Um Longo Entendimento

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Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Eugénio de Andrade

O lançamento de CD pela Academia Brasileira de Música (ABM) deixa-me bem feliz, mormente por tratar-se de homenagem ao nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Trata-se do terceiro CD dedicado inteiramente ao autor gravado na planura flamenga, sendo que os dois primeiros privilegiaram a obra de câmara com piano e o presente contempla unicamente criações para piano solo (vide site, item Recordings). Gravei-o, como o faço nestes últimos quinze anos, na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica. Foi registrado em dois anos (Fevereiro 2006-2007), pois após o terceiro ou quarto dia de gravação de CD, previsto para lançamento em ano posterior pelo selo De Rode Pomp, aproveitava a disposição sempre solidária de meu dileto amigo, o engenheiro de som Johan Kennivé, e, projeto concluso, deixava serenamente fixadas as mensagens oswaldianas. Denominei a junção dessas peças, que penetraram os microfones instalados em Sint-Hilarius, de O Piano Intimista de Henrique Oswald. Se algumas delas contêm arroubo característico do período, seria contudo o intimismo um dos fundamentos essenciais de Henrique Oswald. No texto que segue, encarte do CD, dedico a gravação à amiga e irmã em tantas intenções, Maria Isabel Oswald Monteiro. Foi ela que, desde o primeiro encontro em 1978, quando iniciei as pesquisas, abriu-me o universo por vezes velado, mas extremamente sensível, de seu avô Henrique (vide Henrique Oswald – Nosso Grande Músico Romântico, 19/10/07). Diários, cartas e manuscritos foram amorosamente percorridos por nossos olhares e captados por nossas mentes e nossos corações. Mensalmente visitava-a no Rio de Janeiro e permanecia em seu apartamento durante dois ou três dias. Foram momentos inefáveis que vivi no convívio do casal Oswald Monteiro. O telefonema que recebi da amiga nonagenária após a recepção do CD ficará gravado em meu de profundis.
O texto que segue acompanha o encarte do CD ora lançado que pode ser encontrado na Academia Brasileira de Música, (www.abmusica.gov.br) e na Loja Clássicos (www.classicos.com.br).

O Piano Intimista de Henrique Oswald

Em seu diário de 1906 e em cartas diversas, Henrique Oswald deixa registrado desencantos motivados pela burocracia à qual sua índole era avessa. Quando em Munique para apresentação camerística, é-Ihe doloroso vislumbrar o retorno à direção do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, onde ambiente inóspito o aguardava. Aos 54 anos, a maior parte a viver em Florença com a família, a compor e a lecionar, comungando austeridade e sonhos, Oswald evidencia seu distanciamento do aspecto prático do cotidiano. Em relatos pungentes, o compositor faz referência à criação de curto fôlego para piano, refúgio incondicional que encontra para revelar estados de alma.
A segunda metade do século XIX abrigaria com inusitada frequência um gênero musical para piano bem próximo à suíte barroca para teclado praticada entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Seria possível supor que uma das causas tenha sido o silêncio do cravo, instrumento banido do currículo do Conservatório de Paris anos após a Revolução Francesa, o que determinaria com naturalidade a transferência de todo um repertório cravístico para o pianoforte e, consequentemente, para o piano moderno. Ter permanecido doravante no repertório dos pianistas e nas salas de aula, mesmo com a soberana forma Sonata a dominar parte do cenário musical, possibilitaria a esse repertório cravístico, praticado unicamente por pianistas, influenciar a criação da pequena peça, a formar coletâneas na primeira metade do século XIX. Talvez tenha havido, como saudosismo, a revisitação à forma suíte na segunda metade do século XIX por compositores de todos os níveis; modificada em sua estrutura, mas a fazer reviver danças e outras categorias de peças frequentadas pelos compositores do século XVIII. Mantinha-se, entretanto, a alternância entre os movimentos rápidos e os mais moderados.
Se a forma Sonata foi utilizada com plena competência por Henrique Oswald e sua obra camerística, orquestral e a destinada a instrumento solista e orquestra comprovam a maestria escritural, se a música sacro-vocal revelaria consistência criativa, se três óperas apresentam-no como um cultor do gênero, seria contudo nas composições para piano solo que o Oswald mais intimista se faria sentir. De sua pena fluem mais de duas centenas de criações para piano, da mais pueril à austeridade das Variações sobre um tema de Barrozo Netto, à virtuosidade dos seis Estudos, do Impromptu op 19 ou da Polonaise op. 34 n° 1, como exemplos. Contudo, seria em duas categorias precisas que o autor de Il Neige mais confessaria musicalmente intenções íntimas. Aquelas destinadas aos primeiros anos de aprendizado pianístico, como Machiette, Bluettes, Miniaturas, às coletâneas em forma de suítes que receberam diversas denominações: Fogli d’album, Feuilles d’album, Álbuns, ou simplesmente conjunto de peças constituindo pequenas coletâneas de três, quatro ou mais composições. Oswald presta tributo ao passado e revisita, tantas vezes, danças caras aos cravistas: Gavota, Minueto, Sarabanda. Se o século XVIII privilegiou para o teclado – mormente em França – titulações descritivas, nem por isso o compositor brasileiro deixa de lembrar-se de imagens que lhe são caras. Oswald sabe introduzir conteúdos românticos essenciais quando está a descrever musicalmente. O Eu que persiste na segunda metade do século XIX, a revelar sentimentos que podem ser exacerbados em outros compositores, tem em Oswald o comedimento, a não impedir a presença do sensível estereotipado, mas sempre intenso. Se pratica amadoristicamente o desenho, o olhar diferenciado transforma o que observa ou sente em sons ou traços.
O domínio da arte de compor é completo. Não há segredo escritural para o romântico Henrique Oswald. Ter vivido na Itália em plena efusão da ópera e das melodias contagiantes teria influenciado o compositor, pois sua inclinação para a melodia que penetra corações é imensa. Sabe o limite dessa comunicação direta, pois em nenhuma de suas criações atinge a banalidade de expressão.

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A escolha do repertório do presente CD obedeceu a critérios que possibilitam a percepção de Henrique Oswald nas várias destinações pianísticas, da simples à complexa. Sob aspecto outro, ao iniciar as pesquisas sobre o compositor em 1978, mercê do apoio incondicional da neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, durante nossos primeiros encontros presenteou-me a dileta amiga com alguns manuscritos autógrafos. Algumas dessas obras constam do CD: Tre Piccoli Pezzi, Berceuse – a mia carissima Madre, Menuetto de Machhiette, Polonaise op. 34 n° 1 e o Estudo-Scherzo de 1902. Bem posteriormente, em 1994, Maria Isabel doaria seu acervo particular à Universidade de São Paulo.
Quando em Florença, Henrique Oswald sente-se atraído pela composição da pequena peça, que viria a atender desideratos precisos. Serviria como material didático, assim como figuraria nas audições de alunos ou serões familiares. Na pena de Oswald flui a peça de curto fôlego com maestria escritural, senso absoluto das proporções nas várias formas e sensibilidade aguda para o melodismo. Machiette (12 Piccoli Pezzi), dividida em quatro cadernos, revela a proximidade com obras primas como Cenas Infantis op. 15, de Schumann. Ambas economizam nos meios, a fim de propósitos específicos. Macchiette não apresenta ênfase a mais, multum in minimo, e tudo lá está, destinado ao encantamento. Os fascículos foram escritos nas fronteiras dos anos 70-80 do século XIX e editados.
As Variações sobre um tema de Barroso Netto datam de 1919. O compositor presta tributo ao amigo, pianista e professor, e constrói uma de suas mais significativas criações para piano. Na maturidade dos 67 anos, Oswald revela rara austeridade, e o sóbrio tema de Barroso Netto conduz a criação oswaldiana a outra possibilidade de reflexão, pois as variações já possibilitam vislumbrar o autor em direção à síntese de procedimentos.
Tre Piccoli Pezzi foram escritas em começos de Junho de 1885. Mais tarde, integrariam a pequena coletânea de seis peças Fogli d’Album op. 3, por mim gravadas em LP lançado pela Funarte em 1982. A presente opção pelas três peças vem do frescor do traço que caracteriza a reunião primeira de Oswald. A segunda miniatura, denominada Romance, terá em Fogli d’Album o título Sognando, e dela o compositor ainda realizaria uma versão para violoncelo e piano.
A pequena Berceuse dedicada à “Mia carissima Madre” data de 22 de Setembro de 1886, data cara à progenitora de Henrique. A singeleza e o mínimo material empregado revelam um profundo sentido expressivo.
Dois dos seis Estudos para piano de Oswald constam do CD. Bem diversificados, apresentam a familiaridade do autor com gênero amplamente sedimentado no século XIX. Terminado aos 23 de Janeiro de 1902, o Scherzo-Étude, verdadeiro perpetuum mobile, foi dedicado à então Mlle. Antonieta Rudge, que se tornaria uma das maiores pianistas de sua época. Obra virtuosística, contrasta com o sóbrio Étude pour la main gauche escrito em fins de Junho 1921 e dedicado à filha do compositor Alberto Nepomuceno, Mlle. Sigried. Após recital que apresentei em Lisboa (26/02/82), inteiramente dedicado a Henrique Oswald, o crítico e musicólogo Humberto d’Ávila, do Diário de Notícias, assim escreve sobre o Estudo: “Se algum dos números em programa fosse de distinguir, bastaria citar o ‘Étude pour Ia main gauche’, de 1921, para se ter a certeza da garra dum compositor capaz de escrever uma das melhores páginas da literatura do gênero.”
Das coletâneas oswaldianas para piano, uma das mais expressivas é a que reúne as Six Pièces. O compositor, em suas obras de curto fôlego destinadas ao instrumento, emprega titulação francesa, italiana ou portuguesa, a partir de fixação geográfica, múltiplas afinidades em determinados períodos, ou mesmo a origem de amigos a quem as peças foram dedicadas. Six Morceux tem todos os títulos em francês. Se Valse, Menuet e Impromptu são mais estereotipadas, o intimismo maior estaria reservado às três peças centrais – Revêrie, Berceuse e Barcarolle. Vladimir Jankélévitch, ao se debruçar sobre as criações de Gabriel Fauré, defende uma posição absolutamente aplicável a Henrique Oswald, “o Fauré brasileiro”, no entender do grande pianista Arthur Rubinstein. Berceuses, Barcarolas e Noturnos pertencem, segundo o filósofo-músico, ao universo do doce ondular. O balanço do berço ou da gôndola e a magia do sonho do Noturno pressupõem inalienável identidade. Oswald, em cada peça do álbum, revela seus segredos sonoros.
Finalizando o CD, a Polonaise op.34 n° 1, cujo manuscrito autógrafo data de 5 de Fevereiro de 1901. Igualmente dedicada à Mlle. Antonieta Rudge, a obra difere das anteriores desta gravação, pois contém elementos pomposos caracterizando a dança tão habitualmente frequentada por compositores, mormente Chopin.
Claude Debussy escreveria sobre seus Études, a dizer que não se pode abordar a maiúscula obra apenas com os dedos preparados. Diria que o mesmo se aplica à obra para piano de Henrique Oswald nesse outro conteúdo essencial, a anima. Sem a relação amorosa com esse piano intimista, tantas vezes coloquial, uma lacuna existirá. O absoluto domínio escritural e a não vinculação com o nacionalismo que emergia deram a Oswald a possibilidade de transferir integralmente para o papel pautado o seu interior, a sua noção do belo pelo belo, sem se importar com a possibilidade da plena divulgação.
Dedico este CD à Maria Isabel Oswald Monteiro, neta do compositor e filha do grande pintor Carlos Oswald. Foi ela que, desde 1978, acreditou nesse resgate que amorosamente nós ambos estivemos a realizar. É com alegria que verificamos que lentamente, uma década após, trabalhos acadêmicos foram surgindo a partir de nosso pioneirismo, o que nos dá a certeza de que Henrique Oswald permanecerá e a execução de sua obra no Brasil e no Exterior tem revelado um dos mais sensíveis compositores do caudaloso movimento romântico.

Clique para ouvir as faixas 2, 23 e 26 do CD “O Piano Intimista de Henrique Oswald”, com José Eduardo Martins ao piano.
Scherzo – Machiette Op.02
Berceuse Op.04 No.04
Polonaise Op.34

Agradável Surpresa em Horário Escolhido

Av. Santo Amaro vista de um ônibus. Traços de John Howard, 1981. Clique para ampliar.

Um dia nossas ruas e avenidas
se tornarão depósito de carros sem destino.

Francisco Osório de Oliveira Freitas Guimarães

O transporte urbano sempre me despertou interesse. É nele que se capta o estágio de um povo. O humor traduzido através das feições. Se majoritários os semblantes descontraídos, tristes, felizes ou resignados, pode-se aferir o momento social daquela população. Estou a me lembrar de comboio entre Potsdam e Berlin, seis meses antes da queda do muro. Nestas duas cidades dei recitais de piano àquela altura. Era visível o desalento, assim como em Sófia no ano de 1996, pois o país, saído há pouco do regime comunista, ainda não se encontrara. Nem por ser Democracia plena observam-se descontração ou alegria em semblantes. Existem índoles de determinados povos. Clima, religião, costumes enraizados favorecem esse estampar nas fisionomias parte do que vai no de profundis. É só querer observar e o livro se abre.
No longínquo 1981, percorria de ônibus o trajeto de minha cidade bairro ao centro, com um amigo, o grafiteiro Johan Howard, e passei a apreender atento seus traços que estavam a brotar em folha de papel durante o percurso. Dizia-me ele que seus olhos fixavam o que lhe causava impacto ou curiosidade, pois jamais uma viagem era igual à qualquer outra precedente.
Reiteradas vezes abordei o tema do transporte coletivo. Nos poucos horários diurnos em que o trânsito flui, é alternativa bem plausível. Nos outros, verdadeiro caos. Quando entendo viável prefiro o transporte urbano à utilização do carro. Evita o aborrecimento dos longos períodos a mudar as marchas em baixa velocidade e dos estacionamentos nem sempre confiáveis. Sob aspecto outro, possibilita a observação do povo e seu humor, do trânsito travado para os veículos particulares e incita-me à leitura. Enfim, tem lá seus prazeres.
Nesses últimos dias tive dois apontamentos em locais diversos. Seriam quatro trajetos em transporte urbano. Resolvi fazê-los. Primeiramente iria ao Shopping Eldorado, na Eusébio Matoso, a fim de retirar o kit da Corrida Circuito das Estações (21 de Março, 10km), e à Polícia Federal na Xavier de Toledo receber meu passaporte. Na minha cidade bairro, às 10hs, peguei um ônibus que percorre a Rua Guararapes e faz a curva à esquerda na Av. Berrini. Lá desci e fui até o comboio que vai do Grajaú a Osasco. Fiquei na terceira parada, Hebráica-Eldorado. Desconhecia esse trajeto. Limpeza na estação, vagão confortável com ar condicionado, verdadeiramente primeiro mundo. Entre as informações transmitidas pelo alto-falante, uma delas insistia na proibição da venda de produtos nas vias e nos comboios. Garantia de ausência de detritos. Disseram-me que nos momentos de pico o transtorno intenso faz esquecer a passividade de horários amenos, pois os comboios vão abarrotados. Apesar de ser exceção, cometeria ledo engano aquele que acreditar ser toda a malha ferroviária urbana dessa qualidade. Problemas que se arrastam há décadas apontam até para o descaso das autoridades. Aplica-se a mesma fórmula para os ônibus da cidade. Em ambos os casos, a agravar a situação, a insegurança, mormente nos transportes da periferia, leva o passageiro a temer diariamente pela vida, tanto pelo estado dos veículos como pela ação de meliantes.

Poucos metros antes do término do Circuito das Estações, 21/03/10 (10km). Foto: MidiaSport. Clique para ampliar.

Ao sair do Shopping peguei o ônibus que leva à Praça Ramos de Azevedo. Passarela a contento, e o veículo bem cheio, o que fez com que viajasse em pé. Jovens sentados ignoram a terceira idade. A um deles, que aparentava boa índole, solicitei que cedesse o lugar a uma senhora idosa. Aquiesceu, felizmente. Curiosamente fiquei a observar nesse longo trajeto as fisionomias das pessoas, pois em pé não é possível a leitura. Havia uma certa descontração e, por vezes, sorrisos dos ocupantes. O motorista, um negro extremamente simpático, era falante. Nomeava cada parada. Aos que entravam com carteiras a exibir fotos, sempre tinha uma resposta pronta. Tudo dito em voz alta. Para as senhoras idosas dizia sempre que, se não estivessem na terceira idade, assim mesmo as deixaria descer pela porta da frente, por serem bonitas. A lisonja servia como alisamento do ego das referidas mulheres e de motivo de risos descontraídos dos outros passageiros. A senhora sentada à minha frente olhou-me a dizer: “O senhor já imaginou se todos fossem assim? Como a vida seria melhor !” Ao chegar no ponto final, o motorista, figura realmente especial, levantou-se e desejou um bom dia a todos, esperando rever seus passageiros. Fiquei a pensar que encontrara um cidadão realmente amante de sua profissão, fato bem raro neste país.
Na Polícia Federal foi tudo muito rápido. A seguir desci as escadas rolantes do metrô Anhangabaú e fui ao terminal de ônibus. Impressionou-me a organização. Um povo enorme e as coisas a funcionarem com certa regularidade. Peguei o Terminal Santo Amaro, previsto para às 11:45. Saiu pontualmente. Sentado, aproveitei finalmente para ler, o que fiz até a chegada em minha parada, às 12:05. Ao todo realizei esse longo trajeto em duas horas e cinco minutos, rigorosamente impossível se tivesse usado meu carro.
Contudo, mercê do rush diário, fizera dias antes de ônibus, a mesma distância Anhangabaú-Campo Belo, com meu amigo maratonista Elson Otake, em duas horas. A todo o momento Elson dizia: “Se estivéssemos correndo já teríamos chegado”. E é a pura verdade, pois o percurso tem 10km. Poucos dias após, realizei essa distância, no Circuito já mencionado, em 01:06:28. Tornou-se cultural, e jovens não cedem seus lugares aos idosos ou mulheres grávidas. Observei que, quando “ameaçados”, fingem dormir. Como partimos do ponto inicial viemos sentados; mas, tão logo cheio o ônibus, Elson cedeu seu lugar a uma senhora da chamada terceira idade. De minha parte tentei por duas vezes fazer o mesmo, mas as passageiras disseram que desceriam logo após.
Todo esse trânsito enlouquecido não seria culpa do desvario da indústria automobilística, a despejar “com euforia” 1000 veículos-dia em São Paulo, e da não preocupação das autoridades com o aumento e alargamento das vias públicas principais? Fatalmente seremos levados ao grande impasse. A nossa malha urbana permanece basicamente a mesma. A indústria automobilística, contudo, só imagina o aumento da produção e do lucro. Não ouço um dirigente de empresa automotiva comentar as dificuldades à vista. Inacreditável ! Orgulham-se dos números crescentes, antecâmara do caos. Mentes esclarecidas, que pregam no deserto, afirmam que, em mais cinco anos São Paulo, trava. Há o metrô, mas em horários de pico pode representar a descida aos infernos. Capitalismo sem freios. Batalhas perdidas por cidadãos que ainda têm vãs ilusões.
Finalizava o post da semana quando se deu a inauguração de mais um extenso segmento do Rodoanel, monumental obra do governo estadual. Há que se louvar esse empreendimento. Desafogará – por quanto tempo? – região adensada de São Paulo. Oxalá, um dia, tenhamos governantes e empresários que entendam célebre frase proferida no início dos anos 70 pelo notável prefeito, engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, que preconizava que São Paulo “precisava parar de crescer”. Chegará esse tempo? As esperanças são mínimas.

On the good and the bad of public transport, its role as a good indicator of a nation’s socioeconomic development, and on the insane increase in the number of private vehicles in São Paulo, a city where the demand for space is already greater than the available road capacity.

Quando a Morte é Espelho da Realidade

Horta, capital do Faial. Arquipélago dos Açores. Panorâmica da cidade. Foto J.E.M. 1992. Clique para ampliar.

Mortos ao chão,
vivos ao pão.

Adágio Açoriano

Faz-se necessária a colocação no blog de meu segundo artigo (vide post anterior) sobre o tema novela, publicado no Suplemento Antília de O Telégrafo, da cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do Arquipélago dos Açores. Só vieram à superfície mercê de comentários incisivos de emissora AM de São Paulo a respeito de conteúdos de novelas e reality shows, a desvirtuarem costumes. A divulgação de Um Trágico Amalgamar deu-se aos 12 de Março de 1993, após infausto acontecimento que levou a vida de jovem atriz de novela em morte violenta. Consubstanciavam-se os elementos que envolvem parte do processo de elaboração desses gênero televisivo, acrescidos dos patrocínios necessários, dos índices de audiência seguidos a cada momento e da recepção pública de um povo que assiste a essa programação movido por motivos os mais díspares. Impressionou-me, naqueles dias tormentosos, um fato relevante, que ficará em todos os compêndios de História do Brasil : o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello e a consequente cassação de seus direitos políticos por dez anos. Pois a tragédia a envolver a jovem atriz teve repercussão tão grande ou maior do que aquela de episódio que permanecerá seculo seculorum. O esquecimento já se abateu quase que por completo sobre o brutal assassinato. É o real tout court. Como no post anterior, mantive a ortografia da publicação em Antília.

Um Trágico Amalgamar

“Heitor Aghá Silva, em artigo a constatar a realidade das novelas brasileiras exibidas no Arquipélago, e o comentário d’além mar deste correspondente sobre aspectos de um todo a abranger os bastidores das novelas, possivelmente desconhecidos pelo povo açoriano, tiveram a exemplificá-los um infausto acontecimento, ocorrido no dia 28 de Dezembro último na cidade do Rio de Janeiro. Uma das actrizes da novela em exibição foi brutalmente assassinada, após os ensaios, pelo personagem que com ela contracenava.
Ficção e realidade colidiram, a resultarem n’uma tragédia inédita no Brasil, colocando a nu o deplorável estado do gênero e evidenciando o alcance a beirar o surrealismo que a telenovela atinge junto à população, que avidamente a consome. A falência moral e ética do gênero telenovela é a consequência da incúria da escolha de um tema e do texto mutuamente fragilizados, da seleção dos ‘artistas’, da necessidade de se atingir índices de audiência, negligenciando-se quaisquer objetivos educativos, da recepção angustiada por telespectador desesperançado nessa crise permanente por que passa o país e que vê na telenovela o ‘bálsamo’ – aparência da fuga -, o refúgio para as angústias do cotidiano.
Denunciávamos, em artigo anterior, que parte dos ‘artistas’ das telenovelas pertencente a uma classe média é recrutada nos ambientes urbanos e, muito mais que a qualidade do ‘actor’ ou da ‘actriz’ a ser erigida, conta a presença física, que deve causar impacto. Despreparadas, muitas das ‘actrizes’ brevemente estarão a estampar seus corpos nus em revistas específicas.
Os ‘artistas’, mitificados pela presença diária nos lares, confundem-se no ideário do espectador com os seus próprios personagens, familiares e de convívio. A tragédia que existe no cotidiano adquire dimensões amplas quando ocorre na realidade com um dos personagens fictícios das telenovelas. Presentemente, milhões de brasileiros assistem a mais uma dessas produções, onde, novamente, o precário texto, sempre manipulável ao sabor das oscilações dos gostos, está de mãos dadas com o todo absurdo. Lamentavelmente a novela atual deverá um dia entrar nos lares açorianos.
Voltemos ao acontecido. Dois dos personagens jovens que integram o elenco perpetuam-se em discussões corriqueiras e emocionais. Na ficção, o rapaz tem ciúmes doentios da jovem, bonita, que representa papel descontraído. Na vida real, ele é casado e a sua mulher, recém saída da adolescência em seus 18 anos, está grávida de quatro meses. Os ciúmes desta pelo marido, que vive personagem na ficção televisiva, somados à anormalidade psíquica do mesmo, compõem a antecâmara do crime. Após gravação de um capítulo em que a jovem encerra o namoro, este chora, frise-se, na ficção. Algumas horas após, na realidade, marido e mulher estarão a golpear fatalmente, com dezoito perfurações, a actriz de 22 anos.
O Brasil, na manhã do dia 29 de Dezembro, assistia à declaração do impeachment do Presidente Collor de Mello pelo Senado Federal e, em longa sessão posterior, que se prolongaria até a madrugada de 30 de Dezembro último, à cassação dos direitos políticos do então ex-presidente até o ano 2000. A tragédia ficção-realidade que se abatera sobre o país conseguiu paralelismo em todos os meios de comunicação, com o desdobramento político inédito no Brasil, para o qual, durante quase um ano, a população voltara as atenções.
Horas após o brutal crime, milhares de pessoas saíram às ruas do Rio de Janeiro e o que se viu foi absoluta identificação. Choravam pela vítima e pediam vingança, como se a personagem imolada fosse a mãe, a irmã, a namorada, a mulher, a filha. Outra simbiose se processava. No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que visitavam os lugares citados.
A maior rede de televisão que produz novelas no Brasil, por sua vez, aproveitou-se da tragédia para ampliar os seus índices de audiência com a maciça divulgação dos pormenores da tragédia. A morbidez, o desrespeito, a culpabilidade não entendida como culpa, mas como um processo acidental, tudo a evidenciar a profunda e abissal amoralidade, a ausência de qualquer ética.
Anteriormente escrevíamos sobre as modificações que os textos sofrem no decorrer de uma novela, motivadas por pesquisas sucessivas, o que corrobora a literatura de sofrível qualidade. A morte real não impede, contudo – antes, é audiência -, que a personagem continue a desfilar juventude, graça e alegria durante os capítulos que gravou bem antecipadamente, até o derradeiro, na noite de seu destino fatal. Suprimir esses capítulos? Nem esse respeito foi prestado à memória da vítima. Incita-se o telespectador ao convívio com o peristilo da fatalidade. E, a agravar, a autora do texto, na vida real, é a mãe da jovem assassinada, o que, no imbroglio, dimensiona o equívoco.
Contra a força dos media, temos poucos instrumentos de defesa. Contudo, de um último não podemos abdicar, o da denúncia. A receptividade ficaria a cargo das consciências”.

Horta, capital do Faial. Arquipélago dos Açores. Conservatório Regional. Foto J.E M. 1992. Clique para ampliar.

Dezessete anos se passaram. O que mudou? Basicamente nada. Antes, houve recrudescimento. Continua o desfile de aviltes aos costumes. A acrescer, os reality shows escabrosos em exibição e o desrespeito à lhaneza de um povo. Se o homem simples ou o letrado assiste a essas programações não seria pela intensidade da mídia e pela falta de opções na TV aberta? Dezessete anos em que o vernáculo também tem sido sacrificado por modismos que sucumbem à força de outros modismos. E de pensar que o jovem pode votar aos dezesseis, um ano a menos do que a redação do artigo em pauta ! Hélas, indefeso, o cidadão espera. As forças controladoras são muito poderosas. Fica-se à mercê.

Este post tem a exemplificá-lo, no caso específico da tragédia em si, o affaire Nardoni – mais um reality show - que monopolizou a mídia nesta semana. Quantidade enorme de crimes são julgados diariamente neste país, sem que tenhamos conhecimento, pois não divulgados. A trágica morte da menina Nardoni teve repercussão nacional. Nesta semana em que o caso está a ser julgado, os meios de comunicação colocaram dezenas de profissionais a serviço do julgamento Nardoni. Seguiram o casal desde a saída dos presídios, no interior do Estado e continuaram a segui-los, até com tomadas aéreas, durante toda a semana, no percurso penitenciária-fórum e seu inverso. O que se vê, ouve-se ou lê-se nesse período, escancara com pormenores, a beirar a histeria, a tragédia. Perpassam pela mídia as possibilidades do veredicto e as entrevistas com os vários segmentos da sociedade: multidão, membros do poder judiciário, psicanalistas, advogados, peritos e a acrescer, outras situações do imaginário. Denotam os meios de comunicação, sem qualquer escolha movida pela ética – infindável a lista de julgamentos não divulgados !!! – essa busca compulsiva pela audiência e pelos leitores. Tantas notícias da maior importância na semana ficaram relegadas como apêndices ! Todavia, as inserções nos noticiários televisivos e radiofônicos dão bem a medida de que se chegou ao absurdo. Infelizmente, nestes casos, nada mais a fazer. Como no Um Trágico Amalgamar do início dos anos 90. Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra, a célebre frase do famoso orador romano Marcus Tullius Cicero em 63 A.C., continua pela eternidade…

Resuming the subject of the Brazilian soap operas and their impact on the audience, I transcribe another article written for an Azorean newspaper in 1993. In an example of life imitating art, a soap opera actress was murdered by the co-star who played her boyfriend. Her death caused a huge commotion in Brazil and was a commercial success largely exploited by newspapers and TV news, pushing aside the coverage of President Fernando Collor’s scandals and resignation.