Sonho da Infância Realizado na Alegria

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Chegada da São Silvestre 2008. Clique para ampliar.

Não sei se correr acrescenta anos à sua vida,
mas com certeza acrescenta vida aos anos que estão por vir.

Jim Fixx

Será preciso muita disciplina,
força de vontade e controle sobre as próprias emoções
para calçar o tênis e arranjar um tempo.

Nuno Cobra

Desde os tenros anos temos lá nossos sonhos. Eles flutuam através do tempo, vêm à mente em determinadas associações de idéias, permanecem por instantes, prazerosamente, e retornam ao nosso de profundis. Por vezes, essas salvaguardas da vida não se dispersam para nossas regiões abissais. Afloram, como querendo tornar-se realidades. A depender das circunstâncias, sonho junta-se à vontade, e o amálgama se faz. Nós sempre somos o resultado dos acúmulos que virão nortear nossos anseios.
A corrida de São Silvestre era para mim um desses sonhos impossíveis, mas sempre a sobrevoar a minha imaginação. Desde a passagem da infância para a adolescência, ouvia pelo rádio o locutor narrar a corrida, empolgado, seguindo retas, curvas, descidas e subidas, a acompanhar as passadas firmes dos corredores que iam à frente – ignorava-se totalmente aqueles que estavam atrás – e nós torcíamos, vibrando com o desempenho dos heróis a enfrentarem os temíveis aclives. Só após a chegada, que coincidia com aquela do alvorecer do novo ano, meu pai abria o champagne, após lauta ceia preparada por minha mãe de absolutos dotes culinários. Comemorávamos o advento de mais um período, e comentávamos a corrida finda naqueles instantes. De todos os grandes corredores daquele passado sempre vivido na felicidade familiar – Vijo Heino (1949); Franjo Mihalic (52-54); Emil Zatopek, a Locomotiva Humana (53) -, verdadeiras lendas do asfalto, um permaneceu indelével, registrado na lembrança de um miúdo. Tinha eu 10 anos quando o chileno Raul Inostroza ganhou a São Silvestre. Ao deitar após os festejos, fiquei a pensar até que o sono chegasse como seria fantástico se pudesse, ao crescer, participar da mágica competição. Estava a ler nesse período Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, coleção que guardo encadernada com o maior carinho. Seria evidente supor que a influência da obra mostrava-se decisiva. Pela primeira vez os heróis da mitologia grega adquiriam vida real e desfilavam perante a criança plena de curiosidade. A associação mostrava-se conseqüência natural. Feitos grandiosos. Nos anos que se seguiram, voltava-me a idéia da participação na São Silvestre. Após o meu estágio durante anos na França para estudos, não mais pensei no assunto. Mas o miúdo que eu fui lá estava, bem no meu inconsciente, a aguardar o momento preciso, que se daria sessenta anos após.
Sob outra égide, a São Silvestre, quando à noite, era cercada de magia, e o seu término, o início da festa da passagem do ano. Estranhos interesses televisivos transferiram-na para a tarde, e o fascínio se perdeu. Tudo ficou visível, o calor de tarde de início de verão tirou parte do público assíduo, mas ganhou assustadora quantidade de participantes. Acrescente-se o fato de a cidade ter crescido muito e de maneira irracional. Hoje são cerca de 20.000 inscritos, numa bela festa, acrescente-se. Logicamente, a visibilidade a tornar-se mais evidente, provoca por parte das câmeras, flashes dos retardatários.
As décadas foram fluindo. Sonhava correr a São Silvestre uma vez apenas, tão cara a nós, paulistanos. Amigos preparados participavam, mas o meu sedentarismo não resistiria sequer à inscrição. A única prática esportiva restringia-se aos 20 minutos de ginástica sueca matinal que aprendi com meu pai nos anos 60 e que faço até hoje. Precisei ter um linfoma, passar por quimioterapias e, munido da atração pelo desafio – meu saudoso pai ! – criei coragem para andar como atividade esportiva e, logo depois, correr. Primeiramente 500 metros, lá pelo mês de Março de 2006. Pouco a pouco, o índice subiu, a vontade igualmente, e não mais parei. Duas metas tornaram-se claras. A ginástica e o “trotar” abriam-me perspectivas para poder superar o mal. Uma segunda era poder, através da corrida, levar esperanças àqueles que sofrem da doença. É comovente verificar alguém, portador de um câncer, dizer que vai lutar também.
A participação em quatro corridas oficiais já me apontava neste ano para a alegria de estar presente e sentir o pulsar saudável de milhares de outros corredores. Sempre em meu ritmo moderado. Inscrevi-me na São Silvestre de 2008. Para tanto, três vezes por semana corro de 8 a 14km, a fim de testar resistência. A conselho de meus queridos amigos e médicos da Clioh – Oncologia e Hematologia, que me acompanham periodicamente através de consultas e minuciosas aferições, realizei os exames pertinentes, pois não se brinca aos 70 anos, apesar de o lúdico existente em mim vibrar, encantado com a corrida. Exames dentro do contexto. Continuei os treinos solitários pelas ruas de tantos bairros e o espírito da São Silvestre inundou-me.

Cinco medalhas de participação. Ao centro, a da 84ª São Silvestre, 2008. Clique para ampliar.

Já com a inscrição sacramentada, e o número oficial recebido, 13.126, pensei na camiseta para a corrida. Teria de ser temática. Escolhi: Câncer x Vida e, nas costas, Superação. Se chegasse ao final dos 15km no meu ritmo septuagenário, causando esperança a uma só pessoa portadora do mal, a corrida já teria sido válida.
E eis que chega o grande dia! Dizer que não estava ansioso seria fugir à verdade. Milhares de corredores na hora da largada, que se deu em frente ao MASP. O mar de gente estendia-se até o prédio da Gazeta, a algumas centenas de metros atrás. E lá estava eu. Nos primeiros dez minutos, só deu para andar lentamente. Foi a partir da Rua Augusta que os passos da corrida fizeram-se sentir. Eu estava eufórico, pois via realizar-se um sonho acalentado por sessenta anos, desde o distante 31 de Dezembro de 1948. Corri por ele, por todos os portadores de câncer e por minha mulher, Regina, que aniversariava nesse dia.
É indescritível a São Silvestre. Durante todo o percurso, as laterais de ruas e avenidas ficam repletas. O público vibra, brinca e estimula. Minha camiseta temática foi alvo de tantas frases de incentivo, de apoio. Na Av. Rudge, uma senhora com curativos no rosto disse-me: “Eu também vou superar”. Fiz o sinal de positivo, certo de que o objetivo de minha participação estava a ser concretizado. Corredores sérios, outros nem tanto, fantasiados e bem engraçados, dão ao evento uma beleza ímpar. Um corredor, como exemplo, percorreu toda a prova erecto e com um vaso marajoara sobre a cabeça. Bem mais jovem, por vezes parava para acertar a posição. Mas chegou bem. Após o minhocão, moradores com esguichos refrescavam os corredores. Passei perto de um deles, levantei os braços e fui irrigado. Que maravilha!
Como programado, mantive meu ritmo do começo ao fim da prova, sempre correndo, apenas diminuindo a “velocidade”, uma espécie de trotar, na temível subida final de aproximadamente 2.500m da Av. Brigadeiro Luís Antônio. O prazer indizível de contornar a Av. Paulista, 400m antes da chegada, foi único. Ainda tive forças para um pequeno sprint nos últimos 50 metros. Meu irmão, o extraordinário pianista João Carlos, hoje emblemático Maestro do Povo, como é saudado pelas multidões de norte a sul neste país, lá estava para o abraço das Superações. Choramos juntos as lágrimas de passados que nos levaram a nunca desistir.

O pranto jorrou-me em ondas...Resistir quem há-de? (Luiz Guimarães Júnior). Clique para ampliar.

Como prometera à criança de 1948, cheguei ao fim, e a São Silvestre de meu lúdico infantil lá estava sendo oferecida àquele imaginário secreto. Infância que nunca deve apagar-se dentro de nós. Apelos no recôndito que pouco a pouco são atendidos. Sei que aquele menino entendeu a longa espera e a minha colocação na classificação geral: 13.994 (Tempo 02:21:33, Tempo líquido 02:10:34). Para ele, a linha de chegada era a fronteira do sonho.

As tartarugas sempre chegam ao destino. Clique para ampliar.

Tartarugas sempre chegam aos seus destinos. É atávico. Minhas netas presentearam-me com um belo Chelonio de madeira e no Natal já preenchiam as placas do escudo desse réptil – lembra um jabuti – com mensagens visando à corrida. Regina, filhas e amigos têm ajudado a completar os estímulos. Certamente, é o troféu mais expressivo que poderia ganhar. Como analogia, estendo as mensagens a todos os meus fiéis leitores, com os votos de um ano onde imperem paz, saúde, solidariedade com o próximo, felicidade e realizações.
Bem Haja!!!

A Fraternidade não tem côr. Clique para ampliar.

Saint Silvester Road Race
Since I was a boy I dreamed of running the Saint Silvester race. It is the oldest and most prestigious road race in Brazil, taking place every New Year’s Eve since 1925 in the streets of my city, São Paulo. I remember watching it on the TV with my parent when I was a child. It was then an evening race, held under the street lights and spotlights of our giant city. Only after it was over we celebrated the arrival of the New Year with a champagne toast. Today it happens late in the afternoon, in the intense heat of the Brazilian summer. Foremost long distance runners from all over the world come to the event. An estimated 20.000 runners – amateur and professional – took part this year and I was one of them. It was a feast for the eyes,, with a carnival-like atmosphere, some runners wearing crazy costumes, crowds of people lined to cheer the participants. I was wearing a T-shirt with the words “Cancer X Life” and “Victory”. At seventy and under a treatment for lymphoma, running its 15 km through the hilly streets of São Paulo was a challenge, an achievement I never thought possible, a test of my limits that made me burst into tears when I crossed the finish line. A personal victory, which I expect will be inspiring for other cancer patients, encouraging them to find strength to battle their disease.

Diferença que Faz Toda Diferença

Magma descendo as encostas.

Tempo bem empregado
curto parece.

Adágio açoriano

Nos dias que precedem o fim de mais um ano, sempre tenho a impressão de ver e sentir as pessoas mais apressadas, possivelmente em busca de soluções que não podem ultrapassar o dia 31 de Dezembro, hipotética data limite. Seria provável supor que, mais pela vida estressada do que pela euforia salutar, uma agitação contamina os estertores do ano. Caminhava em direção ao nosso canto de conversas (Vide Nélson, o Sábio, Nosso Cantinho Possível, 25/04/07), quando aluno da Universidade subia a minha rua. Após cumprimentos amistosos, perguntou-me o porquê de não mais ir ao Departamento. Expliquei-lhe a respeito da aposentadoria e de outros direcionamentos na minha vida musical, assim como novas janelas que se abrem alegremente nesta terceira idade. Indagou-me ainda se estava bem, e falei-lhe de minhas corridas. Contou-me que continuava os estudos regimentais sem problemas maiores e que estava esperançoso quanto ao futuro. Almejei-lhe o melhor.
Convidei-o a seguir, para alongarmos nossa conversa em casa. É sempre bom sentir o pulsar mental dos jovens. Aspirações, projetos e sonhos fazem parte da vida do estudante consciencioso. Através dele captamos a realidade presente e é impossível não lembrar de nossa juventude. Não tendo sido meu aluno individual, pouco contacto tive com o discípulo; portanto, nosso diálogo foi muito profícuo, pois inédito e pleno de interessantes reflexões. Em determinado momento falamos do tempo do compositor e aquele do intérprete. Como estamos a findar o ano, o tempo torna-se quase pleonasmo entre os assuntos. Contudo, o da criação e aquele da interpretação são configurações dentro do palpitar maior do tempo do calendário e merecem um pormenorizar. Mensurações quanto aos resultados nas duas categorias.
Tenho, há mais de vinte anos, externado a minha posição relacionada à transitoriedade do intérprete, sendo ele um corredor de prova de revezamento, e o compositor, um maratonista de percurso sem fim. Paradoxalmente, o compositor tem prazo fixo para a conclusão de uma obra, mesmo se considerada for aquela da contemporaneidade, o work in progres. Maior ou menor, esse tempo é real. Se determinadas composições podem ter representado muitos anos para a criação, outras como o Oratório Messias de G.F. Haëndel (1685-1759) ou os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky (1839-1881) foram escritas em semanas. Obra finda, ela fica fixada no papel pautado, e estará à disposição do intérprete. Se esse tempo finitus do compositor teve prazo limitado e certo, o mesmo não se dá com o tempo da edificação de uma composição pelo intérprete. Este, para que a obra se mantenha viva em sua memória e em sua atividade de instrumentista, tem de visitá-la com freqüência, o que tornará seu contacto com a criação do compositor muitíssimo mais longo do que aquele do próprio autor. Considerando-se a extrema facilidade de compor de Mozart (1756-1791) ou Schubert (1797-1828), que produziram muito e viveram pouco, certamente o contacto deles com o que era escrito durava pouco. Quando ouvi em DVD o grande pianista Mieczyslaw Horzowsky (1892-1993) aos noventa e tais anos executando no Carnegie Hall de Nova York a Sonata em ré maior (K.576) de Mozart, fui levado à reflexão dos tempos do compositor e do intérprete. Qual não foi a dedicação do pianista, durante décadas, para que essa Sonata se mantivesse plena em seus dedos? Quantas horas não desfilaram através dos decênios, a fim de que a criação de Mozart tivesse a interpretação ideal? No âmbito do autor, qual teria sido a duração exata da composição dessa Sonata? Tempo e tempo a refletirem a insondável compreensão de concepções frente à obra. Quantos milhares de pianistas já se debruçaram incontáveis horas durante suas existências para a manutenção em seu repertório desta bela Sonata e de quantidade imensa de tantas outras composições !
Pertinentemente, o aluno perguntou-me sobre o sentido de propriedade de obra concluída. Esse tema tem sido exaustivamente trabalhado em artigos, livros, tratados e, mais recentemente, em teses acadêmicas. Contudo, depois da composição finda e divulgada, passa ela a ser – obedecendo-se legislação que “protege” durante décadas sua “propriedade” – de domínio público. Ao intérprete cabe perpetuá-la, estudando-a convenientemente para apresentação, gravação ou puro entretenimento pessoal. Integrando doravante seu repertório, a obra aprendida será reestudada sempre que tiver de ser executada. Contando-se as vezes dessa imprescindível retomada, no caso de reapresentações ou gravação, tem-se a desmesurada proporção a separar o tempo da feitura e o da reprodução musical através da interpretação.
Veio por parte do aluno uma outra pergunta a levar ao pensar: “Professor, esse tempo real e presente na vida do intérprete tem sempre as mesmas características?” Ledo engano, comentei. Através da trajetória do instrumentista, o tempo da maturação, da transformação para o aperfeiçoamento, ou até para o desleixo, que também pode ocorrer, determina uma outra concepção de mensurabilidade. Estamos em permanente mutação ocasionada por fatores os mais variados. Seria lógico entender que a obra que faz parte de nosso repertório também sofra esses impactos. “Quais impactos” indagou-me? Em princípio não há mutações abruptas, assim como dificilmente o que nós somos no nosso de profundis sofre fortes alterações. Contudo, elas existem. No campo da interpretação, podemos modificar uma forma de respirar o discurso musical, no caso específico do pianista, mudanças de fraseado, de dedilhado que descobrimos mais cômodo após tantos anos e motivado muitas vezes pela própria transformação física de dedos e mãos. No campo pessoal e no musical, são os acúmulos de experiências vividas, verdadeiras salvaguardas para um músico. Tudo isso compreendendo outro debruçamento naquele período destinado à preparação de uma composição há tanto tempo a fazer parte de nosso repertório. Estudo onipotente e onipresente.
“Mas, professor, as alterações quanto à interpretação não poderiam também distanciar profundamente o executar de um pianista nas fases extremas de sua carreira?”, questionou-me o aluno. À pergunta arguta, respondi-lhe que não necessáriamente. Há em cada um de nós, intérpretes, idiomáticos de toda a sorte. Como exemplo, a minha gravação de Doumka de Tchaikowsky realizada em 1962 ao vivo no Conservatório de Moscou, tem muitíssimos elementos que fazem parte da minha interpretação hoje. Não a renego de forma alguma. Reconheço sim, que meu DNA lá está. Preferências quanto ao fraseado, às flutuações dinâmicas, ao gosto pelos baixos e pela respiração, à anima, persistem. Impressões digitais indeléveis. Cito esta peça, pois após quarenta e tais anos vou apresentá-la quando de minha tournée pela Bélgica em Fevereiro próximo. Aliás, tive o prazer de tocá-la para o aluno. Uma coisa certamente não mudou, ou seja, o meu encantamento pela obra.

Gêiser projetando-se nas alturas.

E voltamos à idéia inicial, que mostra a criação, quando finda pelo compositor, metaforicamente uma espécie de erupção que cessa. “Erupção?”, interrompeu-me o jovem. Sim, respondi-lhe. O que mais não é o fluxo criativo do que o magma, essa substância ígnea que está nas profundezas da crosta terrestre e que é projetada para o exterior através de um vulcão, serpenteando incandescente pelas encostas da montanha em direção ao mar ou à planície? Ao emergir dos abissais subterrâneos para o exterior, fixando-se a seguir no solo ou mergulhando nas águas, transformar-se-á em rocha magmática e a perenidade se concretiza. Temos a metáfora em sua plenitude, pois a idéia que flui do cérebro de um compositor pode ser comparada a essa pasta que sai do interior da Terra e que se torna material sólido doravante. Nós, intérpretes, e aí reside uma das magias de nossa atividade, estaremos sempre a lidar com a criação terminada para o autor, mas em permanente ebulição em nossa mente. Diria, uma outra categoria de erupção. Se a composição seria esse magma consistente e firme, não seria a interpretação, em outra comparação voltada à erupção, um gêiser, esse esplendoroso jato fervente que em fluxo constante ou periódico sai do sub-solo e se projeta lindamente nas alturas, a ocasionar um alumbramento para nossa visão? Sempre em transformação. A missão do intérprete tem essa “aura” extraordinária, sendo a certeza do revezamento um fato inequívoco, pois um instrumentista será fatalmente sucedido por outro, que preservará a composição petrificada mas viva. Processo contínuo.
Conversamos outros assuntos, e despedimo-nos cordialmente. Como disse a ele que o teor de nossa conversa, que fluiu mercê do encaminhamento dos temas, iria certamente para um post a ser inserido no blog, o jovem realmente curioso e inteligente apenas pediu-me, ao sair, que não colocasse o seu nome, pois não era meu aluno. Não senti qualquer aspecto de descortesia de sua parte, simplesmente entendi. Respeito sua vontade.

Gilberto Mendes e J.E.M. Tempo do compositor e tempo do intérprete. Foto Jorge Mateus, Santos, 18/12/08. Clique para ampliar.

Exemplo claro vivi dias após. Ao visitar meu dileto amigo Gilberto Mendes, nosso mais importante compositor erudito vivo, aos 18 de Dezembro, em Santos, ao piano discutimos sua última criação, Largo do Chiado, que deverei apresentar em primeira audição absoluta no mês de Maio em Portugal. Naqueles instantes, outro amigo, Jorge Mateus, fotografava a junção dos tempos: o do compositor que findara naquele dia a obra e o do intérprete que doravante teria outros tempos para manter a peça em seu repertório.
Fim de mais um ano. Foi bom refletir sobre tempos outros que não aquele do inexorável calendário. Nem por isso deixo de nele pensar, aproveitando essa aproximação de mais um ano, para enviar ao meu fiel leitor os votos sinceros de paz e saúde.

Some considerations on the time needed by a composer to create a complete piece of music, by an interpreter to keep the composer’s work alive and also on time as marked on the calendar, measuring the passage of events and announcing the arrival of a new year.

Clique para ouvir Doumka, de P.I. Tchaikowsky, com J.E.M. ao piano, gravação ao vivo no Conservatório de Moscou durante o 2o Concurso Internacional de Piano Tchaikowsky – Abril de 1962.

“O Jardim das Fadas”

São José tenta compreender. Catedral de Autun, França, Séc. XII. Clique para ampliar.

“Cristo nasceu para nós, vinde adorá-lo!
– Aproximai-vos fiéis, correi triunfantes a Belém
para adorar o Rei dos Anjos que acaba de nascer!
–O esplendor eterno habitou a carne.
Vimos o Deus Menino envolto em panos.”

A aproximação do Natal sempre nos leva a reflexões. Quão distantes estamos da comemoração interiorizada sentida pela grande maioria da cristandade através dos milênios. A mercantilização das últimas décadas, em crescente geométrico, anestesia desideratos voltados ao nascimento de Jesus. Ele é comemorado na essência por tantos cristãos espalhados pelo mundo, mas observado por outros mais como uma data do calendário em que a corrida às compras é prioritária. Ouço o rádio e, como um nefelibata, aguardo o impossível, pois as estações de maior audiência entrevistam comerciantes e compradores. Rarissimamente a imprensa focaliza a causa da comemoração do Natal, sendo mais importante para ela o fluxo da 25 de Março e seu mar de consumidores do que a essência essencial da Natividade, os instantes místicos em que uma manjedoura abrigou o menino Jesus.
Estou a me lembrar de duas situações separadas por tantos séculos de diferença. Não continuaria, hoje, São José atônito com a triste realidade? Escultores do século XII realizaram a obra-prima que é a Catedral de São Lázaro em Autun, na Borgonha Romana, em França, e um sobressaiu-se através da maestria e da identificação: Gislebertus, que assinaria o nome e mais Hoc Fecit no tímpano do Cristo Ressuscitado, sendo também autor de diversos capitéis. Um destes chamou-me a atenção em 1959, quando visitei o templo extraordinário durante um longo e inesquecível dia de visitação: St. Joseph médite et cherche à comprendre. A mão direita do Santo a sustentar a cabeça. Que intuição mística teve o escultor que entendeu a dimensão da Natividade! O mistério a levar São José a refletir. O que estaria a pensar? Extraordinária figura de José, o carpinteiro esposo de Maria, que, segundo o Evangelho de São Mateus, soube compreender o apelo do Anjo do Senhor. Em sonho, o Arcanjo revelou-lhe que ele nada teria a temer, pois o menino que estava por nascer fora concebido do Espírito Santo, atribuindo ao bom homem a tarefa de dar o nome de Jesus à criança que viria ao mundo.
Em 1973, passando por Cambuí, em Minas Gerais, parei para tomar um café. Qual não foi o meu espanto quando um escultor popular, que vendia suas criativas peças em barro cozido, apresentou-me um presépio despojado, entre outras mais esculturas espalhadas no meio da calçada. A Natividade lá estava representada em sua síntese: José, Maria, o Menino Jesus e a manjedoura. Antes de adquiri-lo, indaguei-lhe o porquê de São José estar com a mão fechada sob o queixo. Respondeu-me, em sua ingenuidade, que certamente o Santo estaria a pensar: “O mundo nunca mais será o mesmo.” Esse presépio sempre me despertou perplexidade. Tantos séculos a separarem Gislebertus de nosso escultor popular que deixou apenas suas iniciais, ZJ, e as do Estado, MG! Tanta identidade que o tempo apenas estaria a dimensionar! Que fluxo mágico a ligar o pensamento de dois artistas!

Presépio popular, barro cozido, autor ZJ, Minas Gerais, 1973. Clique para ampliar.

No Natal de 2007 inseri um bonito e simples conto de D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu (Vide Velho Natal – Um Conto Singelo, 22/12). Ao ler o texto sobre Dito Pituba (Vide Pesquisa de Campo – Entendimento Através das Entranhas, 27/09/08), a minha dileta amiga, professora e competente gregorianista portuguesa Idalete Giga, escreveu-me que estava a pensar em um conto que seria dedicado às minhas netas. Ao lê-lo, entendi associações generosas de uma alma sensível. O texto atravessou o oceano via internet, e é com o maior gosto que eu o publico em meu blog, não sem antes desejar um Natal vivido na intensidade a todos os leitores que me prestigiam semanalmente. Que os miúdos tenham acesso à delicadeza desse conto escrito para eles… e para nós também, cristãos ou não.

“O Jardim da Fadas”

“Era uma vez um menino chamado Edu, que vivia numa linda cidade com seus pais e irmãos. Edu gostava muito de sua cidade, onde havia parques cheios de árvores, lagos com cisnes e nenúfares, flores de todas as cores, relvinha verde, baloiços, cavalinhos de montar e escorregas. Edu brincava todos os dias no parque com seus amiguinhos e amiguinhas. Mas o que ele mais gostava era de visitar seu avô Pituba, que morava muito, muito longe, no grande Vale de Abipará, pertinho de um lugar encantado que ele chamava de Jardim das Fadas. Quando chegava a Primavera, o Jardim das Fadas ficava todo iluminado. Em todo o Jardim havia flores mágicas, que brilhavam durante o dia e brilhavam ainda mais durante a noite. Havia também libelinhas azuis, renas, corças, cavalos de crina branca, girafas de pescoço comprido e muitos outros animais, tão pequeninos que só as Fadas os podiam ver. O avô Pituba conhecia todos os segredos do vale de Abipará e toda a magia do Jardim das Fadas. Pituba era um sábio. Inventava e construía brinquedos mágicos. Quando Edu ia visitar seu avô, pedia-lhe sempre um brinquedo diferente. E também o acompanhava nos passeios ao Jardim das Fadas. Era só neste Jardim que os brinquedos tinham magia. Por isso, era nele que Edu gostava de brincar e experimentar todos os brinquedos inventados pelo avô. Tinha um cavalinho de madeira que podia voar, uma linda bailarina que rodopiava no ar, um palhacito que tocava saxofone, e uma bandinha de música com a Branca de Neve e os Sete Anões. Cada anãozinho tocava um instrumento muito engraçado. Bastava que Edu segredasse baixinho uma palavra mágica ao ouvido da Branca de Neve, para que os anõezinhos começassem todos a tocar seus instrumentos.
Um belo dia, Pituba construiu um brinquedo muito especial para oferecer a Edu no dia de seu aniversário. Inventou um pianinho que tocava sozinho. Mas para que pudesse tocar, Edu tinha de cantar uma canção. Quando Edu cantava , o pianinho começava a tocar sozinho a mesma canção. Admirado com esta maravilha, Edu perguntou ao avô: – Vôvô, porque é que o pianinho sabe a minha canção e está tocando sozinho?
O avô Pituba, pegando na mão de Edu, respondeu-lhe: – Meu querido netinho, se você fechar os olhos e disser três vezes: ‘quero ver quem está tocando no meu pianinho’, vai ter uma bela surpresa! Mas tome atenção! Para que o pianinho não perca a magia tem de lhe cantar nova canção.
E assim foi. Edu ficou tão feliz que logo inventou esta canção:

Corre, corre, cavalinho
Voa, voa, sem parar
Leva-me ao Jardim das Fadas
Pois é lá que quero brincar !

O avô gostou muito da canção. Logo que chegaram ao Jardim das Fadas, Edu fez tudo direitinho como o avô lhe dissera. Então, fechou os olhos e viu seu pianinho subindo, subindo, subindo devagarinho até ficar suspenso no ar. De repente, viu aparecer uma linda Fada, que começou a tocar a canção do ‘Corre, corre cavalinho’ com a sua varinha mágica. Edu ficou tão contente que começou a falar com a Fada: – Olá, querida Fada! Como é seu nome?
A Fada parou de tocar, olhou carinhosamente para Edu, ficou um bocadinho em silêncio e respondeu: – Chamo-me Princesa da Luz.
- Ah! Já sei! É você que acende as estrelas do céu, à noitinha? – Perguntou Edu.
A Fada sorriu, deu-lhe um beijinho, escreveu no ar a palavra SIM com a sua varinha mágica e desapareceu.
Edu abriu os olhos e foi logo contar ao avô o que tinha acontecido.
-Vôvô, já sei quem toca no meu pianinho! É a Fada Princesa da Luz que também acende as estrelas do céu, à noitinha!
Pituba pegou Edu no seu colo e segredou-lhe baixinho: – Que bom ter falado com a Fada Princesa da Luz! Agora, tenho outra surpresa para você. Mas desta vez só pode abrir o presente quando chegar a casa, combinado? -Sim, vôvô!
Ao chegar a casa dos pais, Edu estava muito curioso e correu logo para seu quarto . Ao retirar o papel que embrulhava o presente, viu uma caixa com uma linda rena desenhada na tampa e pensou: – Ah, deve ser uma rena mágica que o vôvô construiu para eu brincar na noite de Natal. Então abriu a caixa e dentro dela estavam outras caixas mais pequeninas. Cada uma tinha um pedacinho de chifre da rena que mais parecia de um boneco articulado. Edu foi juntando e montando pacientemente, uma a uma, as várias peçinhas. Era um jogo muito engraçado!
Então, qual não foi o seu espanto quando viu que não era um boneco , mas Santo António com o Menino Jesus ao colo! Porém, faltava uma peça. Faltava a cabecinha do Santo. Edu pensou que a tinha perdido e começou a chorar.
Fechou os olhos e viu de novo a Fada Princesa da Luz que lhe disse: – Não chores querido Edu! Vôvô se esqueceu de colocar a caixinha que falta e me pediu para a dar a você.
E levantando sua capa azul transparente retirou a caixinha que estava junto de seu coração e a deu a Edu. Quando Edu a abriu com muito cuidado, lá estava a cabecinha de Santo António. Assim, pôde completar o lindo presente do avô Pituba.

Santo Antônio. Imagem atribuída a Dito Pituba (1848-1923). Chifre, 8cm. Clique para ampliar.

Passaram muitos, muitos anos. Hoje, Edu é um famoso pianista, conhecido em todo o mundo. Santo António com o Menino ao colo ficou, para sempre, o Santo protector de sua família. Quando olha para ele recorda com muita saudade o avô Pituba, o Vale de Abipará, os longos passeios ao Jardim das Fadas, todos os brinquedos mágicos de sua Infância e nunca, nunca mais esqueceu a linda Fada Princesa da Luz.” Paço d´Arcos, 30/Out./2008.

O leitor terá a plena compreensão da dimensão de Idalete Giga, autora do conto tão sutil, ao ouvi-la dirigir o Coro da Capela Gregoriana Laus Deo, em um belíssimo canto gregoriano a louvar a Natividade: Christus natus est nobis, venite adoremus.– Adeste fideles, laeti triumphantes: venite, venite in Bethlehem. Natum videte Regem Angelorum.– Aeterni Parentis splendorem aeternum: velatum sub carne videbimus: Deum infantem pannis involutum.

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

It’s Christmas season once more and random thoughts wander through my mind: commercial interests transforming the date into a secular holiday with its celebration of materialistic consumerism; two intriguing images of St. Joseph – distant 800 years in time – depicting the saint engrossed in thoughts, with a hand under his chin; Christmas stories. I want to include as the last post of 2008 a story written for my grandchildren by Idalete Giga, a very dear friend, teacher and Gregorianist living in Portugal. Though not exactly a Christmas story, it is suitable for the season. It’s entitled “O Jardim das Fadas” (The Fairy Garden). And to remind us all of the Nativity, readers of this blog can listen to a chant sang by the Laus Deo Gregorian Chapel Choir conducted by Idalete Giga.