O iluminado século XVIII

La vrai musique est le langage du coeur.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)
(“Code de Musique Pratique”, 1760)

Após encerrar minhas atividades pianísticas públicas em 2023, não deixei de continuar meus estudos diários. No final do ano que passou houve um Primeiro Encontro privé, unicamente com transcrições de obras para cravo ou órgão de J.S.Bach realizadas por grandes mestres do piano: Liszt, Busoni, Siloti, Dame Myra Hess e Wilhelm Kempff. Concentrei-me, para este Segundo Encontro, nas criações de excelsos compositores, os célebres clavecinistes français. Os mais puristas entendem que apenas ao cravo essas composições deveriam ser apresentadas. Valho-me da opinião do notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001), Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale em Paris, que, ao prefaciar os meus CDs com a integral para cravo de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, escreveu: “O tempo do Barroco integrista passou. A utilização de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”.

A era cravista, máxime no século XVIII, foi pródiga na produção de composições que perduram através dos séculos e advindas de diversos países. Compositores seguiram formalmente linhas próximas, mas as configurações estiveram sujeitas ao abstrato ou ao descritivo, a depender das origens pátrias de seus mestres.

Entendendo-se a organização da Suite, constituída por diversas danças, verifica-se que a sua estrutura básica é formada por quatro peças, Alemande, Courante, Sarabanda, Giga e outras mais, acrescidas a critério do compositor. Na criação germânica, J.S.Bach (1685-1750) e G.F.Haendel (1685-1759) mantiveram preferencialmente cada peça com seu nome tradicional, sendo que a primeira poderia ser um Praeambulum, Prelude ou termo outro a designar a abertura. Apesar de Johan Kuhnau (1660-1722), na Alemanha, já ter dado um sinal outro à descrição nas suas seis “Sonatas Bíblicas” – música programática – (no Youtube há a gravação da integral que realizei na Bélgica e lançada em CD pelo selo De Rode Pomp), fundamentalmente J.S.Bach é o compositor maior, pleno de suas convicções luteranas. Essa posição poderia, quiçá, ter sido uma das razões para que a imensa criação descritiva francesa não o cativasse. Bach conheceu as “Ordres” de Couperin, tendo inclusive trocado correspondência com o mestre francês.

Em França, François Couperin (1668-1733) nomeia “Ordres” as 27 estensas Suítes  que integram os quatro livros (1713, 1717, 1722, 1730) com 254 peças, sendo que a primeira e a última de cada “Ordre mantêm a mesma tonalidade, fato que comprova um princípio básico da Suíte. Para a larga maioria das peças Couperin foge dos títulos tradicionais. Tantos outros clavecinistes français também assim procederam no culto à descrição. François Couperin legou grande produção, não apenas para cravo, mas igualmente escreveu para outras organizações, órgão, música de câmara e música vocal. Seu referencial método para cravo, “L’Art de toucher le clavecin” (1716-1717) é pioneiro no gênero.

Clique para ouvir, na extraordinária interpretação da insigne Marcelle Meyer, Le Tic-Toc-Choc de François Couperin:

https://www.youtube.com/watch?v=6cuEoA6dxpI&t=37s

Jean-Philippe Rameau (1683-1764) compõe pouco mais de 50 peças para cravo e transcreve pequenos quadros de suas óperas para o instrumento. Das cinco Suítes distribuídas em três livros (1706, 1724 e 1728), apenas na primeira (1706), o compositor mantêm os títulos tradicionais, sendo que nas outras as titulações são majoritariamente descritivas. Os títulos em Couperin e Rameau são consequências do observar a natureza e a fauna não agressiva, máxime os pássaros. Cultuam igualmente os sentimentos e a figura feminina, entre outras temáticas. O olhar e o sentir influenciando a imaginação, esta, traduzida no resultado sonoro.  A opera omnia de Rameau é extensa, salientando-se as suas óperas, tragédias líricas e o gênero ópera-ballet. Imenso teórico, seu “Traité de l’harmonie réduite à ses principes naturels” (1722) e a posterior “Génération Harmonique” (1737), são obras absolutas na História da Música.

Curiosamente, há inúmeros títulos da criação cravística utilizados por mais de um compositor. No recital privé menciono La Joyeuse, nome utilizado por Louis Daquin (1694-1772) e Rameau; Les Tourbillons, por Jean-François Dandrieu (1682-1738) e Rameau. Passarinhos e pássaros frequentam as criações dos clavecinistas. Rameau escreve Le Rappel des oiseaux e La Poule. Couperin saúda vários pássaros, Le Roussignol-en amour, La linotte-éfarouchée, Les Fauvettes plaintives, Le roussignol-vainqueur, Le coucou. Louis Daquin comporia a célebre Le coucou.

Clique para ouvir, de Louis Daquin, Le coucou, na interpretação do notável Gëorgy Czifra:

https://www.youtube.com/watch?v=Av_ypwPynxQ

 

Clique para ouvir, de Jean-François Dandrieu e de Jean-Philippe Rameau, Les Tourbillons – pois ambos se valeram do mesmo título -, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=begt8k6ErRY&t=3s

Nomes de figuras femininas são amplamente mencionados, mormente por Couperin. Rameau escreveria L’Agaçante, L’Indifférente, La Timide e La Dauphine, esta em homenagem à esposa do Delfim Louis, por ocasião do casamento real em Versailles em 1747, data da última peça para cravo do compositor. La Dauphine, Marie-Josèphe de Saxe, foi a mãe de Louis XVI.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, La Dauphine, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=MATL8LHQoB0

Profusamente os clavecinistes franceses se utilizaram da ornamentação. O insigne musicólogo espanhol Adolfo Salazar (1890-1958) bem define os porquês: “Em geral, as limitações do próprio instrumento ditaram o caráter de arabesco que, em seu mais estrito sentido, está presente nessas criações. Trinados, grupetos, mordentes, floreados, toda a quinquilharia derivada do alaúde e semelhantes no cravo tenderiam, entre outras razões, a uma peculiaridade material: a necessidade de proporcionar um fundo harmônico obtido pela repetição das notas, pois que a sua duração era impossível de outra maneira” (“Forma y expression en la musica”, 1941).

Jean-Philippe Rameau estabelece uma tabela a indicar ao intérprete exatamente a maneira de executar cada ornamento, assinalado criteriosamente na partitura. Nas cinco suítes e nas poucas peças avulsas há milhares de ornamentos. A abundante ornamentação existente na música para cravo em França fez com que considerações pululassem no transcorrer dos séculos, entendendo-a como superficial, pois nas obras dos germânicos Bach e Haendel, D.Scarlatti (na Itália) ou Carlos Seixas (em Portugal) a ornamentação é sensivelmente mais econômica devido a muitos fatores, mormente à tradição nesses territórios.

Clique para ouvir, de J-P. Rameau, L’Egyptienne, plena de ornamentos, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=26HhGRAg_Tg&t=30s

Creio que as palavras do ilustre compositor francês Georges Migot (1891-1876) sobre Jean-Philippe Rameau, que na realidade podem ser estendidas à magnificente escola dos clavecinistes français, bem traduzem uma verdade absoluta: “Enquanto Jean-Philippe Rameau, entre os maiores, não ocupar o lugar a que tem direito, a história da Música do século XVIII e através dos séculos não terá a sua total orientação”.

A second private piano recital looks at the magnificent creation of the French clavecinists, whose work has endured for centuries due to the unparalleled quality of the composers. A repertoire that has fascinated me since I was a teenager.

Patrimônio Mundial da Humanidade

Toda a grande obra supõe um sacrifício;
e no próprio sacrifício se encontra a mais bela e a mais valiosa das recompensas.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Neste segundo post a respeito do magnífico livro “Cinco Joias de Coimbra”, os capítulos finais se detêm sobre três outras joias que integram o ambiente singular de uma cidade que apresenta a Universidade de Coimbra como símbolo maior.

“O Órgão da Capela de São Miguel”, “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro” completam a pormenorizada abordagem das joias conimbricenses em seus textos redigidos por respeitados especialistas: Paulo Bernardino, Ana Cristina Tavares e Maria de Lurdes Craveiro, respectivamente. Preciosa documentação iconográfica ilustra os ensaios.

Paulo Bernardino, organista titular da Capela de São Miguel, Paço das Escolas da Universidade de Coimbra, Especialista em Música Sacra e Doutorado em Direção (Coral e de Orquestra), assina sucinto e rico texto sobre o singular órgão da Capela de São Miguel da UC.

Uma primeira referência em Portugal sobre o instrumento órgão data de 1453. Uma das características do denominado órgão ibérico era a presença de um só teclado, apesar de não muitas outras diferenças em relação aos órgãos de outros centros europeus. Paulo Bernardino pormenoriza, com arguto conhecimento, as características evolutivas do órgão. Chama a atenção um dado relevante expresso por Bernardino: “Um dos desenvolvimentos mais significativos e idiossincráticos do órgão ibérico, datado da segunda metade do século XVII, consistiu na introdução de registros de palheta em tubos colocados horizontalmente na fachada do órgão, na posição dita de chamada”.

Bernardino insere conteúdo histórico de interesse: “A subida ao trono de D.João V, em 1706, correspondeu a uma profunda alteração na história da música portuguesa. No âmbito da sua ação política, este monarca impôs a importação dos modelos litúrgicos e musicais de Roma. Tal não deixou de ter consequências na própria organaria, levando a uma reaproximação da organaria portuguesa aos modelos musicais italianos, sem, contudo, perder o seu caráter”. A seguir, elenca os materiais constitutivos do magnífico órgão da Universidade de Coimbra.

Logo após, Paulo Bernardino tece comentário breve sobre a escolha do repertório adequado ao instrumento, mas a possibilitar outras opções. Entusiasta, almeja um destaque maior para o magnífico órgão da Capela de São Miguel e observa: “Na verdade, apesar da conjugação de muitas vontades e iniciativas – tanto internas como externas à universidade – o Órgão da Capela da Universidade, apesar de um ex libris da organaria ibérica a nível mundial, permanece um desconhecido para a cidade”. O Professor João Gouveia Monteiro, no prefácio das “Cinco Joias de Coimbra”, comenta: “É muito sedutora a hipóteses avançada, em 2004, pelo saudoso Doutor José Maria Pedrosa Cardoso (docente da Universidade de Coimbra), que sugere que pode muito bem ter sido Carlos Seixas (1704-1742) a estrear em (1738?) o ‘colossal instrumento’ na provável cerimônia pública de inauguração da preciosidade à guarda do arcanjo São Miguel”.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga em Sol Maior do 2º volume do Cravo bem Temperado, na interpretação de Paulo Bernardino, frente ao órgão da Capela de São Miguel da UC:

Prelúdio e Fuga em Sol M – 2.º Vol. do Cravo Bem Temperado – J. S. Bach (youtube.com)

Ana Cristina Tavares assina a contribuição “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”. Entre outras titulações, a Professora é Doutora em Biologias (Fisiologia das plantas) pelo Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Foi Diretora-Adjunta do Jardim Botânico de Coimbra (2019-2021).

As palavras do ilustre prefaciador, Professor João Gouveia Monteiro, servem de peristilo ao ensaio de Ana Cristina Tavares: “Numa palavra, é um lugar de sonho, situado no coração da Alta coimbrã e com nada menos de treze hectares de área, dos quais nove correspondem ao arboreto da mata e os restantes aos socalcos do jardim clássico”. Lá estive, quanta verdade nas palavras de Gouveia Monteiro!

A autora define a missão do JBUC: “Cumprindo o objetivo da sua fundação no séc. XVIII, o de proporcionar aos alunos da disciplina de História Natural o conhecimento prático e direto, em contexto natural, das plantas aromáticas e medicinais (Henriques 1876), o JBUC mantém a preocupação da interpretação do espaço e a ligação à docência e à investigação in situ”.

Ana Cristina Tavares narra a rica história da JBUC e aprende-se a presença de figuras decisivas no transcorrer. Assinatura do Marquês de Pombal (1699-1782) nos Estatutos da Universidade, a resultar no consequente “Horto Botânico” aos 28 de Agosto de 1772;  a nomeação do primeiro diretor, o notável naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816), no mesmo ano. O pleno didatismo da Autora faz-nos conhecer as personalidades que marcaram a história da JBUC, que há pouco comemorou os 250 anos, as muitas coleções de espécies de árvores e plantas – só nas estufas tem-se 1500 espécies diferentes!

Escreve Ana Cristina Tavares sobre a riqueza que se descortina ao se visitar o Jardim Botânico: “Ao percorrer o JBUC sentimos um ambiente marcante e diferenciado, quer pelas duas áreas distintas, o jardim clássico e o arboreto, quer pela variedade das coleções, algumas nativas e a grande maioria delas exóticas, fruto do propósito da sua fundação. As plantas, cultivadas no exterior e/ou em viveiros e estufas, muitas delas caducifólias (isto é, de folha caduca) e por isso nem sempre visíveis no seu máximo esplendor, conferem pluralidade ao Jardim, sempre rico e diferente em cada mês”.

De alto significado o subcapítulo “A Educação no Jardim: veículo de interpretação e de conhecimento”, no qual a rica diversidade do JBUC enseja um debruçamento pleno nos programas educacionais afins.

A leitura do capítulo em pauta leva o leitor à certeza de que, sem uma relação amorosa com a área escolhida, lacunas se apresentam. Ana Cristina Tavares possui esse dom imanente, o de afeto com o todo do JBUC.

O último capítulo, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro”, tem a autoria de Maria de Lurdes Craveiro, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Investigadora de Centros de Estudos da UC e Diretora do Museu Nacional de Machado de Castro.

Acresça-se que desde 2019 o MNMC integra a lista do patrimônio de Coimbra classificado pela UNESCO.

Preliminarmente, o estudo da Professora Maria de Lurdes Craveiro poderia bem integrar uma Aula Magna, mercê do imenso levantamento histórico e da inserção do acervo do MNMC. Mencionar o introito do texto abrangente se faz necessário: “Fundado em 1911 e tendo aberto ao público em 1913, o MNMC herdou as estruturas edificadas do Paço Episcopal e do antigo criptopórtico romano de Aeminium;  foi sobre elas que se viria a implantar todo o seu percurso nobilitado, que se compreende, em simultâneo, pela grandeza do assentamento, pelo diálogo constante com o território de poder envolvente e pela natureza específica das suas coleções”

Nos significativos subcapítulos, a Autora remonta ao século I e “Mais do que uma História Milenar” conduz o leitor “à construção do fórum romano em que a cidade de Aeminium assentou a sua autoridade religiosa, social, econômica, política e administrativa”.

A seguir, Maria de Lurdes Craveiro pormenoriza cada etapa histórica do espaço, mencionando resultados e a série de personagens, tantos notáveis, até chegar ao “O século XX e a musealização do espaço”, quando da fundação do MNMC. Reparações profundas foram feitas, máxime a do arquiteto Gonçalo Byrne (1999), mercê de deterioramentos acentuados. A importância de MNMC atraiu peças importantes provenientes de outros edifícios históricos que foram incorporadas ao seu precioso acervo, a resultar na honrosa classificação em 2019, doravante Patrimônio Mundial.

Ao dedicar um subcapítulo aos “Diretores”, a Autora rende justo tributo às figuras que conduziram o MNMC ao pleno reconhecimento internacional.

Um último e precioso subcapítulo se estende às “Coleções”. Impõem-se pela grandeza e qualidade artística. Escultura em barro cozido, escultura em madeira, ourivesaria, pintura, desenho, cerâmica e têxteis. Determinadas obras-primas do MNMC, fotografadas por Maria de Lurdes Craveiro, dão uma ideia da grandiosidade do acervo.

Demonstrando o essencial para que uma produtiva ação diretiva realize intentos, a Autora insere nas conclusões: “Cumprindo a sua vocação centenária, o que o Museu Nacional de Machado de Castro suscita é, assim, mais ciência, mais investigação, mais meios técnicos e humanos, mais articulação comunitária e institucional (nacional e internacional), mais na construção dos afetos exteriores”.

“Cinco Joias de Coimbra” não é apenas um livro grande, mas um grande livro. Impecável coordenação do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro e da investigadora Maria Leonor Cruz Pontes, tendo a preciosa colaboração da Associação RUAS.

Aos 3 de Novembro de 2012 apresentei um recital no Museu de Machado de Castro com obras de Francisco de Lacerda (1869-1934) e de dois relevantes compositores que criaram obras em homenagem ao notável músico açoriano, François Servenière (1961-) e Eurico Carrapatoso (1962-), por ocasião do meu primeiro livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

Clique para ouvir, do extraordinário compositor conimbricense Carlos Seixas, Sonata nº68 em lá menor, na interpretação de J.E.M.

Carlos Seixas – Sonata nº 68 in A minor – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Three other chapters conclude the substantial book “Five Jewels of Coimbra”. Signed by renowned experts, it is a must-read for those who wish to learn more about the riches that emanate from the University of Coimbra, founded in 1290.

Patrimônio Mundial da Humanidade

Cinco joias de Coimbra  é uma revisitação carinhosa de cinco espaços
particularmente emblemáticos da cidade de Coimbra,
todos eles classificados pela UNESCO entre 2013 e 2019.
João Gouveia Monteiro
(extraído do prefácio de “Cinco joias de Coimbra”)

La bibliothèque la plus fastueuse que j’aie jamais vue.
Germain Bazin (1901-1990), notável historiador de arte.
(Comentário sobre a Biblioteca Joanina)

Não poucas vezes neste espaço comentei a respeito da imperiosa necessidade de se preservar patrimônios materiais que sinalizam a passagem do homem em suas aspirações maiores. O legado físico ganha outra dimensão quando acompanhado pelos porquês da existência e o consequente longo caminho até a concretização final, a encantar gerações através dos séculos.

“Cinco Joias de Coimbra”, sob a coordenação de João Gouveia Monteiro, ilustre medievalista, professor catedrático da Universidade de Coimbra e autor de obras referenciais em sua área resenhadas neste espaço, e de Maria Leonor Cruz Pontes, licenciada em História (variante de Arqueologia) e mestre em Museologia e Patrimônio Cultural, titulações pela Universidade de Coimbra, é primeiramente um belo livro pleno de interesse que transcende (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022). As cinco joias estão presentes no livro através de textos redigidos por renomados especialistas, que remontam às origens dos temas abordados. O prefácio, de autoria dos coordenadores, sinaliza a importância da obra documental, ricamente ilustrada. Não apenas realizam um abrégée do conteúdo da publicação, como inserem posicionamentos precisos numa área que lhes é familiar.

A Biblioteca Joanina, a Capela de São Miguel, o Órgão da Capela de São Miguel, o Jardim Botânico e o Museu Nacional de Machado de Castro são desvelados em seis capítulos riquíssimos, plenos de informações, muitas delas jamais vindas a público. Ourivesaria intelectual.

Dois capítulos são reservados à Biblioteca Joanina, o primeiro, “Contar como foi: Sobre a construção da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra”,  escrito pelo ilustre professor jubilado, especialista da história setecentista da Universidade de Coimbra, Fernando Taveira da Fonseca. Debruça-se sobre o tema, desenvolvido anteriormente em 1995, ora acrescido. No presente, há preciosa documentação indicadora da atenção dada ao financiamento, às etapas construtivas e pormenores do pórtico à magnífica pintura de Giorgio Domenico Duprá (1689-1770), ricamente emoldurada, retratando D. João V (1689-1750). Entre esses documentos basilares, um precioso, enviado por Nuno da Silva Teles (II) Reitor da Universidade de Coimbra entre 1715-1718, ao rei D. João V, expondo a necessidade de um novo prédio, a abrigar uma vasta e recente coleção merecedora do empreendimento. O lançamento da primeira pedra se deu em 17 de Julho de 1717. Taveira da Fonseca acompanha o desenvolvimento da empreitada, destaca as relações dos mestres de obra e dos muitos artistas com os contratantes.

António Filipe Pimentel, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, renomado historiador da arte, máxime na especialidade da arte barroca – dirigiu vários museus fundamentais portugueses -, assina “A Biblioteca enquanto espelho – Arte e Poder”.

Inicia a historiar a constituição de uma biblioteca em Portugal a partir do século XV, em Lisboa, e as várias coleções que viriam a enriquecer o acervo. Em 1548 é aberta a “livraria pública” em Coimbra com ainda um pequeno acervo. Instalada não em ambiente propício, foi somente entre 1717 e 1728, com o encerramento das obras da nova livraria, que se concretizavam tantas esperanças.

Escolhido o terreno, apesar de desníveis, lentamente seria erguida a casa a abrigar os acervos literários. Escreve Pimentel: “A empreitada da pedraria ficaria concluída em 1722, altura em que, todavia, já se haviam iniciado os trabalhos interiores de construção das estantes e demais carpintarias”. Enfatiza a seguir a ação dos trabalhos artísticos que consagrariam a Biblioteca Joanina na sua singularidade. Frise-se a pintura extraordinária e decorativa dos tetos das três salas, verde, vermelha e negra, separadas por arcos comunicantes. Pimentel aborda o tratamento artístico das madeiras com seus sugestivos entalhes. Externa que “… bronzistas, latoeiros, vidraceiros e um sem número de artistas e artífices eram paralelamente utilizados, nos mais diversos ofícios, destacando-se entre estes o italiano Francesco Realdino, ele também estabelecido na corte, contratado em 1725 para a realização dos seis sumptuosos bufetes ou mesas de leitura, obras-primas da marcenaria setecentista, realizados em madeiras preciosas e concluídos dois anos depois”. António Filipe Pimentel nomeia alguns artistas em suas respectivas atividades e se estende através das décadas, conduzindo o leitor ao nome do primeiro bibliotecário da Joanina, António Ribeiro dos Santos, em 1777.

Os coordenadores bem pensaram nesses dois preciosos contributos, de Fernando Taveira da Fonseca e António Filipe Pimentel. Os dois textos se complementam harmoniosamente..

No terceiro capítulo, “A Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra: do Paço Real ao Real Paço das Escolas”, assinado pelo Professor Gabriel Pereira, mestre em História da Arte, Patrimônio e Turismo Cultural pela Faculdade de Letras da UC, o autor parte das origens da Capela, que remontam ao século XI. Acompanha as etapas posteriores, percorre o século XVI com a reforma promovida no paço de Coimbra. Gabriel Pereira escreve: “Após a finalização das obras da capela de São Miguel, tornava-se necessário dotá-la de um conjunto de elementos fundamentais para a celebração do culto religioso, uma vez que era através de obras como os retábulos, as pinturas, as esculturas ou as peças de ourivesaria que se constituía uma narrativa cristológica e mais facilmente se cumpria uma função didática junto da comunidade acadêmica”.

A seguir, Gabriel Pereira se debruça resumidamente sobre várias das inúmeras obras de arte da Capela de São Miguel: “O retábulo da capela-mor, A decoração das paredes e do teto, esculturas e ourivesaria, O lugar da música”.

Algo de suma importância que o Professor salienta refere-se ao fato de que, no decorrer de cinco séculos, a Capela de São Miguel foi se adequando aos gostos de tantos artistas, da vontade dos reis e autoridades acadêmicas. Contudo, o histórico templo mantém uma “unidade” que seduz o visitante.

Dado o espaço a que me proponho, comentarei no próximo blog as três outras joias conimbricenses contempladas no magnífico livro.

A leitura de “Cinco joias de Coimbra” acentua ainda mais o privilégio que sinto ao lembrar dos dez recitais de piano que apresentei na Biblioteca Joanina, de 2004 a 2022, sendo que, na primeira récita, com um programa inteiramente dedicado ao genial compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), num colóquio a homenagear o tricentenário de nascimento. Graças à ação do notável e saudoso musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, Sonatas para cravo foram apresentadas em três recitais contemplando cravo (Ketil Haugsand – Noruega), piano (José Eduardo Martins), órgão (José Luis Gonzáles Uriol – Espanha), os dois primeiros na Biblioteca Joanina, o de órgão, na Capela de São Miguel da UC. Confesso que, nos meus 70 anos de atividade pianística, a Biblioteca Joanina foi certamente o espaço que mais me impactou pela beleza única e sua aura inefável.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 78 em Si bemol maior, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=E8GX3qIjfLI

Five Jewels of Coimbra, World Heritage is an affectionate revisitation of particularly emblematic spaces in the city of Coimbra, all of which were classified by UNESCO between 2013 and 2019.