A Permanência Através de Horizontes Desbravados

Felicja Blumental e J.E.M. 1955. Foto José da Silva Martins. Clique para ampliar.

E mar vai em vôo aberto
já pássaro aventureiro
para as descobertas.

Maria Isabel Oswald Monteiro

Os intérpretes que perduraram através dos tempos têm características bem próximas quanto à freqüência repertorial. Compositores foram privilegiados, a partir de tendências de cada instrumentista. Afinidades, escolas onde estudaram, países de origem, aspectos sociais e culturais, raça, todos são fatores que tendem a determinar orientações que se consolidam através da carreira do intérprete.
Se considerarmos o século XX, talvez o grande século do piano, verificaremos que a grande maioria dos pianistas que permaneceram na história interpretaram basicamente o chamado grande repertório tradicional. Agentes ou empresários, público, comparações influenciaram essa constância. Exceções existiram, a tornar mais significativa a continuidade post mortem de pianistas que entenderam que caminhos outros estavam a apontar horizontes absolutamente inéditos. A divulgação intensa dessa categoria de pianista poderia ocorrer, valorizando sensivelmente aqueles poucos que persistiram pelas sendas do repertório qualitativo esquecido e que hoje são lembrados através da competência exercida e da necessidade de se conhecer a produção extraordinária do passado, que ficara submersa por propósitos tantas vezes estranhos.
Em posts anteriores focalizei dois pianistas exemplares que primaram pela ação repertorial inusitada, apesar de terem perpassado parte considerável do repertório tradicional (vide Marcelle Meyer – A Redescoberta Merecida, 06/03/07 e Jean Doyen – A Interpretação Inefável, 31/08/07). A curiosidade, nos casos citados, fruto de ação voluntária, sem a mínima interferência de agentes voltados ao lucro, resultou, após o desaparecimento dos ilustres intérpretes, no redescobrimento, que hoje nos espanta, de acervo valiosíssimo da criação para piano. Revelou-nos ainda a inteligência desses instrumentistas na escolha seletiva, pois nesse repertório pouco freqüentado há muita obra sem interesse.
O centenário de nascimento de Felicja Blumental, nascida em Varsóvia aos 28 de Dezembro, deve ser comemorado. Trata-se de uma das grandes damas do piano do século XX. Estudou no Conservatório da cidade com professores importantes como Zhigniev Drzewiecki, Karol Szymanowski e Josef Turczynski. A adversidade oriunda da 2ª Grande Guerra acabou trazendo-a ao Brasil, onde permaneceu alguns anos. Tornou-se cidadã brasileira, realizou extensas tournées pela América Latina, regressando posteriormente à Europa, a continuar sua esplêndida carreira. Faleceu no dia 28 de Dezembro de 1991 em Tel Aviv. No ano de 1999, seu nome seria definitivamente incorporado ao Festival de Música de Tel Aviv, promovido pelo Museu de Arte da cidade israelense.
Felicja Blumental é uma dessas intérpretes maiúsculas, que soube entender todos os períodos. Se foi pianista a apresentar largamente o repertório tradicional, entendeu outra mais a sua missão e redescobriu autores, estimulou compositores no sentido de criarem obras para que apresentasse em público, privou da amizade de músicos e pintores ilustres, o que revela a essência de sua rica personalidade cultural. Suas gravações dos Cinco Concertos para piano e orquestra de Beethoven e das Mazurkas de Chopin atestariam sua competência. Gravou sessenta concertos para piano e orquestra, sendo que seus registros fonográficos daqueles compostos por Czerny, Field, Ries, Paisiello, Stamitz, Hummel e Hekel Tavares testemunham a freqüência ao repertório inusitado. Villa-Lobos dedicou-lhe seu 5º Concerto para piano e orquestra, Krzysztof Pendereki a Partita para cravo e orquestra, Witold Lutoslawski orquestraria suas Variações sobre um tema de Paganini para a pianista, que as apresentou em primeira audição. Destaquem-se igualmente as interpretações de obras para piano solo de autores pouco visitados: Clementi, Kuhlau, Viotti, Hoffmeister, Rimsky Korsakof (Quintetos com piano) e tantos outros.
Nos anos 50, a ilustre pianista freqüentou várias vezes a casa de meus pais. Sempre acompanhada de seu marido, Markus Mizne, Felicja Blumental encantava-nos, após o jantar, com a apresentação de algumas peças de seu repertório. Fascinava-me o seu tocar elegante, jamais buscando efeitos virtuosísticos vazios. João Carlos e eu tocávamos obras que estávamos a estudar e, após, Blumental tecia comentários de rara competência. Bem mais tarde, entendi sua mensagem de 1º de Agosto de 1954 em português fluente, deixada naquilo que denominávamos “livro de ouro”, depositário de outros depoimentos mais de notáveis artistas e que me foram tão encorajantes ao longo da trajetória. Meu irmão e eu conservamos os nossos livros. Escrevia ela nas minhas páginas que “ o exibicionismo aniquila a Arte verdadeira”. A sua execução buscava a beleza do som: “Beleza não se aprende, pode-se aperfeiçoá-la”, mais uma das frases de seu escrito. Outras mais, relativas à interpretação do jovem que eu era, preconizavam conceitos que me acompanham até hoje. Quando de meu recital aos 10 de Dezembro de 1954 no Teatro Colombo em São Paulo, lá estava a insigne artista a contemplar o estreante com um desenho realizado durante o evento. Guardo-o com o carinho devido. Meses antes retratara João Carlos quando de sua primeira apresentação no mesmo local. Mais honrado fiquei ao receber Felicja Blumental Portraits, editado pelo The Felicja Blumental International Music Festival at the Tel Aviv Museum of Art em Maio de 1999, com retratos da pianista realizados por artistas como Tsugouharu Foujita, Juan Pons, Kees Van Dongen, Erwin Dom Osem, Rémusat, Mané-Katz, Michonze, entre outros. Por sua vez, traçou ela em desenhos firmes Arthur Rubinstein, J. Heifetz, Oskar Kokoschka, Picasso, Chagall, Pendereki e outros ilustres amigos. Essa faceta de Felicja evidencia a imensa generosidade da artista.

Felicja Blumental, desenho de J.E.M. com esferográfica vermelha.10/12/54. Clique para ampliar.

Certa noite em que veio com Markus Mizne jantar em casa de meus pais, ofereceu-me um LP gravado em Londres para o selo Decca, quando pela primeira vez ouvi obras de Carlos Seixas, o notável compositor barroco conimbricense. Dela receberia igualmente as partituras dos cravistas portugueses. Sua interpretação absoluta ao piano impressionaria o redescobridor de Carlos Seixas e um dos maiores defensores do cravo, Macarius Santiago Kastner, que escreveria em 1953: “Fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos Cravistas Portugueses, que executa essa música com a real compreensão de estilo, com a alma e grande entendimento do som e da proporção”. É surpreendente que o notável Kastner se tenha submetido ao fascínio da interpretação ao piano de um repertório ainda reivindicado na época calorosamente pelos adeptos do cravo. Tão forte foi o impacto que aquele LP me causou que em 2003 gravaria na Bélgica, igualmente ao piano, dois CDs inteiramente dedicados às sonatas de Seixas. À Felicja Blumental prestei publicamente minha homenagem de gratidão quando de meu recital na Biblioteca Joanina em Coimbra, nas comemorações do tri-centenário de nascimento de Seixas em Junho de 2004.

Soirée Musical em São Paulo, 1954. Em pé, da esq. p/ dir.: Magda Tagliaferro, Madalena Lébeis e Felicja Blumental. Foto de meu pai José da Silva Martins. Clique para ampliar.

Louve-se a atitude da Concerto – Guia Mensal de Música Erudita – ao oferecer aos seus assinantes o CD Música Portuguesa com execuções de Felicja Blumental, integrando a série Música de Concerto de Clássicos (www.concerto.com.br). A organização dispões de outros CDs da intérprete. Destaque-se igualmente o empenho de sua filha, a cantora Annette Celine, radicada na Inglaterra, que tem feito revelar aos ouvintes as inexcedíveis interpretações da mãe ilustre (www.branarecords.com).

CD Música Portuguesa, pianista Felicja Blumental. Kees Van Dongen, óleo. Clique para ampliar.

Felicja Blumental continuará a ser lembrada e a servir de exemplo, a demonstrar que através da inteligência e da fina sensibilidade pode o intérprete conhecer caminhos novos, descortinar horizontes insondáveis antes, assim como, na busca do inusitado, tornar-se realmente o artista a desempenhar a missão integral.
Meus agradecimentos à Annette Celine, por ter generosamente autorizado a inserção neste post de faixa do mencionado CD Música Portuguesa, contendo a bela interpretação de Felicja Blumental da Sonata em fá menor de Carlos Seixas.

Clique para ouvir Felicja Blumental ao piano, tocando Carlos Seixas: Sonata em fá menor.
Faixa extraída do CD “Felicja Blumental – Música Portuguesa”, Clássicos Editorial MC009, lançado pela Revista Concerto.

This year we celebrate the birth centennial of Felicja Blumental (1908-1991), one of the most accomplished pianists of the 20th century. Born on 28 December in Warsaw, Poland, she left Europe shortly before the outbreak of World War II to escape the growing anti-semitism and settled in Brazil for some years, becoming a Brazilian citizen. In the early 1950s she returned to Europe, where she continued her brilliant career. I was fortunate to know Felicja personally. In the 1950s she was a frequent guest at my father’s home in São Paulo. My brother João Carlos and I, teenagers at the time, listened in silent awe to her elegant and restrained performances and she was generous to listen to the two piano students, leaving her comments in the visitors’ book (our so called “golden book”). I still keep it with her wise and encouraging words written in fluent Portuguese. What fascinates me more with Felicja Blumental is her ability to choose from various musical periods. While she was greatly admired for her interpretation of the conventional repertoire, she also recorded many seldom played concertos and solo piano pieces of a remarkable diversity of composers, contemporary works – many written specially for her – of notable 20th century musicians, Spanish and Portuguese Baroque composers. A true pathfinder, surveilling and fostering the piano literature from the past and the present. On one occasion in my father’s house she offered me a LP she had recorded in London with sonatas by the Portuguese Baroque composer Carlos Seixas on the piano. It was the first time I heard them. So strong was the impression of her performance on me that in 2003 I would record in Belgium two CDs with Seixas’ Sonatas, also on the piano. Her lifelong commitment to music, intellectual depth and extensive body of works remain an inspiration to many classical music performers around the world, myself included. My thanks to the singer Annettte Celine for the permission to include in this post Carlos Seixas’s Sonata in fa minor played by her mother, Felicja Blumental.

O Olhar Poético e a Inexorabilidade

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Presentiment is that long shadow on the lawn
Indicative that suns go down;
The notice to the startled grass
That darkness is about to pass.

Emily Dickinson

Refletir sobre a morte é preocupação atávica. Civilizações antigas buscavam na hipotética imortalidade da alma compensação para o momento que todos os seres vivos têm de enfrentar. A esperança de uma continuidade em outra dimensão, crível através das religiões e seitas, inexistente para os céticos, é fonte inesgotável de sentimentos antagônicos.
A morte, a derradeira respiração, pode ser interpretada, para aqueles que acreditam em um Poder Maior, de maneiras diversas: alívio, tristeza, conformismo, categoria de felicidade ou de tragédia, a partir inclusive das geografias. As tantas religiões aí estão a perdurar e a proporcionar o alento, a incerteza ou o desespero. Faz parte da condição humana acatar conceitos. Entre os budistas, a morte é uma etapa a abolir o sofrimento, ou a conduzir o ser humano às reencarnações, para o aperfeiçoamento motivado pelo karma. As artes entenderam mais agudamente a inexorabilidade da finitude, e a história denota inúmeras associações de duas ou mais em debruçar reflexivo sobre o tema. À guisa de exemplos, mencionemos o compositor Modeste Mussorgsky (1839-1881) compondo Cantos e Danças da Morte, sobre poemas do Conde Koutouzov, e Catacombae e Con Mortuis in Lingua Mortua de Os Quadros de uma Exposição para piano, obra inspirada nas aquarelas de seu amigo Victor Hartmann. Ainda Jeanne Esmein apreendendo na gravura o sentido do poema de Louis Guillaume (1907-1971) L’arbre des Morts, em que, segundo lenda nórdica, é destinada ao nascido uma árvore que lhe será futuro esquife a levar corpo rio abaixo e “…L’arbre funèbre atteint la pleine mer…”

Gravura de Jeanne Esmein, para o poema de Louis Guillaume: L'arbre des morts.1960. Clique para ampliar.

Sob o pseudônimo de Pere Oliva, Joan Reventós i Carner (1927-2004) escreve poemas. O livro Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos (São Paulo, Paralaxe, 2008, 152 págs.) reúne coletânea do autor sobre a morte, poesias de sua própria criação por ele selecionadas, com a avaliação de três fiéis amigos. A obra catalã teve tradução cuidadosa do eclético Leopold Rodés i Garriga, amigo do poeta. O autor, no Prólogo, já adverte que “a morte é e sempre será um mistério. Por isso é território de poetas”. Acrescentaríamos, de artistas, entre tantos que se debruçam sobre o tema. Poderia ser mais um livro a abordar a finitude, não fosse Joan Reventós i Carner um pesquisador da morte, apresentando-a filtrada e em tantas vertentes, de maneira fluida, levando o leitor a reflexões. A divisão da obra em oito capítulos distintos – De onde venho? Para onde vou?, Medo de morrer, Como se fossem cantos, A morte concreta, Silêncios e solidão, O lugar dos mortos, Melodias da morte, Evocações vitais - demonstra preocupações transcendentes. Reventós i Carner atingiu estágio de sublimação poética, sem quaisquer concessões ao sentimentalismo banal e sem autocomplacência diante do inevitável.
Deixa-se atrair integralmente pela temática, que se torna obsessiva. Teve prévio conhecimento de poemas de outros autores focalizando o fim da existência. No Epílogo, faz sentir que tem consciência da decrepitude, o “ter de enfrentar o próprio envelhecimento. A vida tem uma fase em que o envelhecer fica mais evidente. É o processo mecânico, permanente e constante do organismo. O orgulho físico acaba com a chegada da feiúra no próprio corpo, a perda da memória, a insensibilidade ou a incapacidade.” O poeta já escrevera seus versos, e o texto do epílogo revela a certeza da morte à espreita.
Os Anjos não Sabem Velar os Mortos, verso de um dos poemas, apresenta a vontade de se entender a morte em sua acepção fulcral, flash único, fronteira absoluta a separar vida e finitude. O instante preciso do desenlace esbarra na impossibilidade de conhecê-lo previamente:

Quando chegará,
quando acontecerá,
não sei como será;
nisso não penso
nisso não confio,
nem falo.

Vladimir Jankélévich (1903-1985), em La Mort, considerava salvaguarda o fato de o homem não saber o seu momento final, apenas o condenado à morte. Essa mors certa, hora certa sed ignota, seria a única condição a conduzir à esperança. Hora precisa, desconhecida, podendo o ser humano estar ou não preparado. Imanência pragmatizando o mistério absoluto. Instante do acontecido, experiência única, intransferível, inflexível, passível de uma só passagem, para a interpretação racional da morte só existe cognição prévia, au délà tem-se a escuridão total.
Pere Oliva não vive na solidão. Preocupa-se com o desaparecimento do próximo, e o poema Nostalgias leva às recordações constantes: “A vida de ir de mortes a mortes é uma chuva constante de lembranças”. E esse desfilar natural, que todos presenciam no curso da existência, fá-lo pensar:

A morte dos outros me afeta:
E seu morrer, a sua morte,
São parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

O conhecimento do instante do apagar só é sentido por quem parte, inenarrável, preciso, absoluto e pessoal:

Somente para quem morre, morrer é experiência,
Subtraída do mundo da consciência.
Não a procureis em alguma vivência:
Desumanizar a morte, não traz clemência.

Reventós i Carner está permanentemente a flertar com aquilo que ele também denomina Muda, morte paciente à espera do fatal encontro, impalpável, impossível de sofrer desvio. Daí o temor expresso no poema Quisera superar o medo, nessa insistência hesitante “Quisera não temer nem desejar cousa nenhuma, para o meu último dia”, ou “Quisera focalizar o meu morrer sem opacidade nem amargura”. Dir-se-ia resignado com o destino, mas oferecendo uma “alternativa” à opção da não crença em Deus: “Dar o grande passo do sou ao não ser, para a escura ribanceira do meu esquecimento, diluindo-me no universo, absorvido”.
Nos versos de Ao modo de provérbios, deixa transparecer preocupações que o inquietam “Desde seu nascimento, o homem tem idade sobrando para morrer”. Penitencia-se diante da morte de outrem:

Não me perdôo a mim mesmo
não tê-lo visto outra vez.
É você quem some,
é nossa vez, hoje, de te perder.
És tu, irmão, quem finda.

E não entende o irrevogável:

Compreendo a fuga,
e o não mais estar aí.
Não sei compreender como o que fostes
não mais serás.

A senhora morte, companheira inesperada e não desejada, à espera do ser vivo desde o nascer, aparentemente oculta-se, mas posiciona-se em sua soberana presença ao sentir do moribundo os prováveis sintomas da dor, as posturas corporais as mais variadas, o arfar final e a convicção da inequívoca não adaptação a ela – Muda – por parte do ser que agoniza. A sua figura, que tanto assustou por séculos, foice às mãos, representaria a brutal fatalidade. Longe da irmã morte franciscana, de degrau para reencarnações, dos atos vividos à espera de um juízo final, Reventós i Carner convive com a realidade da despedida. O poema Viver é dizer adeus reflete enraizamentos bem anteriores à concretização do livro e, como se fosse uma recitação de prece:

É a ausência sem retorno,
É dizer adeus a todo instante.
É viver para dizer adeus.
É o câmbio de espaço e postura.
É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.

Mais do que poesias sobre a morte, o livro Os Anjos não Sabem Velar os Mortos traduz nossa absoluta imprecisão frente ao evento, mas num multidirecionamento de situações. Um livro singular que merece ser visitado.

Victor Hartmann, Catacumbae, aquarela. Clique para ampliar.

Clique para ouvir “Catacombae e Cum Mortuis in Lingua Mortua”, extraídos de “Quadros de uma Exposição”, de Modeste Mussorgsky, com J.E.M. ao piano. Gravação realizada em Mullem, na Bélgica em 2001.

The book “Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos” (Angels Don’t Watch over the Dead) is an anthology of Joan Raventós’ poems selected by the Catalan poet himself. It deals with death and its many faces: getting old, the fear of death, the concrete process of dying, death and remembrance, the place of the dead. A poetic reflection on the inevitable and imponderable experience shared by all human beings.

Sinônimo de Equipe Solidária

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Uma vez
é a primeira

Adágio Açoriano

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Emoções inusitadas trazem sempre a certeza da surpresa à espreita. A própria vida está a apresentar, dependendo em grande parte da ação voluntária, atrações difíceis de serem avaliadas racionalmente.
Quando de meu tratamento quimioterápico na Clínica Clioh em 2004, conheci médicos, enfermeiros e funcionários que até hoje permanecem enraizados em meu afeto. Periodicamente sinto o prazer de visitá-los, quando de exames de manutenção.
Em Janeiro de 2006 comecei a andar pelas ruas de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, e a partir de Março, a correr intercalando com andanças. Progressivamente as distâncias aumentaram, e hoje já corro septuagenariamente de 8 a 12 quilômetros três vezes por semana. Para alguém que está a lutar contra um mal tão cruel, mas passível de ser vencido a partir da ação voluntária, cercar-se naturalmente de pessoas radiantes é fundamental. Estímulos são positivos, projetos dimensionam-se sem pressões, a vida pode mudar.
Confesso que jamais cruzei com corredores amadores que não fossem saudáveis. O gesto, o desenvolver do exercício, o contágio das endorfinas a propiciar a vontade de prosseguir, tudo concorre para patamar que me era absolutamente desconhecido. O Piano agradece, os textos descontraem-se e a idade avança sem traumas, a clamar que a terceira idade pode ser entendida como o resultado do que fomos e sentimos. Propicia também sentimentos interiores que levam à paz e à serenidade possíveis neste mundo conturbado.
Cristina Ito trabalha na Clioh. Conheci-a quando, em reuniões de pacientes em tratamento de químio, buscávamos ajudar-nos sob sua coordenação. Passaram-se os anos e Cristina soube que começara a correr. Sempre que a encontro, um ou mais quilômetros são relatados pelo corredor entusiasmado. Soube ela que participei da Maratona de São Paulo em Junho, no percurso de 5km (Vide Sobreviver com Qualidade de Vida, 07/06/08). Qual não foi meu espanto quando ela me convidou para integrar a equipe TA LENTO, que estava a fazer inscrição para a maratona de revezamento Ayrton Senna Racing Day, que seria realizada aos 16 de Novembro no Autódromo de Interlagos. Incontinente disse sim e não escondi a euforia por ter sido convidado por alguém que estimo e pertencente à Clioh. Um aval de que as coisas caminham bem. Seria eu o Matusalém de uma equipe cuja faixa etária varia entre 42 e 47 anos. Estava assim encerrada a primeira etapa, e os sete integrantes não cansaram de enviar-me mensagens alentadoras. Uma frase em particular, escrita por Sérgio Yuji Yokoyama, ficou gravada: “O melhor resultado não é da equipe que consegue o melhor tempo; o melhor resultado é daquela que consegue desfrutar da alegria, do prazer, da satisfação de estar entre amigos e fazer perdurar isso pelo maior tempo possível…”.

Em pé: da esq. p/ dir.: Franco, Cristina, J.E., Sato, Regina, Américo e Ademir; agachado: Sérgio. Clique para ampliar.

Estava pois integrado ao grupo TA LENTO, equipe nipo-brasileira. Dizer da contagiante felicidade do encontro é pouco. Foram momentos mágicos, só possíveis com a prática do esporte sem pressões, longe de quaisquer outros princípios que não o do prazer de correr e o da alegria do congraçamento. Fui o primeiro da equipe a percorrer os 5.275m, devido à idade e ao fato de às oito horas da manhã o asfalto ter ainda uma temperatura satisfatória. Ao chegar, passei a braçadeira à Cristina. A cada integrante que findava o seu percurso, a indisfarçável euforia do grupo.
Percorrer a pista de Interlagos é extraordinária experiência. Primeiramente, sair nesse batalhão constituído por centenas de corredores, tantos deles profissionais. Sentir a descida após os boxes, tangenciar o S do Senna, correr pelo traçado famoso: Ferradura, Pinheirinho, Laranjinha, curva do sol; enfrentar a subida do lago e o temido aclive em direção à chegada, quando se tem de graduar energias, passar pelas zebras e ver ainda as marcas dos pneus dos possantes meteoros da Fórmula 1, tudo contagia e traz um sentimento de gratidão por lá estar apreciando o autódromo lendário, rememorando os monstros sagrados do automobilismo. Sensação única.
Quando faltavam uns poucos 300 metros, ouvi gritos vindos do terraço na parte superior dos boxes. Minhas netas gritavam: “Vai, vovô !”. Tinha ainda reservas e, num sprint, consegui passar umas moças de academia conhecida de São Paulo. Alegria total.
Um fato curioso deu-se durante o trajeto. Na longa inclinação a levar aos boxes, estava passando por corredor que despejou “potência” logo na descida após a largada. Dele me lembrei por não ser jovem e ter inscrições em cirílico na parte posterior de sua camisa branca. Quando ficamos emparelhados, disse-lhe: “falta pouco, meu caro”. Respondeu-me, bem cansado, que a idade pesava. Aparentava sessenta e tais anos. Como corri sempre na mesma passada, falei de minha idade e continuei a dizer que sete outros corredores o aguardavam e que valeria correr por eles. No meu trotar ultrapassei-o e persisti até a chegada. Bem mais tarde, encontrei-o tranqüilo nas imediações dos boxes. Foi uma satisfação ouvi-lo dizer que estivera a ponto de desistir e só não o fizera graças às minhas palavras de estímulo. Respirou fundo e chegou, cansadíssimo, como afirmou, mas entregou a braçadeira ao seu companheiro. Abraçamo-nos bem contentes com o feito mútuo.

Viviane Senna e integrantes da TA LENTO. Clique para ampliar.

Enquanto nossos companheiros se revezavam, conhecemos essa simpatia que é Viviane Senna, irmã do tri-campeão da Fórmula 1, Presidente da Fundação e do Instituto Ayrton Senna e incentivadora incansável de projetos sociais através do esporte. Deixou-se fotografar com a maior naturalidade, o que trouxe um grande prazer à TA LENTO.
Ao leitor, passo os tempos de nossos valorosos corredores: Ademir Giacomelli 26:40, Américo Risato Umeda 27:38, Luis T. Sato 30:06, Sérgio Yuji Yokoyama 34:36, Franco Nakamura 36:02, Regina Tokuzumi Umeda 38:11, Cristina Ito Nakamura 40:00 e o meu 40:51. Nosso tempo bruto foi de 04:44:38. Ficamos em posição bem intermediária o que propiciou entender o recado de Sérgio: “…fazer perdurar isso pelo maior tempo possível”.
Ao receber e-mails de meus já amigos, mais um incentivo. Fui incorporado à equipe e esse fato despertou um surdo entusiasmo. Sim, estarei com essa incrível TA LENTO. Enquanto forças tiver, participarei com o maior gosto. Que extraordinária dádiva é alcançar um objetivo através da constância e da vontade. Que maravilhamento é o convívio com pessoas tão sensíveis e estimulantes.
Bem haja !

The emotions of my debut as a marathon runner at the relay race held on 16 November at the Interlagos circuit in São Paulo. I was part of the Nippo-Brazilian team named “Ta Lento”, made up of eight members, each running a set part of the circuit. At 70, I was the Methuselah of the group, but managed to run my 5.725 m in 40’51”. We didn’t break any record, but finished in a middle position. The feeling of euphoria was intensified by the fact that the event took place at the venue of the F1 Brazilian Grand Prix, with its illustrious history of motor racing. It was a great day for me: for the marathon itself and for the pleasure of being with a group of people I admire and whose company I enjoy.