre tributo a pagar, pois, devido ao desvio do sacralizado, a grande maioria dos frequentadores de concertos volta-se ao que é conhecido, a não se interessar pelo diferente. Sente-se segura, não há choques ou impressões novas a serem convertidos pelas mentes e a “aparência” da sapientia se referenda.

Conferência no Museu da Música Portuguesa. Cascais. Foto: Maria Manuela Pedrosa Cardoso. 26/05/10. Clique para ampliar.

O público do inusitado é particularmente consciente. Tem ele a perspectiva histórica. Sabe decodificar mensagens pouco visitadas ou inéditas. O impacto o tornará mais crítico quanto à criação musical, pois o comodismo auditivo não é de sua alçada. Participa da apresentação, interessa-se por comentários que introduzam o repertório novo à sua apreciação. Essas reações foram sentidas pelo intérprete, ao entender bem previamente que as obras apresentadas tinham imenso valor, apesar de ainda ignotas. Canto de Amor e de Morte, assim como as Músicas Fúnebres, essas últimas apresentadas integralmente e a ter cerca de 45 minutos de duração, tiveram recepção surpreendente, tão grande a força que emana dessas criações. Se o público que acorreu aos recitais foi seletivo, ficou-me o grato diálogo que mantive com músicos competentes e ouvintes a respeito das obras. Isso permanece.
A premissa se mostra necessária. É esse ouvinte atento e voltado ao pouco frequentado ou inédito, que já apreciara anteriormente o repertório sacralizado, continuando a fazê-lo quando oportuno, que estará a divulgar a outros interessados essas composições qualitativas. Diferente do majoritário, que compreende que se tem de ouvir quase que exclusivamente o que a tradição manteve. Este o público que se desloca para apreciar dezenas de vezes as mesmas composições, fartando-se de um prazer da escuta que lhe garanta a comunicação com seus pares, o incenso aos mesmos intérpretes e a convivência com a sua consciência acomodada. Nada a fazer. A realidade tem-se mostrado, hélas, a cada temporada mais apegada ao consagrado.
Foi pois positivo o balanço. As gravações na mágica capela de Sint-Hilarius, na Bélgica Flamenga, correram em clima de tranquilidade. A planura da região estimula a imaginação. Após, percorrendo Portugal para os recitais, ouvi comentários preciosos no sentido da certeza de que criações extraordinárias foram apresentadas. Em todas as récitas dizia conceitos que apregoo desde a década de 80 (vide As Mortes do Intérprete no item Essays do site). Nós, intérpretes, somos apenas corredores de revezamento, sendo o compositor qualitativo o maratonista que percorre um caminho sem fim. Um dia, nós findamos a trajetória, mesmo que gravações façam perdurar durante decênios a nossa passagem pelo planeta. Nada além disso. Temos a incumbência essencial da transmissão, sem a qual a obra de arte musical corre o risco de se ver estagnada, esquecida ou sepultada. A qualidade permanece na partitura, e o intérprete que nos sucede será o novo estafeta, já a saber que seu antecessor cumpriu sua missão e a entender que, um dia, haverá o seu término igualmente nesse perene revezamento. Essa é a única certeza rigorosamente precisa. Quanto à obra excelsa, esta permanece, a independer se durante décadas ou mais mantiver-se oculta por desconhecimento ou até descaso. Daí ter enfatizado a audição que se faria de criações basilares do grande Lopes-Graça. Estas, a partir dessas primeiras audições, estarão a ser frequentadas por outras mentes, corações e dedos. E a saga continuará, a depender da apreensão de outras gerações de ouvintes. No programa ao vivo da RTP – Antena 2, às 9h do dia 20 de Maio, bem conduzido pelo experiente Paulo Guerra, comentei a qualidade ímpar das obras apresentadas de Lopes-Graça e a origem de meu envolvimento e consequente entusiasmo em divulgá-las. Voltei a elogiar intérpretes portugueses mais dedicados ao país, nesse grande esforço na divulgação da música qualitativa de Portugal de méritos incontestáveis, mas frisei enfaticamente o descaso quase que pleno de outros, sobejamente conhecidos fora das terras lusitanas, que se negam, quando em tournées alhures, a tocar a criação portuguesa. Tendo enorme contingente de ouvintes pelo país, as palavras parecem não se ter perdido no deserto. Houve guarida.
Causou-me impressão a leitura das custosas e cuidadas publicações de duas das maiores instituições que promovem concertos em Portugal. Lembraram-me algumas de outros países, todas destinadas a um público de classe social mais abastada. Repertório preferencialmente bem conhecido e pequenos textos explicativos de rara puerilidade, a nada acrescentar, a não ser a perpetuação do que é de domínio comum. Também nesses casos nada a fazer, pois o público frequentador das temporadas repetitivas continuará “pleno” de certezas provocadas por essas pílulas convertidas em minitextos. Chega-se ao limite do óbvio. O dicionário de música mais elementar mostra-se mais eficaz !

O Presidente da Câmara Municipal de Tomar, Dr. Corvêlo de Sousa, ao entregar a Medalha nº 02-50 da Casa Memória Lopes-Graça a J.E.M., após recital na cidade dos templários. Foto: Ludovico Alves Rosa.  23/05/10. Clique para ampliar.

Determinadas situações durante a digressão deixaram o intérprete emocionado. Ao doar fotos originais com Lopes-Graça, tiradas entre 1958-59, e partituras manuscritas autógrafas, que me foram oferecidas pelo compositor, para a Casa Memória Lopes-Graça, em Tomar, e para o Museu da Música Portuguesa, em Cascais, respectivamente, compreendi que esses preciosos documentos estavam, enfim, nos lugares certos. Em Tomar, como não me sentir feliz ao receber das mãos do Presidente da Câmara Municipal, Dr. Fernando Rui Corvêlo de Sousa, a Medalha em cerâmica da Casa Memória Lopes-Graça? Foram feitas 50 e recebia a de número dois, tendo anteriormente a Ministra da Cultura de Portugal recebido a primeira. Privilegiado ao ser convidado pela Diretora do Museu da Música Portuguesa, Dra. Vanda de Sá, para integrar comissão que visa à publicação das obras para piano de Lopes Graça. Empreitada de fôlego. Contentamento ao saber que os CDs que gravei na Bélgica já têm interesse sensível em Portugal para 2011. Gratidão pelo apoio recebido do Banco Banif do Brasil nestas duas últimas viagens para apresentações musicais.

Academia de Amadores de Música em Lisboa. Templo de Lopes-Graça.  J.E.M. e António Ferreirinho após recital. 19/05/10. Clique para ampliar.

As primeiras absolutas de Canto de Amor e de Morte e da integral das Músicas Fúnebres, realizadas no único auditório emocionalmente possível para o intérprete para premières do Mestre de Tomar, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, templo de Lopes-Graça, tão bem conduzida pelo amigo estimado e competente professor Antônio Ferreirinho; o recital na Igreja do Convento Nossa Senhora dos Remédios em Évora, criteriosamente programado pela Diretora do Eborae Musica, a sensível Helena Zuber; Tomar, o torrão natal de Lopes-Graça, e o Canto Firme dirigido pelo ótimo e sensível regente coral Antônio de Sousa; Cascais, já mencionado, onde conferência e dois recitais na Casa da Cultura e no Museu da Música Portuguesa congraçaram-se em torno de Lopes-Graça; Lagos e as três master classes para jovens talentosos; mais, ainda, os recitais em Vila do Bispo e Monchique, em duas pequenas e belas igrejas barrocas, sempre acompanhado, na belíssima região algarvia, pelo competente professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso e esposa; finalmente, Braga, berço de meu pai, onde se ouviu a augusta criação de Lopes-Graça na Sala dos Congregados da Universidade do Minho, em recital promovido pelo Departamento de Música, dirigido pela professora Elisa Lessa.

Recital na Igreja Matriz de Vila do Bispo no Algarve. Foto Maria Manuela Pedrosa Cardoso. 29/05/10. Clique para ampliar.

Projetos surgem, na medida em que continuamos a sonhar. Sem essa esperança no descortino, que tem sempre de ser vislumbrado como objetivo já findo, mesmo que no nascedouro, a existência perde o sentido. Ainda há tempo para novas obras a encantarem o intérprete. Pulsação.