Entender o Espírito Essencial

J.E.M. e alunos - Gent, Bélgica. Crayon, Yves Dendal, 2000

On peut tromper la vie longtemps,
mais elle finit toujours par faire de nous
ce pour quoi nous sommes faits.

André Malraux

Jorge é um aluno de outra unidade da Universidade de São Paulo. Aplicado discípulo da complexa área das Exatas. Procurou-me, pois é assíduo visitante de meu blog, que conheceu através do guia mensal de música erudita, Concerto. Lera os textos O Drama da Pós-Graduação (21 de Junho), Concurso e Concursos (9 de Julho) e Interpretação Musical (21 de Setembro) e estava com perguntas bem definidas. Fiquei feliz ao conhecê-lo e ao sentir o seu entusiasmo pela música, pois disse-me praticar piano amadoristicamente. Convidei-o para um café e conversamos uns bons momentos a respeito dos temas. Prometi a ele colocar um post sobre a matéria, motivo de nosso diálogo mantido durante pouco tempo, infelizmente. Teríamos de retornar às aulas, ele aos números, eu aos sons.
Desde o meu ingresso na USP, sempre entendi que a formação de um aluno, seja em qual área estiver, tem de ser harmoniosa, a contemplar várias categorias do conhecimento. O resultado nesse caso, quando o formando deixa os bancos universitários, é significativo, e entendo que ele preencherá os quesitos que a sociedade dele espera, a saber, atender com competência a coletividade.
É sempre bom lembrar que o professor universitário deve ter em mente princípio que tem origem na Idade Média, o Studium Generale, caminho seguro para que o discípulo tivesse formação sem arestas. Universidades recebiam esse título da Igreja ou da realeza, salvaguarda da excelência. Doutores pertencentes à Universidade assim considerada mereciam a maior respeitabilidade. A Universitas teria a incumbência absoluta de zelar para que o desiderato do conhecimento pleno fosse alcançado na Europa medieval. Aliás, a etimologia da palavra Universitas já estaria a apontar para essa dimensão de universalidade. Ampliar os horizontes do conhecimento. Mutatis mutandis, a Universidade Pública no Brasil deveria sempre estar atenta a essa abertura, pois ela subsiste mercê dos impostos pagos pelo contribuinte.
No quarto de século em sala de aula no campus da USP, a todo início de ano deparo-me com uma pergunta recorrente, relacionada à atividade musical. Questionam-me se preparo, na Universidade, aluno para concurso de instrumento, no caso, piano. A minha resposta, conhecida por gerações de alunos, é sempre a mesma: não. Calmamente respondo que é questão de estilo. Complemento, a afirmar que os bancos universitários existem, como cláusula pétrea, para a formação plena, guardando-se especificidades, e que o músico intérprete, entendendo-se aquele capaz de apreender as várias áreas formadoras do verdadeiro profissional, tão mais abrangente será quão maior for a sua visão. Na especificidade piano, direciono o olhar ao repertório expandido, a compreender períodos e estilos. Atingir nível técnico amplo é imprescindível, mas a virtuosidade, um de seus itens, entraria como um meio necessário, jamais um fim. A se considerar o aprofundamento nos conteúdos de outras disciplinas musicais, a integração deveria sempre, em conditio sine qua non, incorporar a cultura geral – compreendida a projeção voltada às leituras -, as outras artes, o político-social-econômico, o conhecimento de outras línguas e de outros povos e as captações conscientes do cotidiano. Expressara essas idéias a Jorge, quando ouvi notas fortes de um pica-pau-de-banda-branca e o canto de sabiá laranjeira em árvores próximas. Continuaria as divagações, a dizer ao jovem atento que, se olhasse para o alto, veria, nesta primavera, as árvores floridas do campus e os pássaros a cantar, se olhasse para o chão, a cena com mato não cortado e papéis jogados, a revelarem que nossa verdadeira aspiração deveria sempre estar voltada para as alturas. O espaço aberto impede as viseiras e afugenta o canto da sereia.
Entendo, sob a égide de princípios, que a Universidade deve incentivar os mecanismos que propiciem o desenvolvimento completo do aluno. No caso da Música, há Conservatórios e Escolas de Música, ou mesmo professores particulares, que direcionam o discípulo à tipificação representada pelos concursos. Esses são os espaços consagrados através da história. Outra sendo a carga de disciplinas que compõem o todo estruturado para a formação do aluno, aquelas categorias de instituições ou o mestre particular têm toda a liberdade de instruir o jovem intérprete que busca a quantidade de concursos de instrumentos existentes. É uma prerrogativa a ser respeitada. Sob outro patamar, a proliferação de concursos, a condução muitas vezes distante da ética em tantos certames e a necessidade dos holofotes voltados ao duo magister/discipulus podem camuflar lacunas que estarão a ser sentidas ao longo da trajetória do intérprete. E estas tendem a ser definitivas. Há número incalculável de premiados. Quantos atingiram níveis satisfatórios ao longo da vida? Se o concurso para aferições tem sua importância, deve-se contudo entender que apenas a integração harmoniosa será recompensada, mesmo que as luzes acesas pela mídia focalizem, por período razoável, triunfantes ocasionais. Corroborando a colocação, Jorge perguntara-me se eu teria passado pelo período dos concursos. Primeiramente, disse-lhe que extraordinários intérpretes jamais se submeteram a concursos que, tal como remédios, podem ter efeitos colaterais. Sim, concorri no país e no Exterior e os resultados no todo foram bons. A minha bolsa para França foi conseqüência de uma das premiações no I° Concurso de Piano da Bahia, no longínquo 1958, quando concorreram nomes referenciais como Antônio Guedes Barbosa, Artur Moreira Lima, Fernando Lopes, Sônia Goulart e Luís Medalha. Nos de além-fronteiras, dois dos mais importantes do mundo. É bom confrontarmo-nos com a elite, sentir a emoção e entender estágios de aperfeiçoamento. Quando concorri no II Concurso Internacional de Piano Tchaikowsky em Moscou, no ano de 1962, e algumas das gravações, ao vivo, estão hoje em CD, os vencedores foram Vladimir Ashkenazy e John Ogdon. Contudo, a preparação para os concursos era parte integrante de minha formação e o repertório tipificado de certames, apenas parcela de obras fundamentais para piano que estava a estudar em Paris sob a orientação de Marguerite Long e Jean Doyen. No geral, os programas desses concursos são bem convencionais, a explorar básicos princípios da virtuosidade. O grande pianista e regente Philippe Entremont, em entrevista recente, lembra uma palavra-chave, já largamente difundida na década de 50, ou seja, que o concorrente é uma “bête” à concours, pejorativa, é certo, mas a traduzir realidades. Se em muitas décadas anteriores havia poucos concursos de níveis diferenciados no Exterior, esse número aumentou, mercê da influência mediática voltada à proliferação de competições esportivas: circuitos de tênis, vôlei, atletismo, infinidade de torneios futebolísticos. É a globalização plena, a revelar talentos de muitos países para, tantas vezes, eclipsá-los logo após, pela necessidade da visualização dos próximos. Concursos instrumentais no Brasil são abundantes. Temo sempre pela qualidade. Vencedores de batalhas que dificilmente subsistirão à “guerra” do mercado. Se um triunfante não for músico-artista na acepção, ficará sempre o atestado de hábil instrumentista, mesmo que reconhecido, e estes se contam às centenas. Reza um preceito oriental que, por mais que tentemos lavar um carvão, jamais ele adquirirá brancura.
Em se tratando da essência essencial da Universidade, o princípio direcionado à pura confrontação de concorrentes é questionável. Induz o aluno a quantificar a sua concentração unicamente em um foco, desviando-o – há sempre exceções – da formação abrangente, única salvaguarda para o não estreitamento das idéias. A função da Universidade estaria a ser reduzida e haveria um capitis deminutio na harmoniosa edificação do graduando. Inclusive, aconselho meus alunos, a freqüentarem disciplinas oferecidas pela Universidade, como História, Psicologia da Educação, Literatura, Filosofia, para ampliação dos conhecimentos.

J.E.M. e alunos na USP - Crayon, Maria Fernanda Martins Rosella, 2007

Durante todos esses anos tive gratas revelações, tanto entre alunos que se inscrevem no curso de instrumento principal, como entre os que estão a estudar o chamado instrumento complementar, necessário à formação integral de um aluno de música. Seria, contudo, entre os alunos desta categoria que os debates sobre música são mais enriquecedores. Os resultados que obtive em ambos os compartimentos foram surpreendentes e, para meu gáudio, alguns ex-discípulos têm hoje lugar de destaque como músicos no Brasil e no Exterior. Nomear alguns, fatalmente, far-me-ia esquecer outros atuando meritoriamente. Todavia, asseguro, representam um orgulho para a universidade.
Jorge, ao saber que as aulas de instrumento são basicamente individuais, questionou-me se tenho monitor, devido ao natural afluxo de alunos. Salientei que a figura do monitor é contemplada pela legislação uspiana, portanto a presença dele é prática em muitas áreas da universidade. Ponderei a seguir que, curiosamente, sempre há dois ou três alunos excedentes que me procuram após o início do ano letivo, a dizer que prefereriam estudar com professor e não com monitor. O fato leva-me a algumas perguntas: esforçaram-se para entrar em importante universidade, a fim de serem orientados por “quase” colegas, pois em faixa etária bem próxima e sem o embasamento necessário, ou pelo professor, que passou por concursos acadêmicos para este mister? Buscam a transferência de conhecimento adquirido por um docente, ou aquela ainda em “formação” de um monitor? Considerando-se que nosso compromisso assinado com a universidade supõe as duas categorias, principal e complementar, entende certa – apesar de legitimada – a decisão de “outorgar” a um monitor a sacra tarefa de ensinar? Obviamente, a resposta é sempre não. Acredito profícua a existência de monitor competente, geralmente ligado a um programa de pós-graduação. Contudo, entendo também que o aperfeiçoamento se dará se acompanhado, em sala de aula, do professor, única referência para que o monitor capte ensinamentos preciosos. O equívoco seria deixá-lo a assistir um aluno com poucos conhecimentos, pois alguns dos questionamentos deste requerem uma bagagem de experiência cultural, geralmente ainda não sedimentada pelo monitor.
O prazer do docente viria da diversificação. Ao discípulo de instrumento complementar há material enriquecedor. Àquele que estuda composição, o conhecimento que terá de pequenas obras de autores referenciais, possíveis de serem por eles interpretadas, desvelará o estilo de um autor. Poder-se-ia dizer, o multum in minimo, indispensável ao seu próprio futuro como compositor; àquele que estuda canto, saber acompanhar lieder, dará a intimidade piano-canto; experimentar um piano e sentir a essência de seu som serão indispensáveis à vida musical dos instrumentistas de arcos ou de sopros. E nessas aulas, o discutir estética, estrutura, estilo e história enriquece a ambos, aluno e professor. Se monitor houver, sairá com maiores conhecimentos. Essa metodologia passa a ter sentido quando aplicada aos alunos de piano principal. Observar o vasto repertório, não necessariamente o mais ventilado, mas o mais substantivo na apreciação totalizante; distinguir estilos e, entre estes, a própria evolução estilística de um mesmo autor; entender seus ascendentes, pois todo compositor os tem; sugerir leituras complementares sobre música, temas pertinentes ou literatura de qualidade; evidenciar o prazer que se tem ao interpretar uma obra, dela sabendo extrair conteúdos essenciais, sem a finalidade do impressionar, mas sim do transmitir. Servir à música e, por extensão, ao espírito de universalidade que deve reger a Academia, parecer-me-iam os princípios basilares, sem os quais corremos o risco de superestimar egos. A nossa missão é extraordinária, e o caminho já percorrido dá-me a certeza de que a escolha da trajetória foi um maravilhamento.

The Missions of the University

As a pianist and after a quarter of a century as a university teacher, I am often asked if at the university I prepare students for piano competitions. My answer is always no. Far from being against such contests, my position simply means I do not think this is the mission of an institution of higher education. This is more suitable for conservatories and private music teachers, both free to gear each lesson to the individual needs of those who want to participate in the many musical competitions available nowadays.
In my view and according to principles that date back to the Middle Age, the commitment of teachers at a University, particularly when it is funded by the state, should be focused on teaching not only the performance side of music, but also on providing students with a wide and critical knowledge of the musical repertoire – its history, its theory, its social and cultural contexts -, on suggesting good music literature, on stressing the importance of extracting from a piece of music its inmost contents so as to be able to convey ideas and emotions in an imaginative way. In other words, to develop practical and theoretical skills essential to thinking musicians in any field, a solid musical grounding much in accordance with the spirit of universality already implied by the etymology of the word “university”.
I also comment on the role of teaching assistants and how important it is for them to work under a teacher’s guidance.

DC-3 do CAN

Douglas DC-3

Do trilho
só entende quem o trilha.

Adágio Popular Açoriano

Estava a almoçar na Universidade com meu dileto amigo e colega Edelton Gloeden, excelente violonista, e este contou-me, entusiasmado, a respeito de um curso que dera em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, patrocinado pela Universidade Federal. Perguntou-me se conhecia a cidade. Disse-lhe que sobrevoara Campo Grande em baixa velocidade, lembrava-me das largas ruas e, superficialmente, do aeroporto. Contei-lhe o episódio.
Em 1963, dei um curso de três semanas em Instituto Musical de Assunção, a convite de uma Companhia local e das Linhas Aéreas do Paraguai. Foi entre Outubro e Novembro, meses absolutamente quentes. O curso de interpretação pianística transcorreu bem e, ao final, dei um recital de piano transmitido pela Rádio para todo o país. Tempos do ditador Alfredo Stroessner (1912-2006). No intervalo da apresentação, o Embaixador do Brasil, o ilustre escritor, político e diplomata Mário Palmério (1916-1996), futuro membro da Academia Brasileira de Letras, em público, ofereceu-me alguns livros, entre os quais o premiado Vila dos Confins (li-o com enorme prazer) e um LP, dele constando algumas guarânias por ele compostas. Gentilmente asseverou que eu receberia um cachê do governo brasileiro, oferecendo a mim e à minha mulher o retorno ao Brasil pelo vôo do Correio Aéreo Nacional (CAN). Nossa intenção inicial era regressar no dia seguinte utilizando o bilhete aéreo paraguaio, mas a nova passagem fez-nos permanecer mais dois dias na cidade e defrontamo-nos com duas “epopéias”: a do cachê, jamais recebido, apesar de muitas missivas trocadas, e a viagem pelo glorioso CAN, que relevantes serviços prestou à nação em tantas décadas. O CAN realizava verdadeira interação deste país continente, atendendo também algumas nações limítrofes. Fez-me lembrar, sob contexto outro, do extraordinário livro Courrier Sud, de Antoine de Saint-Exupéry.
O percurso, que seria de aproximadamente duas horas, levou exatamente um dia. O avião, um Douglas DC-3, tipo de aeronave tão utilizada durante a Segunda Grande Guerra, tinha os bancos laterais de madeira e todos os tipos de personagens adentraram o avião, enquanto enormes pacotes abarrotaram outros espaços. Como o DC-3, incrivelmente estável, voava a baixa altitude e o calor era intenso, viajamos por muitas horas com as janelas abertas. O avião fez várias escalas, a fim de deixar e recolher correspondência e mercadorias. Pessoas desciam e subiam, quase como em ônibus urbano, e a cada decolagem minha mulher passava mal e tinha de acudi-la. Ponta Porã, Dourados, Campo Grande, Três Lagoas, dois ou três outros pousos em pistas de terra batida, cuja localização eu não saberia precisar, uma cidade do interior de São Paulo cujo nome não me lembro, e o destino final, que seria São Paulo. Ao sobrevoar, já à noite, o Aeroporto de Congonhas, desabava um aguaceiro violento, e o avião foi pilotado prudentemente até Viracopos. Outro era a momento histórico, em que interesses espúrios ainda não se mostravam pandêmicos. Esses pilotos militares eram super competentes, habituados a todo tipo de adversidade e atenciosos para com os passageiros, alguns descalços, pois pessoas simples da lavoura subiram e desceram em outros campos.
Quando finalmente aterrissamos no aeroporto de Campinas, já com poucos passageiros, a tempestade chegou logo após, precedida por rajadas violentíssimas de vento. O DC-3, longe de ser um avião pesado, sentiria as conseqüências caso medida urgente não fosse tomada. O comandante solicitou um veículo, que recolheu mulheres, idosos e crianças, não sem antes pedir aos homens que permanecessem no interior do avião, a fim de ajudar a tripulação, formada por militares. Levados os escolhidos, e sob as ordens do comandante, descemos naquela ventania forte, já sob aguaceiro total, e tivemos a árdua tarefa de puxar com firmeza umas cordas para serem fixadas – não saberia precisar onde, devido à intempérie –, a fim de que o avião não ficasse à deriva. Serviço encerrado, fomos ao saguão e aconselhados a pernoitar no aeroporto, pois apenas no dia seguinte a aeronave seguiria para São Paulo. Foi-nos permitido dormir em casa de meus sogros em Campinas, mas a bagagem permaneceria no avião. Por tratar-se de vôo internacional, o desembarque teria de acontecer em São Paulo. Após uma noite curta, no final da madrugada já lá estávamos para o percurso definitivo.
Com tantas viagens realizadas no decurso da existência, seria impossível rememorar todos os trajetos. Esse ficou marcado graças à gentileza do escritor Mário Palmério e às peripécias do percurso. Contá-lo a um amigo como Edelton serviu para boa descontração. A seguir, caminhamos dispostos para as aulas do período da tarde.

Nosso Grande Músico Romântico

Henrique Oswald

Vou catando estas palavras,
Como quem cata continhas
Para bordar no meu peito
Toda a memória que eu tinha.

Maria Isabel Oswald Monteiro

Estava a tocar obra de Henrique Oswald para piano solo quando aluno de outra classe bateu à porta, entrou na sala e sentou-se. Finda a música, perguntou-me com interesse sobre a peça que acabara de interpretar. Ao ouvir o nome do autor, disse-me ter lido meu livro Henrique Oswald – Músico de uma saga romântica (São Paulo, Edusp-Giordano, 1995, 218 págs.). Conversamos e veio uma outra pergunta que tem sido recorrente ao longo desses anos: qual a origem de meu interesse por Oswald?
Em 1978, recebi convite do bom compositor Sérgio Vasconcellos Corrêa para recital de música brasileira tradicional no Teatro Popular do Sesi, na Av. Paulista. Fiquei a pensar, pois não gostaria de repetir repertório já realizado no passado. Fui à antiga Casa Amadeus, na Rua Conselheiro Crispiniano, centro da cidade, deparando-me, maravilhado, com partituras impressas nas fronteiras dos séculos XIX e XX. Todas de Henrique Oswald e intactas em uma pasta. Li-as com profundo prazer e veio-me a certeza de estar diante de um compositor de alto mérito, lembrado basicamente até então apenas por duas ou três pequenas peças para piano. Algumas de suas excelentes obras camerísticas foram freqüentadas pelos intérpretes até as fronteiras da década de 60, mas desapareceriam após das salas de concerto. O recital no Sesi deu-se no dia 17 de Outubro do mesmo ano, inteiramente dedicado às criações de Oswald.
Querendo saber mais sobre o compositor, consultei Regis Duprat, então morando no Rio de Janeiro e através deste cheguei a Mozart de Araujo (1904-1988), músico ilustre daquela cidade. Asseverou-me que eu tinha, absolutamente, de conhecer a neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, pois era ela a memória do avô, depositária da história, dos diários e de muitas obras inéditas do grande compositor. Telefonei e Maria Isabel marcou um encontro em sua residência, à Rua José Linhares, no Leblon.

Maria Isabel - óleo sobre tela. Início da década de 30. Carlos Oswald

Ao chegar, num final de tarde, a anfitriã abriu-me a porta, apresentei-me, fui direto ao piano Blüttner, que pertencera a Henrique Oswald, e toquei Il Neige, a célebre obra do compositor que obteve o primeiro prêmio no Concurso do Le Figaro de Paris em 1902, quando concorreram 647 outras criações do mundo inteiro. No júri, um trio extraordinário: Gabriel Fauré (1845-1924), Camille Saint-Saëns (1835-1921) e Louis Diémer (1843-1919). Selava-se espontaneamente uma amizade que perdura na mais absoluta fidelidade. Semanalmente estamos em contacto. Após a execução, Maria Isabel começaria a abrir toda a documentação que durante tantos anos foi por nós lida, relida e comentada. Nesse primeiro encontro, não só fui convidado para um jantar em família como, antes de regressar a São Paulo, recebi das mãos da guardiã do precioso acervo uma Berceuse inédita de Oswald para piano, datada de 1886 e em manuscrito autógrafo. No Electra que me trouxe a São Paulo encontrei o extraordinário pianista e bom colega Antônio Guedes Barbosa (1943-1993). Falava-me de suas gravações e concertos. Dialogávamos e perguntou qual o motivo de minha viagem ao Rio. Mostrei-lhe entusiasmado a Berceuse, e Guedes Barbosa entendeu plenamente.

Cicico, Maria Isabel e Lilico - óleo sobre tela. Início da década de 30. Carlos Oswald

Durante muitos anos, todos os meses passava um ou dois dias no apartamento de Maria Isabel na Rua Visconde de Albuquerque, também no Leblon. Lá pernoitava e, se o Flamengo jogasse à noite, Mário, seu marido, médico, flamenguista convicto, e eu assistíamos à contenda pela televisão. Foi um período extraordinário, onde não apenas manuseei todos os manuscritos de Henrique Oswald conservados pela família, como ouvi as traduções de Maria Isabel dos diários de sua mãe e de sua mulher Laudomia, escritos em italiano e muitas vezes quase inintelígíveis. Maria Isabel sabia decodificar os meandros dos textos coloquiais. Filha do extraordinário Carlos Oswald, pintor, pioneiro da gravura em metal no Brasil e autor dos desenhos preliminares do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, Maria Isabel sempre soube administrar os desvelamentos dos dois vultos ascendentes de significativa expressão na arte brasileira. Maria Isabel é a autora de Carlos Oswald (1882-1971) Pintor da Luz e dos Reflexos (Rio de Janeiro, Casa Jorge, 2000, 229 págs.) Quando no lar Oswald Monteiro, lia os textos literários e os manuscritos musicais ao piano, deliciando-me ao ver a profusão de gravuras, desenhos e óleos de Carlos. Amálgama absoluto.

Carlos Oswald

Na prática, editamos em 1982, pela Novas Metas de São Paulo, as Sonatas para violoncelo e piano op. 21 e 44, uma Berceuse inédita para o instrumento, escrita a lápis e quase incompreensível e dois Estudos para piano. A convite do excelente compositor Edino Krieger, então Diretor da Funarte, iniciávamos a catalogação da obra de Henrique Oswald, interrompida com a chegada de Collor de Mello à Presidência, entendendo-se que seu governo desmantelaria a Funarte durante um período sombrio. Simultaneamente, gravávamos, para o selo da Instituição, um álbum duplo de LPs com a integral para piano e violoncelo e obras para piano solo. A seguir, registramos outro contendo o Trio op 9 para piano, violino e violoncelo, assim como a Sonata op. 36 para violino e piano . Antônio Lauro Del Claro (cello) e Elisa Fukuda (violino) foram os bons parceiros dos empreendimentos da Funarte. Sairia também o Quinteto op. 18 para piano e quarteto de cordas, gravação da Basf, em que tive como companheiros bons instrumentistas de orquestras de São Paulo.
As consultas à Biblioteca Nacional, ao Arquivo Nacional e à Escola Nacional de Música apenas ratificaram a certeza de estarmos diante de nosso grande compositor romântico, capaz de dialogar à altura com seus coetâneos europeus.
Edificava-se a tese de doutorado que defendi em 1988 junto ao Departamento de História da FFLCH da USP. O livro mencionado é parte da tese e senti enorme prazer ao vê-lo publicado.
Após a morte de Mário Monteiro, Maria Isabel foi procurada por Institutos da maior respeitabilidade do Rio de Janeiro, a fim de que houvesse a doação do acervo da família pertinente ao compositor para uma dessas Instituições. A nossa profunda amizade fê-la, com o consentimento de seus irmãos e quatro filhos, doar à Universidade de São Paulo toda essa extraordinária coleção, que se encontra hoje na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP. Já publicamos o Quarteto op. 26 para piano e trio de cordas e encontram-se em andamento o Concerto op. 10 para piano e orquestra, na redução que o autor fez da parte orquestral para quinteto de cordas, e o Diário de Munique, nome que atribuí às anotações confidenciais e pungentes do compositor em 1906, quando naquela cidade para concerto camerístico. Escrito em italiano, já está devidamente traduzido. Frise-se que a Biblioteca da ECA-USP desenvolve um trabalho competente de conservação de documentos fundamentais. Responsabilizou-se pela restauração dos Diário de Munique e dos manuscritos do Quarteto opus 39 e do Trio opus 45. O minucioso debruçar foi realizado por um atelier especializado, com recursos do Programa de Preservação e Conservação de Acervo do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP. Foram obedecidas rigorosas normas internacionais de conservação, documentos foram “higienizados” e “desacidificados”, suportes foram planificados, áreas rasgadas foram fixadas com papel japonês e outras com perfurações receberam aplicações de polpa, assim também “perigosas” fitas adesivas foram cuidadosamente removidas. Finalmente, os documentos restaurados foram interfolhados com papel de PH neutro e acondicionados em caixas e envelopes especiais para conservação. Todo esse trabalho tem o esmero das bibliotecárias Marina Macambyra e Analúcia dos Santos Viviani Recine.
Seria possível asseverar que Maria Isabel e eu verificamos com felicidade a existência, hoje, de cerca de dez dissertações de mestrado e teses de doutorado realizadas no Brasil e no Exterior sobre Henrique Oswald, algumas decorrentes, poderíamos com satisfação entender, daquele nosso primeiro encontro no longínquo 1978. Àqueles que me consultavam, estendia a necessidade igualmente desse conhecimento à memória viva de Maria Isabel. Sobre o filho de Henrique, Carlos Oswald, destaque-se a extraordinária tese de doutorado de Maria Amélia de Toledo Piza, caminho pioneiro para estudos acadêmicos pósteros.
Em outros posts escreverei sobre a importância da obra do compositor no cenário mais amplo, assim como narrarei a introdução das minhas interpretações de Henrique Oswald na Europa, o primeiro recital de piano inteiramente dedicado ao compositor no Grêmio Literário de Lisboa, em 26 de Fevereiro de 1982, e a emoção da primeira apresentação de concerto consagrado ao músico em Gent, na Bélgica, aos 18 de Novembro de 1995, dele constando obras camerísticas com piano e a Missa de Réquiem. Dois CDs camerísticos foram gravados naquele país: integral para violino e piano, tendo como violinista Paul Klinck (selo PKP, 1995); Sonata-Fantasia op. 44 (cello Peter Devos), Quarteto op 26 e o Concerto op. 10, já mencionados, com o Quarteto Rubio (selo De Rode Pomp, produzido no Brasil pela Concerto-USP). Os CDs podem ser visualizados em meu site em construção: www.joseeduardomartins.com sob o menu recordings. Um terceiro CD, apenas com obras para piano, já gravado e em fase de masterização, está previsto para 2008.

Ouça o Concerto op.10 na íntegra, com José Eduardo Martins ao piano, Quarteto Rubio e contrabaixo.

  • Allegro (poco agitato)
  • Andante
  • Molto Allegro
  • In 1978 I was in a sheet music store when I came across a folder with scores of the Brazilian composer Henrique Oswald, all of them printed between the XIXth and the XXth centuries and in excellent conditions. This was for me the beginning of a lifelong work of research on the works of the Romantic musician, which resulted in my doctoral thesis, defended in 1988, a book on Henrique Oswal, recitals, publication of critical editions and articles and the recording, back in the eighties, of two LP albums and, more recently, of two CDs. A third CD with solo piano pieces is ready and will be released in 2008 in Belgium. However, the discovery of Oswald’s pieces was, most of all, the beginning of a much cherished friendship with Oswald’s granddaughter and main keeper of his memory: Maria Isabel Oswald Monteiro. She is also the daughter of Carlos Oswald, painter, engraver and author of the sketches of the statue of Christ the Redeemer in Rio de Janeiro. In my countless visits to Rio for researches into Oswald’s life and work, I was always a guest at her house. She made available his manuscripts, letters, diaries. It was thanks to her generosity and to our friendship that the Oswald family precious collection was later entrusted in its entirety to the Universidade de São Paulo. Today nearly ten academic dissertations on Oswald’s works have been written in Brazil and abroad. Maria Isabel and I proudly believe some of them are the fruits of our distant 1978 meeting.