Partilhando Emoções

Senhor ! Que amor de filha tu me deste !
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
Dá-lhe a Virtude por amparo e guia
:
Eugênio de Castro

J.E.M., Lásaro Pituba, filho do santeiro Dito Pituba (1848-1923) e Maria Beatriz. Santa Isabel, 1981. Clique para ampliar.

Prelúdio

O post da semana anterior versou sobre os jovens laboriosos da cidade, exemplificados através daqueles que trabalham em uma das filiais do hortifrúti Natural da Terra. Acabara de redigir e deparava-me com o Dia dos Pais, onde carinho da família não faltou. Maria Beatriz ofereceu-me livro com o título Aprendi com meu Pai – 54 pessoas bem-sucedidas contam a maior lição que receberam dos pais (Luís Colombini, São Paulo, Versar, 2006). Ao final, a editora convida o leitor a redigir aquilo que entende como Minha História “com o mesmo padrão deste livro, para escrever a sua lição, aquela que você aprendeu com seu pai. Uma vez escrita, é só imprimir, recortar e anexar ao livro para criar uma edição especial em homenagem a seu pai”. Tutti riuniti, Maria Beatriz leu o texto que nos comoveu muito. Conhecedores dessa singela e expressiva homenagem, amigos sugeriram que fizesse um post. Fi-lo sucinto e com certa relutância, incluindo-o após a exposição de “Grand Sourire”, pois há carga emotiva compreensiva em Dia dos Pais que me foi tão amoroso. Duas fotos ilustram o texto, tiradas em locais mencionados por Maria Beatriz e guardados entre as minhas recordações. Confesso ao leitor que publico o presente blog sem consultá-la. Conheço-a. Saberá perdoar-me.

“Grand Sourire”

Notei durante minha adolescência. Meu pai interessara-se pela imaginária paulista. Eram imagens feitas em madeira ou terracota, de santos os mais diversos ou de Nossa Senhora, a grande maioria do século XIX ou início do século XX, encontradas na região do Vale do Paraíba, sobretudo em Sta. Isabel e Nazaré Paulista.
Os contatos frequentes com Dr. Eduardo Etzel influenciaram consideravelmente o gosto requintado de papai por esta arte tanto erudita quanto popular e o aprender a restaurar com perfeição cada imagem, muitas vezes cobertas por algumas pinturas posteriores à original, até se chegar à concepção primeira do artista.
Aquele final da década de 70 e início dos anos 80 era ainda época propícia para encontrar essas pequenas esculturas religiosas em seus primeiros nichos, fora do âmbito comercial da grande cidade, pois muita gente simples da roça deixara de ser católica e aquelas preciosidades artísticas não se podiam perder. Agora evangélicos, desprendiam-se das imagens, ou melhor, desfaziam-se delas quando não lhes tinham mais significado – às vezes seu destino era o lixo – e aceitavam a troca por qualquer coisa de que realmente necessitavam: não só dinheiro, mas remédios ou qualquer objeto que sonhavam ter e que papai podia lhes levar da capital na viagem seguinte. Os que mantinham a fé católica aceitavam a troca por imagens “mais bonitas e coloridas” em gesso e aquelas outras necessidades.
Essa pesquisa de campo papai, preparado por Dr. Eduardo, chegou a fazer tão bem quanto o mestre, como este chegou a confessar-lhe, com a seriedade e a competência que são peculiares a seu caráter, aliás, como em qualquer trabalho que até hoje se propõe fazer, seja na área da música ou não. E as viagens papai não fazia sozinho. Gostava de companhia. Geralmente era eu ou meu primo Roberto que o acompanhava. Minha irmã também aproveitou essa experiência. Sempre foi um privilégio viajar com papai, fosse para essas aventuras na região de Sta. Isabel, fosse para além-mar acompanhá-lo para os recitais em Portugal ou na Bélgica, pois seu bom humor, sua disposição, sua inteligência e sua boa conversa com as pessoas, sejam simples, sejam intelectuais, que surgem no caminho são um deleite para quem o acompanha.
Para a pesquisa de campo era preciso adotar um método e ir com frequência àquela região para, primeiro, encontrar um olheiro, que era o elo de aproximação com aquela gente simples da roça. Esse homem tinha seu trabalho extra a cada sábado ou a cada quinzena e, além de necessário, pois fazia uma busca prévia sobre quem concordava em se desfazer das imagens, era importante para a realização do intento. Mas meu pai tinha seu jeito próprio de conquistar e convencer aquela gente, a começar por sua autoconfiança, pela postura de “doutor da capital”, com seus óculos que lhe emprestavam a seriedade na intenção e, óbvio, por seu “grand sourire”.
Assim, não raro voltava em outras viagens às mesmas casas onde já tinha alcançado seu objetivo para levar aquele determinado relógio com que o caboclo sonhara ou aqueles mantimentos ”x” ou remédios “y” de que precisava ou mesmo aquelas palavras animadoras, aconselhadoras ou reconfortantes. E o entrar em cada casa, depois que tinha sido derrubada qualquer barreira com a gente de São Paulo, era muito bom. O sinal do acolhimento era o “chafé” passado na hora.
Aquelas palavras animadoras e reconfortantes sobre a vida pessoal ou de um ente familiar, sobre sua trajetória, precedidas e seguidas do “grand sourire”, são o gesto de que tanta gente do campo ou da cidade, do Natural da Terra, da padaria, do mercado, da farmácia ou da rua, precisa ou que valoriza. Sei que esses gestos podem fazer a diferença no dia dessa gente boa e batalhadora que muitas vezes não teve a oportunidade de traçar o rumo que almejou, que lhe desse mais satisfação pessoal ou maior tranquilidade.
Esses gestos, tão naturais e característicos no viver não só de papai, mas de minha mãe, meu sogro e minha sogra, são marcantes, próprios de quem é magnânimo.

Postlúdio

Maria Beatriz e Maria Fernanda, em momentos distintos, acompanharam-me em viagens que me foram inesquecíveis. Companhias adoráveis. Ainda miúda, Maria Beatriz mostrava-se responsável. Era ela que, compenetrada, levava até o camarim minha pasta de mão quando das apresentações pianísticas em São Paulo, a dizer-se minha secretária. Necessário frisar que jorrou generosidade em seu sensível texto. Amor filial. Naquele domingo, 9 de Agosto, Dia dos Pais, fiquei a pensar longamente ao retornar à casa. Seria coincidência, acaso, ou a detectação de pensamentos que pairam no ar? Maria Beatriz desconhecia o texto publicado na semana que passou e há proximidade em aspectos fulcrais. Creio que a herança que recebemos e buscamos transmitir fica anexada ao DNA subjetivo e tão mais significativa será se o descendente souber decifrar o segredo a conduzir ao aperfeiçoamento das cepas das parreiras. Quando esse milagre acontece, terá valido a existência.
Em 2004, logo após prolongadas sessões de quimioterapia, dei recital no Salão Árabe da Bolsa do Porto em Portugal, primeiro depois de vários meses. Minha mulher carinhosamente me acompanhou, pois estava fragilizado e precisava utilizar-me, inclusive, de uma bengala. Chegamos dia 10 de Novembro, um dia antes do recital, e já no dia 13 partiria para apresentação em Bruxelas. Estava a ensaiar pela manhã para a récita da noite, quando avisaram que havia alguém que gostaria de me ver. Concentrado, desliguei-me das buscas sonoras, e qual não foi minha estupefação quando vi entrar na sala Maria Beatriz. Abracei-a a chorar copiosamente e indaguei-lhe o porquê. Disse-me, também profundamente emocionada, que obtivera licença na Procuradoria e viera ao recital, pois não poderia perder o meu retorno às apresentações. Dizer que toquei pleno de inspiração naquela sala de encantamentos é pouco. Três dias após ela regressava ao Brasil. Essa é Maria Beatriz, filha, dádiva.

Maria Beatriz e J.E.M. Gent, Maio 2005. Clique para ampliar.

On Father’s Day, my daughter Maria Beatriz gave me a book in which 54 successful men and women describe the most important lesson learned from their fathers. At the end the reader is invited to give an account of his own experience. And so my daughter wrote the passage that follows, “Grand Sourire”, about our trips together to collect Brazilian religious images when she was in her teens and, later on, accompanying me on my concert tours in Portugal and Belgium I was deeply touched by her account and decided to share it with my readers.

Salvaguarda da Esperança

Funcionários do Natural da Terra. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo;
Cada um deles só exprime metade da vida,
Sou do paradoxo que a contém no total.

Agostinho da Silva

Nesse mundo conturbado, onde há tantas discrepâncias entre os jovens, diria até, categorias claras de atitudes perante a vida, ou mesmo de realidades existentes, é estimulante verificar a presença de segmentos laboriosos. Indispensáveis à sociedade, moços estão numa rotina que se faz necessária em uma cidade grande, a viver um cotidiano difícil e levado a sério.
Mesmo entre parcela dos jovens que nasceram em berços seguros financeiramente, com bons estudos em escolas particulares e lazer no momento oportuno, há distorções, mercê da educação, da índole, do ambiente frequentado. Tristemente, muitos se perdem nas drogas, outros mais têm o dinheiro facílimo e desperdiçam anos preciosos na ociosidade, nos estudos negligentes, nas denominadas baladas e no preconceito frente aos menos favorecidos. Mas há aqueles nesse segmento que, cientes das responsabilidades e acalentados por famílias estáveis, equilibradas e amorosas, conseguem ultrapassar a fase de aprendizado e tornam-se úteis à sociedade, constituindo, por sua vez, famílias igualmente estruturadas.
As grandes cidades são cruéis e muitos se desviam sem retorno. Numeroso contingente de jovens desconhece inclusive a paternidade e, não poucas vezes, a maternidade. Crescendo à própria sorte, cooptados por outros de mau caráter, exemplificam que a distorção está feita. Tem-se pois, a queda vertiginosa em direção ao tráfico e à violenta criminalidade. O Estado, na verdade, pouco se preocupa com essa situação. São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades populosas apresentam diariamente suas chagas abertas ante o silêncio das autoridades. Jovens inocentes são abatidos mensalmente por meliantes de toda espécie, que em bandos se exterminam também mutuamente. Para as vítimas, o pranto dos familiares; para o marginal, quando menor, associações protetoras denunciando a sociedade; quando maior, aparições dos raros que são presos com as cabeças baixas e cobertas. A mídia estimula essa infausta divulgação. Parafernália em crescimento geométrico.
Mas há esperança. A grande maioria dessa mocidade é operosa. Vemo-la, sobremaneira nas grandes cidades, ocupando os espaços do trabalho intenso, quase sempre com salários que possibilitam apenas a sobrevivência precária, mas exercida com dignidade. Colaboram com afinco, contando os tostões, na renda de famílias simples e honradas. Quantidade desses jovens está espalhada nas grandes redes de supermercados, shoppings, instituições financeiras, lojas e suas filiais, pequeno comércio, e escritórios. Todos verdadeiros heróis. Alguns, mesmo exaustos, encontram tempo para estudar. Porém, dificilmente podem competir em igualdade nos vestibulares das universidades gratuitas. Mais uma das tantas injustiças do Estado na esfera da educação. Quando sonham praticar esportes que poderão levá-los às competições, praticamente não têm patrocínio das entidades públicas e privadas. Vive essa juventude trabalhadora no corre-corre da cidade a levá-la, após duas, três ou quatro horas diárias de transporte coletivo, a destinos em que atividade sem distrações a espera. Aglomera-se em ônibus, trens e metrô. Agrava-se igualmente essa constrangedora situação. Apenas na pré-eleição vozes conclamam resultados a serem aferidos, mas que nunca se tornam reais. Transporte, saúde, educação e segurança realmente não fazem parte do pensar de nossos homens públicos.
Há décadas, mormente após a aposentadoria universitária, vou aos supermercados de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Assim como em tantos pontos dessa megalópole descomunal, proliferam redes desses estabelecimentos varejistas, que a cada ano aumentam filiais, mas que se restringem, hoje, basicamente a um duopólio. Ainda há as feiras livres – até quando? – (vide Feira Livre, Uma Festa para os Sentidos, 08/08/08), padarias, supermercados de hortifrutigranjeiros, açougues e outros estabelecimentos menores, que fazem lembrar os saudosos empórios e quitandas. A verdade, contudo, é que temos de adaptar-nos ao que existe.

Funcionários do Natural da Terra. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Visito diariamente um hortifrúti bem perto de casa, o Natural da Terra, pois aproveito para comprar também pão fresco e leite e, durante intervalos do estudo pianístico, tomar um curto enquanto reviso textos. Rotina prazerosa. Conheço pelo nome as meninas dos caixas, os rapazes que transportam as mercadorias e aqueles que trabalham na ótima lanchonete, onde não faltam simpatia e salmão especial. O convívio faz-me apreender a vida extra-trabalho dessa mocidade, relatos breves que me são transmitidos nos curtíssimos momentos, quando de um pedido ou pagamento. Contam-me as dificuldades nessa cidade, o perigo sempre à espreita quando retornam aos lares à noite, mas também sonhos acalentados. Algumas já têm filhos pequenos e com orgulho mostram fotos dos rebentos. Outras estão à espera. Quanto aos moços, há bela atitude frente ao dia a dia. Têm seus anseios, aspirações quanto ao futuro, assim como seus times de futebol preferidos. Não pertencem, felizmente, às gangues das torcidas organizadas, e recebem com descontração as brincadeiras às segundas-feiras, quando seus “esquadrões” sucumbem frente aos adversários. Ao passarem por casa carregando as compras dos fregueses, o sorriso simpático e a saudação franca é testemunho de vida saudável. Diferem, no trato com os fregueses, dos também laboriosos jovens do duopólio – há vários no entorno -, geralmente contidos, devido, quiçá, a ordens superiores. Toda essa bela rapaziada não faz parte de noticiários, nem a mídia por eles se interessa, pois a violência é um dos alimentos preferidos dos meios de comunicação. Por que os bons exemplos não são ventilados, mas apenas o erro, a desgraça e o infortúnio? A sociedade não apresentaria uma possibilidade de melhora, se fossem divulgados o trabalho e a vida dessa juventude?

Funcionários do Natural da Terra. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Senti profundamente a boa índole dessa maioria silenciosa em 2004, ao iniciar o tratamento quimioterápico no Hospital Nove de Julho. Em plena sessão, qual não foi a minha emoção ao ver adentrar o quarto três moças que trabalhavam no caixa de organização do mesmo ramo, mas anterior ao Natural da Terra. Pediram licença ao gerente no horário do almoço, pegaram o ônibus em trajeto longo e vieram visitar-me trazendo uma imensa cesta de frutas. Uma delas beijou-me a mão. Não me contive e chorei, o que é transparente quando estamos fragilizados. Durante longo período, permanecia, logo após as químios, dias em casa, a fim de evitar contágio. Quase que diariamente algumas das moças desciam a rua, tocavam a campainha e me saudavam do portão. Que emoção !
Os jovens que hoje trabalham no mesmo local têm essa mesma inclinação voltada para o bem, mercê também de tratamento cordial, a ser louvado, da organização junto aos seus funcionários. Gente boa, moços que admiro profundamente. Visitar o Natural da Terra é motivo de prazer. Sei sempre que haverá uma breve conversa com alguns dos jovens, brincadeiras, ou apenas o sorriso ou um piscar de olhos. E a vida prossegue nesse cotidiano que tem lá seus encantos.

While newspapers and TV news tend to choose to report on “junk food news” – youth violence, drug addiction and hooliganism – to pull in a larger audience, there is the other side of the coin: a legion of brave young people who work hard and have good family values. This post portrays some of such boys and girls who work in a greengrocer’s shop near my home: a youth that is level-headed, polite, good-humored and not engaged in antisocial or offending behavior, though prevented by economic disadvantage from achieving their full potential in life.

Quando o Destino é Implacável

Desenho de Luca Vitali. Julho 2009. Clique para ampliar.

Quando for tudo
servirei aos teus
quando for nada
servirei a Deus

Agostinho da Silva

Em toda atividade humana há extremos. Existem aqueles para quem circunstâncias muitas, somadas ao talento, fizeram com que tudo desse certo em suas carreiras. Torna-se evidente que nas trajetórias individuais há alguns que se sobressaem pelo valor inequívoco e, ao pontificarem, mantêm o status da realização plena e do sucesso, com ampla ventilação na mídia. Outros, que igualmente chegam ao destino, mantêm distância dos focos de divulgação. Estilos diferenciados.
Importa considerar que o caminho traçado pelo homem, mesmo que talento exista, pode ser obliterado por motivos os mais diversos e dramáticos. A história esquece os que não conseguem atingir objetivos acalentados no início da trajetória. Todavia, exemplos proliferam dessa permanente existência do talento que perde o sentido, mas que pode ser detectado, apesar de drama final. Nesse estágio, relaxa-se o manejo da atividade, abandona-se o rigor, e o profissional, cônscio da indiferença dos olhares e das opiniões, acaba perdendo a auto-estima. O mergulho que leva ao abismo estaria propenso a acontecer. É triste e lamentável, mas essa realidade é comum em todos os cantos do planeta, pois carreiras estiolam-se.

Tocador de gadulka. Sófia, 1996. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Das atividades humanas, duas ligadas às artes desde a antiguidade apresentam extremos a apontar para a plena realização de uns e para o infortúnio de outros, que perambulam por cidades, vilas e aldeias. Normalmente, esses artistas buscam unicamente a sobrevivência, pois todas as portas lhes foram fechadas. Nessa derrocada, longo caminhar em direção às calçadas, sonhos esfumaçaram-se, laços familiares romperam-se. Em tantos casos, o infortúnio veio da ausência de estrutura psíquica, assim como da mão solidária em momentos cruciais.
Pintores de rua, retratistas, muitos deles com real talento, ao chegarem ao derradeiro porto de sobrevivência demonstram o patético e, não raramente, traços que retratam transeuntes, paisagens perdidas ou o abstrato pelo abstrato trazem conteúdos que merecem interpretações. No campo da música, quantas não foram as vezes que em cidades brasileiras e em outras, espalhadas pelo mundo, deparei-me com talentos extraordinários, musicalidade à flor da pele, técnica apurada, se bem que possuidora de vícios absolutamente compatíveis com a realidade, já que o rigor há muito ficou à margem. Alguns registrados em meus olhos e, sobretudo, em meus ouvidos. Estou a me lembrar de um idoso tocador de gadulka – instrumento da Bulgária, espécie de violino popular – em Sófia, que no rigoroso inverno apresentava melodias da mais profunda nostalgia, dando grande ênfase às frases musicais. Nas ruas da cidade, intérpretes de kaval (flauta de madeira), de gaita de fole simples e de sanfona evidenciavam destreza. Há guitarristas em logradouros públicos de Lisboa, nem sempre tocando fados, mas conhecedores do instrumento. O metrô de Paris conhece bem músicos que interpretam em corredores e vagões. Alguns são jovens que estudam no Conservatório, compreendem essa prática como meio de angariar pequenas importâncias para complementar a sobrevivência. Diariamente, músicos de toda sorte entram nos trens. Muitas vezes são cegos e, nessa situação, tocam sem expressão melodias conhecidas, pois não estão estáticos, mas caminhando e preocupados com o barulho de parcas moedas que caem em suas caixas de metal. Em outra versão, respeitado violinista internacional disfarçou-se e ficou a interpretar obras do repertório de concerto em corredor de metrô, enquanto a grande maioria dos transeuntes passava indiferente.
Em San Juan, na Argentina, passei por dois músicos que estavam a tocar muitíssimo bem em uma praça. Violão e flauta andina formavam um belo duo na execução de canções folclóricas. Aplaudi-os num intervalo que fizeram e, ao falar com os intérpretes, soube que eram irmãos. Contaram-me vicissitudes, os vários conjuntos que integraram pela América andina e que se desfaziam continuamente. Sem trabalho, buscavam o sustento tocando nas ruas e logradouros públicos. Eram peruanos, estudaram em conservatório, mas, com a morte dos pais em conflitos com o Sendero Luminoso, saíram pelas montanhas. Hoje na planície, estão a angariar sustento.
Em Sergipe, na bela cidade de São Cristóvão – a quarta mais antiga do país -, conheci um tocador de pífano extraordinário. Estávamos em Outubro de 1982. O jovem não tinha mais de vinte anos, mas uma descomunal virtuosidade. Com seu chapéu de couro, característico da região, mostrava igualmente musicalidade invulgar, e seu corpo contorcia-se todo para a alegria dos que estavam a ouvi-lo. Ao final, perguntei-lhe a respeito de sua formação, de seu instrumento, de sua vida. Aprendera desde tenra idade com um mestre da região. Fazia seus próprios instrumentos. Utilizava taquara, cano de plástico, osso e qualquer outro material “tocável”. Com a seca sempre a grassar pela região, preferiu tocar nas cidades e vilas do entorno a migrar para o sul. Disse-lhe para persistir em suas belas execuções, pois um dia poderia se integrar a um conjunto. Ao deixar a praça, pois tinha de me preparar para recital à noite na bonita Igreja Matriz, fiquei com as melodias encantadoras daquele jovem músico. Liszt, em carta à Madame d’Agoult, não escreveria que há almas que amam os sons? Esse tocador de pífano mostrou-se exemplo típico, tão expressivo seu envolvimento.

Tocador de viola caipira. autor: Guilherme, barro cozido, 25 cm. Clique para ampliar.

Foi no final da década de 70 que, percorrendo o Mercado da “breganha” na cidade de Taubaté – evento popular aos domingos onde se vende toda espécie de quinquilharia, de objeto antigo a dentadura usada -, encontrei uma escultura em terracota que me impressionou pela força expressiva da figura de um músico das calçadas. Carrega sua fisionomia toda a dor do mundo, e o artista com traços fortes soube traduzir o peso da trajetória. A viola caipira dimensiona a raiz do tocador, sua desventura, seu destino. Capta também a dignidade não perdida, apesar da pena a que foi submetido. Tenho sobre meu piano de estudo a expressiva peça em barro queimado. Meu respeito absoluto a esses músicos do infortúnio leva-me a jamais passar indiferente por colegas nessa situação. Suas presenças pelas calçadas desse mundo estão perenemente a revelar o drama soturno. Abandonados, permanecem como a sonoridade tristonha a procura da escuta solidária e da migalha de afeto.

On street musicians of varying talent levels playing their instruments in public places for pocket change and the indifference of passers-by.