O leitor como partícipe

Il est plus aisé de connaître l’homme en général
que de connaître un homme en particulier.
La Rochefoucauld  (1613-1680)
(“Réfléxions ou sentences et maximes Morales”)
Máxima inserida no primeiro blog.

Neste preciso 2 de Março completamos 17 anos de blogs ininterruptos, publicados semanalmente, sempre aos sábados. Ao todo, exatamente hoje, chegamos aos 900 posts. Foram tantas as vezes em que comentei que, assim como a respiração não pede férias, as crônicas hebdomadárias também. Durante esse longo período, mesmo em situações difíceis, temas surgiam e eram digitados tão logo o arcabouço se formava em minha mente. Meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013), artista exemplar, sempre que lhe apresentava um tema do post da semana que lhe era caro, dias após me enviava um desenho.

O primeiro blog publicado no longínquo 2007 teve como título “Praeambulum”. Reproduzo frases contidas no post inicial: “Pareceria cristalino que parte do meu de profundis estará a ser desvelado e, assim, tantos segredos virão a ser decifrados. Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o consequente afeto ao mister”.

Nessas centenas de crônicas, houve períodos em que determinados temas me levaram a dedicar séries que paulatinamente pontuavam intercaladas por assuntos outros, geralmente sem continuidade. Assim sendo, quantos não foram os livros do geógrafo, escritor e andarilho francês Sylvain Tesson (1972-) ou das aventuras de sucesso ou trágicas empreendidas por sonhadores na cadeia do Himalaia?  Essas intrépidas figuras permeavam minhas leituras desde a adolescência, juntamente com os grandes escritores do passado, neste caso orientado pelo meu saudoso Pai, que sempre entendeu a leitura dos clássicos como alicerce para a formação humanística.

A série sobre grandes pianistas do passado surgiu espontaneamente. À medida que pianistas desfilavam no meu blog, lembrava-me de outros mais, notáveis todos. A reverência ao passado glorioso desses músicos extraordinários sempre teve uma razão fulcral, o profundo respeito às partituras professado por esses intérpretes. Igualmente havia a gestualidade econômica, pois o essencial era a transmissão a mais fidedigna das obras executadas. Luminares de antanho, quando vocacionados às letras, deixaram, além das gravações excelsas, depoimentos que servem como bússolas àqueles novéis que tendem a trilhar o caminho da interpretação.

A temática sobre o repertório que gravei, máxime na Bélgica, povoou vários blogs, estes sempre acompanhados por explicações concernentes à origem da criação e do porquê de estar a gravar. Prioritariamente gravei obras extraordinárias do passado, pouco ou nada frequentadas pelos intérpretes. Quanto à música contemporânea, gravei peças de várias tendências, contudo me ative mais acentuadamente àquelas que não buscavam “suprimir as referências de outros períodos artísticos”, no dizer do ilustre compositor francês François Servenière (1961-).

Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo

Bem mais de uma centena de posts dediquei à Cultura portuguesa, mormente à música. Não tenho dúvidas de que esse afeto teve origem na pregação de nosso Pai, minhoto, aos valores de Portugal. Ao longo das décadas, na  medida em que penetrava nessa Cultura, mais a admirava. É um privilégio ter dois livros publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra sob o título “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (I e II). Grandes compositores de Portugal, Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Jorge Peixinho (1940-1995) e Eurico Carrapatoso (1962-) não apenas pontuaram inúmeros posts, como deles gravei obras referenciais, algumas delas hoje no Youtube. Só lamento a quase absoluta ausência da música de concerto, clássica ou erudita portuguesa nos repertórios de nossos intérpretes. Infelizmente, as representações – oficiais ou não – de Portugal pouco ou nada divulgam a música erudita do seu país em nossas terras. Fato.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 34 em mi menor, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k&t=14s

A leitura – assim como a exponencial música – também faz parte do meu respirar. Desses 900 posts, mais de 250 foram resenhas de livros que me encantaram (vide lista no menu do blog: Livros – Resenhas e comentários). Quantas vozes têm pregado a necessidade da leitura, infelizmente, máxime pelas novas gerações, reduzida basicamente às engenhocas telemóveis. Pouco a fazer.

Nesses 17 anos, as corridas de rua tiveram espaços em meus blogs. A partir do início de 2022 só realizo caminhadas de oito a dez km duas vezes por semana, após duas centenas de corridas de rua em São Paulo, cidades vizinhas e Bélgica. Acatei a sábia opinião do notável ortopedista Dr. Heitor Ulson, após uma queda que sofri durante treinamento e que teve como consequência a quebra da cabeça do úmero do braço esquerdo. Felizmente, o acidente não prejudicou minha prática pianística. Das corridas do passado às caminhadas atuais, os temas frequentam a minha mente no ato da prática esportiva, e em plena madrugada, meus dedos visitam um outro teclado.

Quanto ao cotidiano, que por vezes aflora como temática, devo ao hábito de observar desde a adolescência. Foram muitos os posts sobre viagens e decorrências devidas às atividades musicais. Acredito que observar é um dos dons fundamentais do homem e se amalgama perfeitamente à curiosidade. Através desta última chegamos às investigações, descobertas e resultados, mesmo que tímidos, fundamentais para o homem a fim de um conhecimento mais abrangente.

Instigado por diversos leitores para que me pronuncie sobre política em meus blogs, declino sempre. Há especialistas, alguns ilustres, que realizam análises inteligentes. Um deles, meu querido irmão, o jurista Ives Gandra Martins, uma das mentes mais brilhantes deste país.

Ficam neste espaço meus agradecimentos efusivos aos leitores que têm me acompanhado nessa já longa viagem. É sempre motivo de alegria a recepção de mensagens vindas de tantos rincões diferentes. Seguirei a publicar os blogs sempre aos sábados. Estímulo não falta, mormente nesses tempos tão estranhos que estamos a viver. Grato também à Regina Maria, vizinha desde os anos 1980 e dileta amiga, que faz a revisão de meus blogs, pois gralhas existem e, no dizer do nosso grande compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), “o pior revisor é o autor e, entre esses, sou o pior”. Por fim, Regina, minha mulher, pianista também e que sempre teve a paciência de me entender nessas viagens pelo imaginário. Ela e o querido clã familiar corroboram a travessia.

On March 2nd my blog completes 17 years of continuous weekly publication. I haven’t missed a single Saturday. Thanks to all my readers for their constant encouragement.

 

Transformações no século XXI

Viva sempre o presente com discernimento,
assim o passado será uma bela lembrança
e o futuro não se apresentará como um espantalho.
Franz Schubert (1797-1828)

O blog anterior suscitou uma série de questionamentos por parte de fiéis leitores. Se a música em suas essencialidades, respeito à partitura ou arbitrariedade, divide os intérpretes, os seguidores que acompanham os blogs semanais estariam interessados também em aspectos que intervêm na trajetória do músico, como o empresário, personagem que o agenda, mas cujos interesses majoritariamente são outros. Será ele que entrará em contato com agentes locais ou espalhados pelo mundo, cuidará da divulgação frente aos meios precisos, dos cachês a serem recebidos e estará atento à recepção pública. Questionam igualmente sobre a gravação e suas transformações sob o aspecto tecnológico. Um leitor ponderou se ela se manterá perene.

A se considerar a índole do intérprete. Muitos são os fatores que distanciam os executantes mediáticos que se adaptam aos desideratos do mercado, daqueles que,  buscando caminhos outros não recebem a atenção maior desse sistema sempre em ebulição. Inúmeras biografias de intérpretes que se notabilizaram retratam a relação nem sempre adequada entre o artista e o agente, pois choques podem ocorrer, mercê do “compromisso” deste com o gosto vigente. Como qualquer empresário atuando em ramos os mais diversos, interessa-lhe os resultados. Esse tema relevante, tratado anos atrás em posts sobre a interpretação, adquire importância maior no presente, fruto das transformações dos costumes, do gosto e da proliferação sempre acentuada da música de altíssimo consumo e descartável que atrai as novas gerações. Contrariamente, o pouco espaço planetário à Música de Concerto, por vezes, cede à participação de músicos que praticam gêneros populares em suas apresentações. Diria, mão única.

Um aspecto preocupante relativo às gravações, faz-me lembrar da frase do ilustre arquiteto português António Menéres, dileto amigo, que em seu livro “Crônicas contra o Esquecimento” comenta: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cantonadas, a sua cor, os títulos das obras: mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crônicas contra o esquecimento”, 29/07/2007). Creio basilar esse testemunho a valorizar o livro físico percorrido no passado e que o simples olhar sua lombada faz reviver lembranças… Esse olhar a ativar a memória faz-me lembrar da adolescência, dos discos 78 rotações substituídos pelos Lps, um avanço considerável nessa compactação do tempo. Destes tinha meu Pai cerca de 3.000, dedicados à música clássica ou erudita nas suas várias configurações. Cada capa de Lp nos fazia antever a escuta.

Entre 1979 e 1988 gravei cinco LPs a privilegiar a obra do nosso notável compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931) para piano solo e camerística. Das fronteiras do século XX-XXI a 2019 foram 25 CDs gravados no Exterior, Bulgária, Portugal e majoritariamente na Bélgica. O CD representou um avanço tecnológico e os ouvintes mantinham coleções, havendo inclusive móveis especiais a venda para abrigá-los. Em nossas terras e alhures, amigos e colegas músicos mantinham com certo orgulho suas coleções privilegiando seus respectivos gostos. O selo para o qual gravei na Bélgica, De Rode Pomp em Gand, do meu diletíssimo amigo, André Posman, lançava anualmente uma série de CDs impecavelmente gravados e interpretados por músicos europeus e da Rússia. Eu era o único das Américas a gravar. Jamais André sugeriu um programa a ser gravado, dando-me total liberdade na escolha do repertório, fato raríssimo entre os selos internacionais que inúmeras vezes indicam o repertório a ser gravado, geografia mutante e tempo de duração das sessões de gravação. Hoje o CD, em seus suspiros finais, não deixa sucessor físico, palpável, e todo o acervo colecionável e registrado dos primórdios do século XX em gravações rudimentares e fundamentais à qualidade atual se esvai, situadas que estarão doravante nas nuvens, na impalpabilidade online. Aparelhos de CD não mais se encontram na maioria das grandes lojas. Acredito que a menção a esses fatos evidencia a etapa final do objeto físico, CDs no caso. Durante os 17 anos escrevi vários blogs comentando cada CD gravado e as causas que motivaram a escolha do repertório.

Em programa televisivo que assisti em França, debatedores comentavam lá pelos anos 2010 que a música erudita ou clássica representava cerca de 4% de adeptos nesse amplo universo sonoro, considerando-se os ouvintes presenciais ou através das gravações. Antolha-se-me que, pelo fato de todo esse extraordinário acervo acumulado em de mais de um século, não mais estar à disposição fisicamente, mas através do streaming, poderá causar a diminuição maior de aficionados. As lombadas dos livros que abriam a memória de António Menéres ao já lido “…mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo…”, a visualização das capas dos CDs que descortinavam o sonoro neles contidos, reativando a memória e essa presença física dos itens, corroboraram a retenção dos conteúdos. Os livros ainda persistem, os CDs saem de cena.

Teria o público de concerto envelhecido? Estou a me lembrar de um concerto magnífico na Antuérpia em que era apresentada pela orquestra de Flandres uma Sinfonia de Gustav Mahler. O público que lotou a sala mais parecia um campo de neve onde preponderavam cabeças brancas. Sinais do tempo, preocupantes.

É sempre bom lembrar que a grande maioria dos ouvintes de música erudita ou de concerto não é representada pela juventude, sendo que aqueles acima da meia idade, cultores da música clássica, erudita ou de concerto têm maior dificuldade de se adaptar à vertiginosa caminhada em direção à inteligência artificial. Sob outro prisma, as novas gerações, como um todo, sofrem tantos impactos sonoros dos gêneros “musicais” de alto consumo que fatalmente as desviam dos conteúdos clássicos consagrados. O mesmo se dá com a Cultura literária atingida no cerne por tantas obras rigorosamente descartáveis, mas que atingem tiragens elevadas.

Gerações futuras só conhecerão auditivamente o extraordinário acervo criativo dos compositores que permanecem e dos intérpretes do passado através do imaterial. E esse imaterial já se afigura como preocupante realidade.

In response to questions from readers, in this post I discuss the manager role in relation to the performer, marketing influences on the music industry, and the issue of recording with the end of the CD, after so many transformations of sound recording technology through time.

 

A partir de uma sugestão

É necessário ter, diante da obra que escutamos,
que interpretamos ou que compomos,
um respeito absoluto, como diante da própria existência.
Como se fosse uma questão de vida ou de morte.
Pierre Boulez
(1925-2016)

A música é a arte das artes,
Arte metafísica por excelência.
Lá onde acabam as palavras,
Começa a música.
O mundo materialista dispões de força pura.
O mundo da música possui apenas a força interior.
Otto Klemperer
(1885-1972)

Gildo Magalhães, professor titular jubilado da FFLECH–USP, após a leitura do blog “Novas considerações sobre o plágio” (27/01/2024), escreveu-me: “Raciocínios semelhantes poderiam ser feitos a respeito da interpretação musical: o intérprete tem o guia da partitura, mas pode ser também original num certo grau de liberdade, pode inovar – e haverá porventura queixa dos intérpretes ou ouvintes mais ortodoxos. Tenho certeza de que o dileto amigo poderia se estender à vontade neste domínio”.

Ao longo de quase 17 anos de blogs ininterruptos abordei várias vezes a problemática da interpretação pianística, tempo decorrido a acentuar tendências que, sedimentadas, ultimamente sofrem constante mutação. Apesar de tempo relativamente curto em termos de avaliação histórica da interpretação, apreende-se, nos últimos lustros, uma tendência que parece não esmorecer e toma rumos sempre mais agudos, a evidenciar que os avanços da tecnologia, da inteligência artificial e das rápidas transformações na sociedade influem não apenas na maneira de o intérprete se apresentar, mas também na sua necessidade de transmitir para o público aquilo que este, num mundo em ebulição nunca vista, está a esperar.

Se considerarmos as récitas atuais em quantidade de países, verifica-se que as transformações se processam em várias categorias, que se estendem do intérprete solo à grande orquestra ou grupo coral ao destino final, o ouvinte. A interligação dos componentes resultará na recepção por parte do público, mercê de processo sem volta que, em aceleração constante, tem modificado os costumes, o gosto musical e intensificado a luminosidade dos holofotes. Tantos intérpretes a eles se submetem, máxime quando mais ofuscantes. Em sendo o executante o eixo paradigmático de toda a engrenagem musical, o cenário se completa. Acalentado pela mídia, sempre a busca da notícia que terá alcance amplo, quando “glorificado” o intérprete permanecerá a executar prioritariamente o amplo repertório que sempre apresentou, pois é exatamente isso que o público voltado à tradição gosta de ouvir. Esse público mais habituado aos concertos e recitais sabe exatamente distinguir os intérpretes, categorizando-os através dos seus repertórios mais frequentados.

Para o intérprete que cultua repertório repetitivo, as mudanças podem até ser tênues e apenas básicas inovações interpretativas ocorrerão ao passar dos anos. Se fiel à partitura, continuará a sê-lo; se “transgride”, outras transgreções ocorrerão, pois DNAs não falham. A partir de um “carimbo” relacionado aos autores que, ao longo da carreira, determinado intérprete prosseguirá executando, poderá instalar-se a aura do especialista advinda das obras dos compositores eleitos e o público acorrerá às salas de concerto para ouvir… essas mesmas obras.

Sob o aspecto fulcral da interpretação, atenho-me a uma frase do notável pianista e regente Daniel Barenboin (1942-), perdida em um dos livros que percorri. Escrevia ele que pianistas executam cada vez mais rápido e os ouvidos humanos, muitas vezes, não conseguem acompanhar o hipervirtuosismo. Essa assertiva pode ser observada em quantidade de vídeos de jovens intérpretes do leste europeu, mormente do Extremo Oriente, que exibem técnicas absolutas, mas tantas vezes desprovidas de essencialidades em relação à estrutura das obras e do fraseado musical.

Exemplo típico foi expressado por relativamente jovem pianista oriental mundialmente conhecida, relatando que por vezes interpreta como encore, após saudada apresentação, uma peça super-rápida. Costuma receber pedidos para que toque ainda mais rápido! Essa posição superficial atinge o cerne da questão, tratada sob outra égide em La Civilizatión del espectáculo, de Mario Vargas Llosa. Os andamentos fixados pelos compositores nem sempre são exatos, mormente nos séculos anteriores, em que essas marcações metronômicas poderiam ser fixadas até pelo editor. Na falta de uma definição do autor, há sempre uma margem plausível que é tolerada. Um adagio é um adagio, assim como um allegro ou prestissimo também têm suas precisões. Contudo, flexibilizações em torno são até admitidas e, nesses andamentos mencionados, intérpretes nem sempre obedecem estritamente às indicações. Superdotados gostam de superar marcas, à maneira do ex-velocista Usain Bolt, outros escolhem o livre arbítrio e outros mais seguem à risca as marcações assinaladas pelo compositor. O pianista e grande mestre francês Jacques Février, ao considerar a obra para piano de Claude Debussy (1900-1979), bem afirmava que há mil maneiras de se tocar suas composições e que uma apenas é equivocada, a de trair o seu estilo. Nesta mesma linha, com a presença dos compositores, dois exemplos são reveladores. Maurice Ravel (1875-1937) admoestou rispidamente Arturo Toscanini (1867-1957) que, durante a execução do célebre Bolero em Nova York, à medida que a obra avançava com o aumento da intensidade, fê-lo também com o andamento. O Bolero de Ravel tem a marcação metronômica rigorosamente inalterável do início ao fim (60 a semínima). Camargo Guarnieri (1907-1993), ao ouvir a sua Sonata para violoncelo, foi ao camarim e repreendeu um descontraído instrumentista que arbitrariamente alterara o final. Indignado, Guarnieri teria respondido que, se quisesse assim proceder, que compusesse Sonata de sua lavra.

Um pianista de reais méritos acima do equador gravou a integral ao piano de Jean-Philippe Rameau. Contudo, geralmente nas reprises, resolveu improvisar. Nestes tempos hodiernos, a crítica saudou sua gravação!!! Entendo-a como um desrespeito. Um recuo de meio século, essa gravação não seria aceita. A percepção do crítico em questão certamente sofreu a influência de considerável parte da apreciação musical, quando a aparência de uma autenticidade se traduz na transgressão.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, Les Niais de Sologne, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700

Em outra avaliação, o respeitado violinista francês Augustin Dumay, em entrevista à L’Éducation Musicale poucos anos atrás, observou surpreso o desconhecimento de interpretações excelsas do passado por parte de talentosos pianistas: “Há pouco tempo tive uma surpresa com dois jovens pianistas que ganharam concursos internacionais. Não direi seus nomes. Estávamos em um café numa escola renomada e ouvíamos as Variações Abegg, de Schumann. Disse a um deles: ‘Vocês conhecem o disco de Clara Haskil dessas Variações? É extraordinário.’ Deu-lhes um branco, um olhar de peixe, pois não entendiam do que eu falava e, tendo repetido o nome da pianista, percebi que jamais tinham ouvido falar dela!”. Esse não culto aos valores do passado não tem sido uma constante nos tempos atuais?

Para as novas gerações, um aspecto vital deveria ser considerado. Sem a oitiva dos extraordinários intérpretes, e Clara Haskil é um exemplo, perde-se o fio da tradição e o impacto desta civilização do espetáculo, ao privilegiar a aparência, os potentes holofotes, o superficial e não o essencial, tende a sérias distorções. Tempos ainda mais complexos se avizinham.

A dear friend, a retired professor at the University of São Paulo, asked me about musical interpretation, mentioning fidelity or a certain freedom in relation to the score.