Infinitesimais Sonoridades Fronteiriças

Desenho a lápis. Maria Fernanda, 2009. Clique para ampliar.

Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir…
Charles Baudelaire

Um dos grandes segredos da interpretação é saber lidar com a dinâmica (do grego dynamiké), termo utilizado na música para determinar as oscilações da intensidade sonora, da máxima à mínima. A música denominada clássica, erudita ou de concerto convive com essa maleabilidade no tratamento das intensidades. Saliente-se que o domínio absoluto desses opostos é de rara dificuldade. Em 1961, estudava em Paris e, ao visitar a insigne professora Nadia Boulanger (1887-1979), uma das mais importantes mestras francesas do século XX, toquei emocionado várias obras para ela. Após, durante os preciosos momentos em que passei em sua residência, recebi conselhos sobre interpretação que permaneceram como normas. No quesito dinâmica, jamais me esquecerei de seu conceito. Para ela, o instrumentista que soubesse utilizar toda a extensa gama, que vai dos sons basicamente inaudíveis ao volume mais acentuado, estaria a dominar parte dos segredos da interpretação, pois a grande maioria permanece, ao lidar com a dinâmica, entre uma intermediação, não chegando aos limites que se fariam necessários. Dias depois, recebi encorajadora carta de Nadia Boulanger, doada recentemente à Fundação que leva seu nome, em Paris.
Os limites extremos do som sempre despertaram interesse. Na música erudita tradicional há essas fronteiras que são precisas e que atendem, inclusive, à percepção auditiva do homem. Baixa, média e alta intensidades obedecem a critérios interpretativos que deveriam ser sempre seletivos. Ao longo dos anos ficou-me o axioma da ilustre personalidade musical francesa, especialmente quando iniciei estudos para a apresentação da integral para piano de Claude Debussy, que se deu pela primeira vez em 1980. O compositor francês é a representação maior dos sons infinitesimais, pois 80% de suas composições encontram-se nas baixas e baixíssimas intensidades (p e pp, piano e pianíssimo no léxico musical). Se for considerada a terminologia utilizada por Debussy no desiderato de exprimir a constante presença das baixas intensidades em sua obra, ter-se-á a poética a fazer fronteira com o silêncio. Essa divisão entre o nada e sonoridades quase inaudíveis, assim como a situação contrária a levar ao silêncio, é insistentemente assinalada pelo autor, que dá as senhas precisas para a interpretação. Dir-se-ia que há nesses casos verdadeira volatilização sonora, analogia com as fragrâncias, Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, como escreve Baudelaire em verso apreendido por Debussy. Ingredientes simbolistas estariam a penetrar nesses termos expressivos sempre que o limite extremo sonoro voltado aos pianíssimos estimulasse a sensibilidade do compositor. Dir-se-ia que expressões como en se perdant, en retenant et en s’effaçant, encore plus lent et plus lointain, morendo jusqu’à la fin, très éffacé contêm essência desse encantamento pelo quase inaudível. No subcapítulo Le Presque-Rien: L’Air et le Vent, do terceiro volume da trilogia sobre o músico francês Debussy et le mystère le l’instant (Paris, Plon,1976), Vladimir Jankélévich observa, ao abordar essa penetração abissal: “É no instante em que a eternidade e a inexistência, a aparição e o desaparecimento, o positivo e o negativo coincidem, pois a música de Debussy é a arte do infinitesimal”. O autor apreende, a partir de metáforas, a problemática das intensidades em Debussy, assim como o universo das longas quedas buscando sons em baixas intensidades, ou, desde logo, o caminho em direção à luz, quando ascensões sonoras se fazem presentes. O leitor terá mais informações das obras sobre música do grande filófofo francês ao acessar meu texto incluído no site (vide Vladimir Jankélévitch e os Opostos Sonoros em Harmonia, no item Essays).

Gaby Dupont, amiga de Debussy durante anos. Foto Pierre Louÿs, circa 1895. Clique para ampliar.

Neblina, buée irisée ; a noite e seus mistérios; a lua em percepção única, Et la Lune descent sur le Temple qui fut (E a Lua desce sobre um Templo que Existiu); a água a permear a criação, desde as grandes ondas até aquela imóvel e estagnada; a neve e a chuva; o vento tenebroso ou rotineiro; reflexos; e tantas outras representações da natureza seriam parte essencial da respiração em Debussy. Toda essa mutabilidade perceptível aos sentidos no corpo de uma mulher seria traduzida pelos cabelos em permanente transformação. Longos, a seduzirem e a provocar encantamento. Têm eles essa fraterna ligação com a instabilidade da natureza. Imprecisos, rebelam-se contra a fixação. Em Pélleas et Mélisande, é ela que inebria Pélleas no terceiro ato, com seus longos cabelos; quando de La fille aux cheveux de lin, Debussy sugere; em La Chevelure, a partir de poema de Pierre Loüys: Cette nuit, j’ai révé. J’avais ta chevelure autour de mon cou. J’avais tes cheveux comme un collier noir autour de ma nuque et sur ma poitrine. / Je les caressais, et c’étaint les miens; et nous étions liés pour toujours ainsi, par la même chevelure… E o inefável dos cabelos integra o universo das imagens do compositor. Sons e quadros intangíveis, mas a serem buscados na essência pelo intérprete e pelo ouvinte. Jankélévich escreve: “entre o nada e ele há justamente a diferença desse quase, que é uma diferença infinita: a presença quase-ausente é fugaz, mas presente”. Nesse sonoro em que reinam as baixas intensidades, os cabelos e toda a sensualidade e pureza, paradoxo amalgamado, traduziriam essência essencial do pensar de Debussy. Camille Soulla acrescenta o objeto indispensável: “…o pente a modificar, ao ser manuseado, o mutante edifício chamado penteado”.
Essas observações vêm a propósito do não-dito, do não-composto, do não-pensado. O universo simbolista, do qual Debussy é o representante excelso, não teria apreendido o infinitesimal do infinitesimal, captado por uma miúda em sala de aula. Sim, há o “quase” silêncio, irmão gêmeo do “quase” inaudível, pois pertencentes à mesma intenção. Ao fazer parte de banca examinadora de um dos mais originais trabalhos acadêmicos que analisei em minha vida intramuros (Pedro Paulo Salles. Gênese da Notação Musical na Criança. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FEUSP, 1996, pág. 149), deparei-me com algo rigorosamente inédito e extraordinário, pois vindo de uma menina em tenra idade. Escreve Pedro Paulo Salles, competente e criativo professor, binômio cada vez mais raro a ser atribuído a um docente: “Certa ocasião, uma menina de sete anos entrou na sala de aula e disse: ‘Pedro, eu tenho um som! Mas preciso do máximo de silêncio.’ As outras dezesseis crianças e eu fizemos, então, um silêncio sepulcral, não se ouvia um nada de coisa alguma. Construído esse microcosmo de silêncios, cúpula para ressonâncias, a menina de longos cabelos castanhos retirou, lenta e cuidadosamente de sua mochila, uma escova de cabelos: a situação era para pasmos e suspensões. Então, de ouvidos (e olhos) arregalados e de respiração suspensa, pudemos perceber a lenta, leve e repetida ‘respiração’ do escovar. Mímica: mínima música. Diante de nós: intensidade (presque-rien), duração (cabelos longos; som longo), timbre (fricção), densidade (os fios da chevelure) e mistério. Cabelos tangidos em movimentos precisos, gestos sem gravidade regendo intensidades, desembaraçando significações. Formado em grande parte por silêncios, o escovar é quase um som conceitual e evoca as levíssimas brumas de Debussy e as filigranas de Webern”. Qual não teria sido a reação do autor de Sirènes se tivesse conhecimento desse ineditismo? Ao ler o texto à minha filha Maria Fernanda, dias após apresentou-me a materialização do fato singular. O pente como símbolo da evaporação sonora, sem mácula, a não deixar vestígios.

Clique aqui para ouvir excerto do 3o Quadro da Boîte à Joujoux, de Claude Debussy, com J.E.M. ao piano. “Un pâtre qui n’est pas d’ici joue du chalumeau dans le lointain. Lent et mélancolique.”

A few comments on sound and silence in the works of Claude Debussy, and a seven-year old girl’s original approach to the subject.

Lembrá-lo Eternamente

Desenho a lápis. Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

E não me chamem de Mestre
sou apenas aprendiz
daquilo que me é o mundo
e do que sendo me diz

Agostinho da Silva

Professor é alguém que ajuda os outros a aprender;
Mestre é, sobretudo, aquele que ajuda os outros a “desaprender”:
a desaprender conceitos errados de vida, de verdade, de sabedoria, de Amor…

José Flórido

Tenho o maior apreço pela etimologia da palavra mestre. Vem o termo do latim magister. A designação de mestre era uma referência extraordinária àqueles que mereciam ostentar o título, mesmo que simbólico. No coletivo, tem-se Mestres Espirituais, da Pintura, da Música, da Ourivesaria. Em França, o termo maître, seja ele aplicado, como exemplos, a um grande músico ou a um especialista em culinária, tem sua carga competente. Ainda hoje, particularizado em tantas funções, Mestre do desenho, do teclado, de obras, de carpintaria. Qual a razão? Pelo fato de que se tem alguém a ensinar ciência, arte ou qualquer outro ofício. Seria o mestre a figura fulcral em sua especialidade, aquele a dominar o seu métier no sentido amplo. Não por outro motivo, a chave-mestra designa aquela que abre todas as portas. Em qualquer atividade, as portas da mente serão abertas quando influências de mestres competentes tiverem sido assimiladas, filtradas e até dimensionadas.
As gerações atuais pouco a pouco esquecem-se de honrar os verdadeiros mestres. Ao perguntar sobre a relação com os mestres a muitos colegas e alunos, nem sempre há a recordação precisa dos ensinamentos recebidos, mormente se foram inúmeros a ensinar e, tantas vezes, em salas coletivas. Ficam vagas lembranças, mas quando alguns mencionam com respeito determinado mestre, tem-se a fixação. Mensagens foram assimiladas. Num aspecto outro, vive-se a era em que superficialidade e interesse têm mais peso do que ensinamentos que penetrem inteiramente no de profundis. Torna-se necessário, para aferições curriculares, a quantidade de cursos realizados. Questionários não solicitam o que foi efetivamente aprendido. Sob outra égide, acentuam-se cursos realizados via internet. Telões apresentam um professor transmitindo para uma câmera o que deve ser passado. Um dileto amigo, que frequentemente visita a China, disse-me que essa prática atinge, inclusive, as classes de ensino de piano, pois naquele país há cerca de 30 milhões de praticantes! O que esperar de geração formada sem elos para a amarra de uma cadeia? A realidade tem sido cruel frente ao verdadeiro significado de mestre. Se mestres existem no Ocidente em todas as áreas, não estão a ser devorados pelo Leviatã da globalização?
O mestre autêntico é aquele que aprende todos os dias e, assim sendo, permanece sempre um aprendiz, o maior deles. Se ele tem essa consciência, fruto de mundo interior singular, certamente não terá empáfia, e os holofotes, se houver, serão entendidos apenas como luzes que precisam de uma tomada de eletricidade para que se acendam e não como meta final. Seu objetivo maior, o culto à qualidade exemplar. O mestre responsável entende como dádiva o que assimilou de outros mestres, não se achando acima de seus ascendentes, mesmo que os supere. Há nele, sempre, a compreensão quanto aos passos do discípulo, em qual estágio estiver, e felicidade ao ver horizontes mais extensos que o seu, se este o ultrapassa na trajetória. Difere visceralmente do pseudo-mestre, cuja intenção é tornar o aluno um eterno dependente. Ponderaria que são poucos os mestres autênticos que permanecem perenemente no pensamento de um discípulo autêntico, pois o amálgama se dá de mente para mente, e nem sempre a transmissão encontra campos propícios. Na acepção, evita delegar seu dever àqueles ainda não preparados para o mister, mas está sempre disposto a guiá-los. Pode ter “candidatos” a mestre bem próximos, mas permanece inteiro no ensino, diante dos aprendizes. Sente-se merecedor. Verdadeira missão.
Hodiernamente no Ocidente, mormente na vida acadêmica, mestre é títulação inicial, preferenciando a Academia os subsequentes, como doutor e outros mais. Há quase que o olhar benevolente daqueles que se encontram acima na carreira universitária para o que se tornou mestre. Isso é fato. Banalizou-se a palavra, extinguindo-se-lhe a força intrínseca, espiritual e a essência essencial, pois legiões obtêm o título de mestre anualmente. Paradoxalmente, muitos daqueles que concluem o mestrado, motivados pela necessidade acadêmica, já o são de fato pela experiência. Nesses casos, o papel apenas indicaria a “oficialização” da Academia para possível ascensão na carreira. Contudo, em muitas universidades públicas brasileiras o mestrado não serve sequer para que esse recém-titulado concorra a uma vaga acadêmica quando concurso é aberto. Menos mal que o título fique restrito intramuros, a permanecer, para a grande maioria, a palavra com seu real e abrangente significado fora da Academia. Destruiu a universidade a magia do termo. Não seria a minimização da palavra mestre, no caso, um desvirtuamento terminológico?
O tema surgiu a propósito de sub-capítulo de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 11º edição, 530 págs.). A reverência, amor mesmo, respeito, admiração que se depreende da leitura da bela apologia levou-me a considerar a posição que um autêntico mestre exerce sobre nós. Um mestre budista é muitas vezes um ser iluminado.
Escreve Sogyal Rinpoche: “No nível mais profundo e mais elevado, o mestre e o discípulo não são nem podem ser em caso algum separados, porque a tarefa do mestre é nos ensinar a receber, sem obscurecimento de qualquer tipo, a mensagem clara de nosso próprio mestre interior, e levar-nos a perceber a contínua presença desse mestre máximo dentro de nós”. Aplicado à categoria dos mestres do budismo, a analogia com aquilo que deveríamos entender por mestre no Ocidente pode ser aventada. Quem cultua o mestre permanente entende a sua importância fundamental, principalmente quando, ao ensinamento na área, soma-se a compreensão da cultura humanística como um todo. Num sentido amplo, o mestre permanecerá como um farol. A cada flash de luz, como em noites sombrias no mar, lições aprendidas permanecerão pela existência afora, consubstanciando mensagens que são passadas às nova gerações pelo agora discípulo mestre.
Ficaria implícito que reverência seria sinal de gratidão por parte do aluno que soube assimilar as palavras do mestre, mais intensamente gravadas na mente do discípulo se houver abrangência por parte do magister. Competência e sensibilidade do mestre, receptividade e gratidão por parte do aluno. O ser grato ao mestre é uma consequência? É-o, mesmo que com gradações, no cerne do relacionamento entre quem transmite e aquele que absorve; é-o, se considerarmos a metáfora, proposta por Sogyal Rinpoche, de que o discípulo é aquele que jamais viu seu próprio rosto, mas que só dele tomou conhecimento quando o mestre apresentou-lhe um espelho capaz de revelar traços apenas imaginados. Mestres cultuados e discípulos a entenderem a continuidade do pensar não seriam formas de se atenuar a crescente vaga de desinteresse, desrespeito e irresponsabilidade existente no triste panorama que vemos diariamente nos noticiários? Demole-se pouco a pouco a relação elevada que deveria existir. O homem a caminho do esquecimento das tradições. Contudo, não podemos deixar de acreditar, e os exemplos vivos da perfeita harmonia mestre-aluno representam a luz que ainda não se apagou.
Se, ao longo destes quase dois anos e meio, posts têm sido publicados ininterruptamente, em muitos deles meus saudosos mestres foram e serão lembrados. A trajetória se tornou mais harmoniosa, mercê da dádiva de com eles poder ter apreendido ensinamentos. No turbilhão do viver, a tentativa de compreensão do mistério da vida passa inexoravelmente pelo culto àqueles que nos guiaram. A partir deste, há a possibilidade de entendermos partícula mínima, infinitesimal da existência e colaborar, como um grão de areia, na edificação de um mundo melhor.

A reflection on the qualities that make a good teacher, a master in the true sense of the word. Unfortunately, universities in the West do not understand the real meaning of the word with its spiritual implications. The new generations often show little or no reverence for their masters. Only Oriental religions and the great artistic movements of the West are aware of the traditional values that dictate the master-disciple bond.

Caminho para Varna

Estação rodoviária de Sófia. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Felicidade é a certeza de que a nossa vida
não está se passando inutilmente.

Érico Veríssimo

Quantas não são as viagens esquecidas? Aéreas, por vias férreas ou rodovias, parte considerável dos deslocamentos não é lembrada. A memória, com as sucessivas viagens, não pode reter todas elas. Permanecem aquelas em que algo inusitado acontece. Uma primeira vez, visita diferenciada a determinado lugar, relacionamentos novos, transportes os mais diversos, tudo torna indelével uma jornada, ainda mais se fatos quebram a normalidade que se espera.
As décadas acumuladas fizeram-me sentir sensível diferença entre os deslocamentos aéreos e os terrestres. Aeroportos ocidentais de maior porte têm quase sempre características muito próximas. Cosmopolitas, alguns bem mais equipados que outros, todos ostentam certas semelhanças. As pessoas, tanto no check-in como na sala de embarque, mostram-se sérias, geralmente incomunicáveis, algumas até arrogantes, por função profissional que buscam evidenciar através de gestos, trajes, utilização ostensiva de celulares e parafernália outra. Para aqueles que não pertencem à classe econômica, esse distanciamento em relação à categoria “social inferior” fica mais evidente no momento do embarque. Essa atitude pode ser observada também nos comboios no Exterior, mormente nos ótimos e rápidos TGVs, bem mais caros, ainda mais na primeira classe. Mas, nos trens comuns, uma maior interação entre as pessoas fica evidente. São fatos que a simples observação constata. Quanto à viagem coletiva por rodovia, mais abertamente social, chega a haver até congraçamento, a depender das circunstâncias.
Estava a percorrer álbuns de fotografias quando encontro algumas tiradas em 1996, durante viagem de ônibus de Sófia a Varna, na Bulgária. Convidado para um recital nessa cidade às margens do Mar Negro, foi-me oferecida passagem de avião, em percurso de curta duração. Pedi aos organizadores que providenciassem uma por rodovia, jornada que leva sete horas em média, pois tencionava pelo menos ver terras outras, cidades, vilas, aldeias, paisagens e captar uma mínima parcela da índole do povo búlgaro.
A estação rodoviária, simples e um pouco desorganizada, chamou-me a atenção pelas destinações as mais diversas de tantos veículos, assim como a presença desse povo humilde, muitos camponeses, pequenos comerciantes, mulheres com crianças, idosos. Cristãos e muçulmanos entravam nos vários autocars. Liam-se as localidades fixadas em cada um: Atenas, Istambul, cidades da antiga Iugoslávia – havia ainda litígios fratricidas grassando nos países recém-constituídos – e outras mais da região, ilegíveis para um leigo na escrita cirílica.

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O ônibus para Varna saiu lotado. Os passageiros, muitos com traços ciganos, conversavam com certa desenvoltura e em voz alta. A visão do cerne de um país, pois a estrada corta a Bulgária de oeste a leste, ficou marcada pela presença de pequenas florestas nas encostas de montanhas, onde se destacavam pinheiros, plantações de legumináceas, rebanhos esparsos de carneiros, minas ou pedreiras, muitas serras, pequenas cidades e aldeias, campesinos a trabalhar a terra ou a andar pelas margens da rodovia e muitas carroças bem típicas, puxadas por dois animais. Percebia-se em todas as moradias, mesmo as mais singelas, uma certa estrutura, a fim de suportar invernos rigorosos. Tornovo, parada obrigatória no meio do percurso, é a maior delas até chegar-se a Varna. Duas ou três outras paradas mínimas serviram para que eu descesse do veículo, a fim de fotografar camponeses em suas andanças.
A Bulgária abandonara há pouco o regime comunista, com o esfacelamento da antiga União Soviética. Sete anos é tempo curto para a recuperação, e nesse belíssimo país podia-se sentir a dificuldade financeira, pois tudo estava imensamente barato para um ocidental. A moeda era a leva, e refeições e o cotidiano mostravam-se a preços irrisórios.
Algo bem curioso ocorreu durante a ida e o retorno. Dois filmes foram exibidos em cada trajeto, fato normal numa longa viagem. Contudo, sem legendas, todos estavam dublados em búlgaro por uma voz única masculina. Como o sonoro idioma búlgaro é pleno de consoantes, há uma tendência natural às vozes mais graves. Estava eu preferencialmente a observar a paisagem ou a repousar, mas ocasionalmente via alguns segmentos do filme em exibição. Em um deles, a escultural Kim Bessinger estava em cena idílica, possivelmente a declarar amor ao parceiro, mas dublada por voz masculina grave sem nenhuma expressão. Dei boas risadas. Controlei-me ao observar o espanto dos outros passageiros. Em um outro filme, uma criança de cinco ou seis anos entra no quarto dos pais e diz “papa, papa” com voz de adulto. Novamente não me contive, e os olhares dos companheiros de viagem bem evidenciaram que eu não apenas nada estava a entender, como desconhecia essa prática, normal em tempo de transição política. E de pensar que os barítonos búlgaros são excepcionais, assim como as vozes femininas, existindo na Bulgária alguns dos mais perfeitos conjuntos vocais do planeta.

Cartaz do recital de piano de J.E.M. em Varna. 1º de Setembro de 1996. Clique para ampliar.

Ao chegar a Varna, um deslumbramento e a sensação de estar em uma cidade às margens do Mar Negro de tantas lendas, guerras e histórias outras. Mar interior, entre o Sudeste da Europa e a Ásia Menor, banha várias costas: Géorgia, Rússia, Ucrânia, Romênia, Bulgária e Turquia. Sua área total é de 422.000 km2, tendo profundidades bem acentuadas. Saber que esse mar interior apresenta-se frente às cidades como Sebastopol (palco de violentos combates históricos, mormente no famoso cerco durante a Guerra da Criméia -1854-1855, e em episódios épicos em plena Segunda Grande Guerra); Odessa (lá nasceu meu saudoso professor José Kliass); Ialta (cenário da célebre conferência – conjunto de reuniões – em Fevereiro de 1945, com a presença de Churchill, Roosevelt e Stalin, meses antes do término da Segunda Grande Guerra), Constança, antiga Tomis (para onde Ovídio – 43 a.C-17 d.C, o autor de Metamorfoses, foi desterrado); Varna; Istambul (outrora Constantinopla e Bizâncio de fantástica história), causa impacto.

De belo jardim em Varna, pormenor do Mar Negro. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Como estávamos nos estertores do verão, após o recital, que se deu no fim da manhã, fui até o jardim bem cuidado a proporcionar uma visão única do mar em momento ensolarado. Dele, descendo por escadaria bem antiga, tem-se acesso a uma das praias. Tirei sapatos e meias e caminhei cerca de vinte minutos, a sonhar com lendas e tradições do Mar Negro. Uma sensação de alegria e de emoção ao pisar aquelas águas que povoaram meu imaginário juvenil, quando leituras dimensionavam o misterioso Mar. Lembro-me, ainda miúdo, de um conto russo que minha mãe me leu, e aquele Mar pareceu-me ter uma importância descomunal, pois envolvia barcos tragados misteriosamente pelas águas. Era a primeira revelação. Meu grande amigo Gilberto Mendes pediu-me que incluísse no programa uma peça sua, pois Varna tem para ele uma aura especial, a povoar há muito tempo o seu rico imaginário. Esqueceram-se de colocar o nome impresso, mas toquei Viva-Villa a anteceder obras de Villa-Lobos. Ficou feliz, mas gostaria de ver seu nome no programa. Grande Gilberto.
O regresso deu-se tranquilamente. Os mesmos filmes foram reprisados, mas as paisagens eram diferenciadas, pois apreendidas em sentido contrário. Havia a certeza de que valera a pena ter trocado o meio de transporte, pois, se aéreo, poderia perder-se no esquecimento. O inusitado a ficar gravado. Perenemente.

On my way to Varna:
Unexpected events are hardly forgotten, specially when one is travelling. Flipping through an old photo album brought back memories of singular moments lived in Bulgaria in 1996: embarking on a seven hour trip by bus from Sofia to Varna among locals; strolling barefoot on the shores of the mythical Black Sea.