O cosmopolitismo e seus comprometimentos

Não admitimos que a tendência à uniformidade de costumes e de gostos
tenha um efeito inelutável de um novo regime civilizatório,
que imponha a todos os países interesses solidários,
uma vida e uma história comum.
Apesar dos sintomas dessas tendências existirem,
acreditamos que não prevalecerão.
Gustave Bertrand (“Les Nationalités Musicales”, 1872)

Como nada entenderam do passado nada podem sonhar com o futuro.
Agostinho da Silva

Entre as muitas mensagens tecendo comentários sobre o último post, três enfatizam o fato de que a decadência dos costumes, moral, artes, política e tantas outras áreas é generalizada, a não poupar os países. Quanto ao nosso vasto torrão, essa degeneração é também acentuada. As mensagens me fizeram lembrar de um livro do escritor e musicólogo Gustave Bertrand “Les Nationalités musicales étudiées dans le drame lyrique” (Paris, Didier, 1872), que adquiri em sua edição original nos anos 1960 em Paris. O autor, àquela altura, já sinalizava circunstâncias que podem ser observadas 150 anos após!!!

Extraio alguns parágrafos do livro, a fim de considerações. Gustave Bertrand observa determinado resultado das célebres Exposições Universais que em Paris têm início em meados do século XIX, sendo que a mais célebre Exposição Universal, em 1889, para a celebração do centenário da Revolução Francesa de 1789, dar-se-ia 17 anos após o livro mencionado. Profeticamente, comenta que “Nessa era de Exposições que começa, a França se pertencerá cada vez menos; pois não se trata de hospitalidade: os estrangeiros marcam os encontros em nossas terras. À força de ser cosmopolita, Paris esquecerá de ser nacional. A honra é grande, sem dúvida, de ser a capital cosmopolita, mas ao invés de aproveitar, findaremos por sofrer. As opiniões são bem divididas nesse assunto. Essa situação pode parecer magnífica para aqueles que acreditam e que ficam felizes sob o aspecto da sociabilidade europeia; todavia, outros tantos veem confusão, promiscuidade de gostos, e temem que o resultado dessa bela química internacional busque finalmente apagar o que há na arte a mais característica, de extirpar uma das fontes essenciais da originalidade, de fazer com que a música seja pasteurizada em todos os países do mundo”.

A seguir, Gustave Bertrand tece comentários a respeito da necessidade de as nações e seus indivíduos guardarem suas características: “Acreditamos que os cidadãos podem se conhecer, ter negócios conjuntos, manter laços estreitos, sem abdicar minimamente dos seus caracteres, fisionomias e personalidades. Eles podem admirar e estudar qualidades alheias numa reciprocidade, assimilar alguma coisa de experiências outras, sem que por isso cessem de viver suas individualidades”. Frise-se que, em 2019, a França tinha 6,7 milhões de imigrantes, o que correspondia a 9,9% da população do país, sendo que 37% se naturalizaram e que 7,4 milhões são considerados estrangeiros, o que perfaz 4,9 milhões de pessoas. Grande parte dessa imigração é oriunda do Magreb, que compreende os países ao norte da África: Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia (fonte: CIMADE (Comité Inter-Mouvements Auprès Des Évacués).

Essa imigração também se verifica em muitos países europeus. O esquecer de ser nacional, apregoado por Bertrand, é nos nossos dias uma consequência natural e hoje não há mais a necessidade daquelas grandiosas Exposições, pois as práticas ditadas pelos países do propalado primeiro mundo, mercê inclusive do desenvolvimento cotidiano da tecnologia, influem nessa perda do sentimento nacional que, frise-se, ressurge sempre, mormente nos grandes eventos esportivos ou em conflagrações.

Sobre o intercâmbio entre as nações, Bertrand afirma: “É possível que uma nação capte por certo tempo os ensinamentos de uma outra, sem contudo ser condenada a se alimentar da imitação, a viver por reflexo. Que um artista emigre na busca de circunstâncias favoráveis ao seu gênio, isso não se traduz em uma ordem imutável do Destino a regulamentar as coisas de um país a outro”.

Contrapondo à frase mencionada, “À força de ser cosmopolita, Paris esquecerá de ser nacional”, Bertrand observa: “Nenhuma nação é fatalmente deserdada de algumas das grandes faculdades essenciais que constituem a humanidade em si. Eu cito ao acaso: a lógica, a coragem, a atividade industrial, agrícola ou comercial, a eloquência, a fantasia, o espírito filosófico, a observação moral, a imaginação e o sentimento artístico em suas diversas formas, poesia, drama, arquitetura, pintura, música, etc…; somente, cada nação guardará, nas suas diversas aplicações, seu caráter e gosto particulares”.

Entendo bem as posições de leitores sobre a problemática das transformações por que passa a humanidade nos itens elencados no post anterior relacionados a costumes, moralidade, gostos e à nítida decadência qualitativa em áreas como a criação artística. A música de alto consumo, como exemplo, passa por constantes transformações ditadas pela mídia e seus inconfessos interesses voltados à “renovação” sempre mais apelativa. Desse gênero “musical”, determinadas vertentes vindas do hemisfério norte, que produzem barulho “sonoro” ensurdecedor (entorpecedor das mentes), gestualização transloucada (a transição visual sem tréguas), repetição incessante (hipnotismo), “música” desprezível (destruição dos padrões tradicionais), conduzem milhões à alienação. E todo esse “material” é descartado em detrimento de outras apresentações sempre mais aberrantes e ruidosas. A mutação do gosto, calculadamente planejada pela mediação de tantos agentes, anatematiza a durabilidade.

Gêneros “musicais” que levam massas humanas pelo globo ao delírio, tendo como atores figuras amplamente mediáticas, estão em conformidade com “à força de ser cosmopolita…” apregoada por Bertrand. O que se vê é a diminuição brutal dessa juventude frente à arte erudita em detrimento das manifestações mediáticas de gêneros efêmeros, majoritariamente alienígenas, como Rock in Rio ou Lollapalooza, ou então, sob outra égide bem mediática e devastadora, se considerados forem os malfadados exemplos dos reality shows.

Nem falemos sobre a atividade musical erudita, pois estou a me lembrar de que, na nossa longínqua juventude, postávamo-nos em grandes filas frente ao Teatro Municipal para obter bilhetes para as galerias quando da visita dos luminares do gênero ao Brasil. A população de São Paulo era de 3,5 milhões, hoje 12,5 milhões, o que faria supor, para a atualidade, filas intermináveis.

Se outrora jovens instrumentistas pátrios contavam com público numeroso para estimulá-los, hoje os espaços ficaram reduzidos a guetos para todos, jovens e veteranos. A atividade musical erudita, contudo, persiste. A ciência já não provou que a chama de uma vela tem um potencial inimaginável?

Readers have asked for further clarification about the “cultural homogenization” that happens today in so many areas, such as tastes, customs, morals, arts. From the book by the French musicologist Gustave Bertrand, “Les Nationalités Musicales étudiées dans le drame Lyrique” (1872), I have drawn some very interesting ideas.

 

Haverá esperanças neste mundo tão conflitante?

Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo,
ou maior ou menor; ou então,
absolutamente não teríamos crescido,
permanecendo em completa inércia,
exatamente aquilo que agora somos.
Porém, para aqueles dentre nós que sentem fervor,
qual o significado do Novo Ano? Não poder ter esta significação?
Somos semelhantes a viajantes,
penetrando, em nossa longa jornada,
por um país novo e desconhecido,
onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam.
Jiddu Krishnamurti (1895-1986)
(“Mensagem de Ano Novo”)

Após o blog anterior, em que narro um Natal inesperado em Paris no ano 1958, ao verificar imagens para o referido post deparei-me com duas já mencionadas em outros blogs muitos anos atrás, mas que no presente têm muito a ver com a situação que se abre a partir do início de 2023.

Creio que, das visitas que realizei a tantas catedrais francesas, portuguesas e belgas com o desiderato de compreender o resultado gravado nas pedras de tantas criações extraordinárias relativas à história da cristandade, uma visita ficou indelével, a da Cathédrale d’Autun, em França, na Borgonha Romana. Denominada Église Saint-Lazare, foi construída entre os anos 1120-1146, mercê da visita de peregrinos que se prostravam diante das relíquias de São Lázaro, irmão de Maria Madalena e amigo de Jesus. Tem um magnífico tímpano realizado por Gislebertus, fato raríssimo àquela altura o escultor legar aos pósteros a autoria. Os inspirados capitéis no interior da Catedral têm igualmente Gislebertus como autor. Nessa visita em 1960 ficaram gravadas perenemente duas imagens, a dos peregrinos no majestoso portal e a de Saint-Joseph pensif, no interior do templo. Adquiri as duas estampas e não raras vezes, ao longo das décadas, elas me levam à reflexão.

Passaram-se pouco mais de quinze anos após essa visita à Cathédrale d’Autun quando, em viagem à Pouso Alegre, em Minas Gerais, parei num restaurante da estrada para tomar café e, ao passar por várias barracas de artesãos populares, uma delas chamou-me a atenção. Fiquei surpreso ao ver um rústico presépio em terracota, que imediatamente acionou minha memória. Tratava-se das figuras de José, Maria e a de Jesus no berço. São José levava a mão direita ao queixo. Qual a razão? 850 anos após a construção da Catedral d’Autun, novamente me deparava com a mesma postura de São José no templo da Borgonha, neste, a mão direita a sustentar a cabeça do Santo, sendo que o braço se apoia sobre perna esquerda, no de terracota amparado na mão esquerda. O mais extraordinário foi ouvir do artista popular mineiro, figura simpática que, com simplicidade, respondeu à minha pergunta referente ao porquê dessa mão no queixo. Coçando a cabeça e a sorrir considerou que a posição da mão significava o problema que o Santo estava a trazer para o mundo e que poderia ter sido o que São José pensou, completaria.

Aquelas palavras têm transcendência e certamente atravessaram centenas de anos, pois Gislebertus, com toda a sua genialidade, poderia ter pensado de maneira similar. O notável Auguste Rodin (1840-1917) criaria a escultura definitiva de “O Pensador”, mão direita a apoiar a cabeça e o cotovelo sobre a a perna esquerda…

As imagens de São José pensativo e a dedução do artista popular levam-me a pensar no alcance da frase. Iniciaremos um novo ciclo a partir do começo de 2023. Sob o plano mundial, entre tantas escaramuças internas em inúmeros países, sobressai a guerra Ucrânia-Rússia, insanamente provocada por um tirano, brevemente a completar um ano de bárbaras contendas, com cenários dantescos de destruição e mortes. No plano interno, a troca de poder traz incertezas e encontra um Brasil dividido. Quanto ao nosso torrão natal, há nítida degeneração em áreas como costumes; moralidade; lhaneza; decadência nítida da imprensa escrita – inclusive em termos de redação; programas televisivos em que o supérfluo e a degenerescência comportamental imperam, mormente nos reality shows; o desprezo pela cultura erudita; a não confiabilidade na classe política; o quase absoluto desaparecimento do respeito às religiões e crenças; a corrupção como a mãe de todos os vícios que, hélas, deverá prosseguir, pois majoritariamente anulada em breve tempo.

Aos 84 anos assisto à inegável decadência nas áreas apontadas. Se a tecnologia avança a passos largos para o bem e para o mal, se mentes esclarecidas e sérias buscam o aprimoramento do país, estas raramente encontram respostas dignas. Não podemos deixar esperanças fenecerem.

A todos os leitores que me honram com sua atenção semanal, desejo que 2023 lhes possibilite crescer, emergindo maiores ao final de mais uma etapa, como nos propões Krishnamurti.

Two images 900 years away in time led me to reflect on why a master sculptor in the 12th century and a rural artisan in the south of Minas Gerais came up with the idea of depicting the figure of Saint Joseph with his hand on his chin. The Romanesque sculptor Gislebertus in France and a rustic countryman who carved in his spare time had the same idea. From the popular artist I heard that the hand on the chin would reflect Saint Joseph’s thought “what trouble have I brought into the world!” It makes we think that possibly the medieval sculptor might have had the same idea. Thinking about troubles, I make some observations about a marked decay of civilization in numerous areas.

Da solidão a uma noite mágica

De todas as histórias que nos contava guardei apenas
uma vaga e imperfeita lembrança. Porém,
uma delas ficou tão nitidamente guardada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento,
a pequenina história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1858-1940)
“Lendas cristãs”
Prêmio Nobel de Literatura (1909)

Quantos de nós, cristãos, não temos algumas recordações do Natal enquanto crianças? Havia algo misterioso relacionado ao evento maior da cristandade. Quando miúdos, era-nos ensinada toda a saga que culminaria com o nascimento de Jesus e, nesse contexto, também aguardávamos a figura do Papai Noel com seus presentes.

O tempo passou e, aos 20 anos, um prêmio num Concurso Nacional de Piano em Salvador contemplou-me com bolsa do governo da França para estudar em Paris. Devido a não burocracia dos franceses, poucos dias após já estava em Paris.

Primeiro Natal fora do lar naqueles remotos tempos de amizades ainda não solidificadas. Intenso estudo pianístico, sob orientação da lendária pianista e professora Marguerite Long, levava-me, por vezes, a 10 horas diárias de estudo.

Noite gélida na véspera do Natal de 1958 em Paris. O barômetro apontava 3 graus negativos no portal do prédio onde morava, Rua Jacques Bingen, 16, no 17ème. Sai a caminhar sem destino preciso. No percurso via muitos apartamentos iluminados, a contrastar com o aspecto dos prédios que, àquela altura, ainda mantinham um cinzento sombrio, treze anos após o final da 2ª Grande Guerra. As passadas a esmo na gélida noite apenas acentuavam um sentimento de nostalgia. Nevava tenuemente.

A intenção primeira era continuar a andar por uns bons quilômetros sem rumo preciso, mas a cerca de um ou dois km após, ao passar em frente a um edifício que mantinha as luzes acesas e portas abertas, ouvi vozes femininas a cantar. Surpreso, simplesmente parei e fiquei encantado após pensamentos, se não negativos, incertos. Repentinamente, duas freiras já com certa idade desceram uns poucos degraus da escada e, agitadas, conversavam sobre a ausência do organista para a missa do galo. Delas me aproximei e perguntei-lhes se algo grave ocorrera. Disseram que o coral das noviças sempre cantava com acompanhamento na noite de Natal e que sem um guia se sentiam desamparadas. Afirmei-lhes que estava em Paris a estudar piano e que se quisessem… A agitação transformou-se em sorrisos largos e conduziram-me ao recinto onde as moças estavam realmente desconsoladas. O instrumento era um antigo harmonium ou harmônio. Deram-me as partituras e iniciamos a seguir os ensaios, que demoraram uma boa hora, pois logo após cidadãos, a maioria constituída por casais de idosos bem protegidos do frio intenso, adentraram parte da sala transformada em Capela.

Solicitei que uma das freiras ficasse ao meu lado para as entradas dos hinos religiosos durante a Santa Missa. Não me recordo das peças sacras que acompanhei no transcurso da cerimônia religiosa, apenas vindo-me à memória a célebre “Adeste Fidelis”. À medida que transcorria a Missa algo extraordinário se passava comigo, uma espécie de entusiasmo contido. Finalizada a Missa, enquanto os fiéis ainda permaneciam na Capela, toquei, em ato espontâneo naqueles momentos de confraternização, “Jesus Alegria dos Homens”, de J.S.Bach-Hess, incidente inusitado, mas que agradou as irmãs da Ordem religiosa.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Mullem, Bélgica, 2004):

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Findos os ofícios, despedi-me das freiras, que não me deixaram partir, fazendo-me um convite, pois no salão contíguo à Capela, haviam preparado uma ceia singela. Para o jovem que eu fui, aquele sincero apelo para que permanecesse foi um verdadeiro bálsamo, evocou o que sempre senti nas festas natalinas em casa de meus pais e dissipou quaisquer pensamentos de nostalgia. Ao perguntar a uma das freiras a Ordem a que pertenciam, disseram-me que se tratava de uma irmandade católica de origem norte-americana.

Ao regressar naquela noite tão fria rememorei tantos contos lidos ao longo das décadas que invocavam episódios mágicos ou misteriosos relacionados ao Natal. Fiquei a pensar que não teria sido apenas o acaso, mas algo mais, pois até então nunca havia transitado por aquela rua. A não menos de 100 metros de onde morava há a Église Saint-Charles-de-Monceau, na Rue Légendre, igreja que frequentei várias vezes, tendo por ela passado no início da caminhada daquela noite, mas sequer prendeu-me a atenção.

Clique para ouvir do notável compositor e meu estimado amigo, Eurico Carrapatoso, “Ó meu menino Magnificat em talha dourada”. Coro e Ensemble Olisipo, soprano Angélica Neto:

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U

Se tivesse de enumerar outras reuniões natalinas mantidas na memória, não saberia precisá-las em seus pormenores. Esvaíram-se e apenas lampejos veem-me à mente. Qual a razão de unicamente aquela véspera de Natal em Paris ter ficado indelével, com suas cenas incólumes? Ao pensar nelas, a mente ativa as imagens registradas e guardadas no meu de profundis. O notável filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985) afirmava que o segredo se explica, o mistério é insondável.

Fosse hoje, não mais me sentiria sequer seguro a perambular noite adentro pelas ruas menos frequentadas de Paris.

A todos os leitores desejo um Natal em Paz, algo de que estamos a necessitar nestes tempos turbulentos por que passa o país.

Clique para ouvir “Natal de Elvas”, na interpretação do Coro Capela Gregoriana Laus Deo, dirigido pela minha dileta amiga Idalete Giga, que realizou a harmonização da música extraída do Cancioneiro alentejano:

https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU

Of all Christmas nights I have attended, very few actually remain in my memory. Only one was unforgettable: a magic Christmas eve in Paris in 1958, probably the happiest of my entire life, indelibly retained in my mind with all details.