João Gouveia Monteiro e o aprofundamento fulcral

Por estes vos darei hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, e ao Reino tal serviço;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arrea.
Ditosa Pátria que tal filho teve!

Luís Vaz de Camões
(Os Lusíadas, Cantos 1º, 12ª estrofe; 8º, 32º estrofe, respectivamente)

As biografias humanizam a História,
conferem-lhe um sentido maior do concreto,
interpelam-nos talvez mais como cidadãos do tempo e do mundo.

Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas portuguesas.
João Gouveia Monteiro
(“Nuno Álvares Pereira – Guerreiro-Senhor Feudal-Santo”)

Uma das figuras mais importantes da História de Portugal, se não a mais fascinante, encontramo-la em Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Ao longo dos séculos tem sido vivamente cultuado em Portugal.

Curiosamente, meu “contato” com o gigantesco personagem se deu nos meus 15 anos, no longínquo 1953. Meu Pai, natural do Minho, cultuava intensamente os valores portugueses e me presentou em dois anos consecutivos com dois livros que li com vivo interesse àquela altura e que conservo carinhosamente nas estantes, “Os Filhos de D. João I” e “A vida de Nun’Álvares Pereira – história do estabelecimento da dinastia de Avis”, do historiador Oliveira Martins (1845-1894). Juntavam-se a muitos outros que ganhei de meu Pai na juventude, voltados às biografias de compositores, literatos ou desbravadores de tantas áreas. Os de Oliveira Martins deixaram-me forte impressão, mormente porque o autor, sem as fontes multidirecionadas que são primordiais às pesquisas historiográficas na atualidade, compensava essa lacuna com uma escrita sedutora, romantizada, que ficou indelével na mente do jovem que eu fui. Não poucas vezes, em minhas dezenas de peregrinações musicais a Portugal, que remontam a 1959, pensei em saber mais sobre o magistral arquiteto da Batalha de Aljubarrota, que se deu em 1385.

Foi-me prazeroso receber das mãos do notável professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, onde ensina História da Idade Média, História Militar Europeia, História da Antiguidade Clássica, História das Religiões e Cultura Medieval, seu precioso livro “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro-Senhor Feudal-Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019). Duas obras de Gouveia Monteiro foram resenhadas neste espaço (vide: “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 23/12/2011 e, juntamente com três outros professores medievalistas, “Guerra e Poder na Europa Medieval”, Coimbra, IUC, 2015. 11/11/2017).

A imersão do autor sobre Nuno Álvares Pereira fê-lo compartimentar a vida do Condestável em três nítidas fases, a do Guerreiro, do Senhor Feudal e do Santo. Essas fases são nítidas, plenamente vividas, a revelar unidade de caráter. Na essência essencial, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, é um só a viver etapas distintas na existência. Gouveia Monteiro apresenta o herói, dissecando-o, caminhando passo a passo com o Condestável e, à medida em que constrói a narrativa, faz desfilar incontáveis fontes fidedignas que remontam da Idade Média às últimas pesquisas sobre o período em que Nuno Álvares Pereira viveu. O livro poderia ter sido demasiadamente exegético não fosse a presença constante do autor para que dúvidas não pairassem. Nesse sentido, Gouveia Monteiro se faz guia, reportando-se às passagens lidas bem anteriormente. Essa atitude constante corrobora o entendimento, pois desfilam no livro em apreço centenas de personagens, mormente os que viveram entre os séculos XIV e XV. O leitor poderia perder-se, não fosse a ação didática do ilustre acadêmico. Fá-lo sempre com precisão, certo de que se assim não agisse impossibilitaria a retenção por parte do leitor. Essa presença do biógrafo possibilita àquele, inclusive, cotejar documentação e interpretar pesquisas de um período pleno de acontecimentos cruciais da História de Portugal.

Dividido em quatro capítulos distintos - “Como contar esta História?”, “O General Invencível e o seu Exército”, “O Senhor Feudal e o seu Patrimônio” e “Um Eremita da ‘Pobre Vida’ no Mosteiro” -, a obra de Gouveia Monteiro na realidade compreende “três” personagens em atuações harmoniosas, diferenciadas sim, mas prenhes de unicidade.

Em “Como contar essa História”, Gouveia Monteiro, após minuciosa pesquisa, perscruta cronistas dos tempos de Nuno Álvares Pereira e, através dessa documentação, possibilita ao leitor o descortino do período. Interessa-lhe não apenas o seu herói, mas igualmente o entorno, e esse caminho pluralizado revela determinados eventos que poderiam estar à margem, mas que têm importância fulcral. Ficamos sabendo essencialidades dos espaços geográficos e humanos em que o Santo Condestável atuou através dessa literatura de antanho. Gouveia Monteiro se posiciona logo de início e entende a dificuldade de escrever sobre um personagem histórico que viveu há 600 anos. Das remotas narrativas, três, entre outras, servem de “amparo” a todos os recentes trabalhos sobre o herói português: A “Crónica do Condestabre”, redigida pouco após a morte de Nuno Álvares Pereira (desconhece-se o autor), as importantíssimas biografias redigidas por Fernão Lopes (século XV) e a bem mais recente “Chronica dos Carmelitas” do Frei José Pereira de Sant’Anna (anterior ao terremoto de 1755). A partir dessas fontes primárias, o medievalista se debruçaria sobre mais de 5.000 páginas em torno do tema.

A respeito de Fernão Lopes, Gouveia Monteiro pormenoriza segmentos de suas crônicas, fornecendo embasamento às suas próprias deduções.

Em “O General Invencível e o seu Exército” tem-se o desvelamento de um dos mais importantes comandantes da história de todas as guerras do planeta. Impressiona a trajetória vitoriosa de Nuno Álvares Pereira frente aos seus exércitos. Tendo a guarida do rei D. João I, o Mestre de Avis (1357-1433), o Condestável elabora estratégias com tropas menos numerosas frente aos embates com o Reino de Castela. Impressiona o fato de que as três principais batalhas em que esteve a comandar foram travadas sendo Nuno Álvares ainda jovem. Em Atoleiros, com seus homens apeados, vence castelhanos montados (Abril de 1384). Em Agosto do mesmo ano, arquitetando tática bélica inusitada, vence a célebre batalha de Aljubarrota. No ano seguinte, em terras de Castela, sai vencedor da não menos famosa batalha de Valverde. Se essas três batalhas basilares ficaram no panteão das grandes contendas, em inúmeras outras “escaramuças” ou enfrentamentos menores, alguns desses reintegrando espaços provisoriamente ocupados pelos castelhanos, Nuno Álvares saiu-se vencedor. Bourbon e Menezes pergunta: “Que teria sido D. João, Mestre de Avis, sem o alento animador deste Galaaz?” (1933). O rei D. João I, reconhecendo todos os méritos de Nuno Álvares Pereira, nomeia-o Condestável.  Entre outras honrarias, vemo-lo fronteiro do Alentejo, mordomo-mor do rei D. João I e triplo conde. Paulatinamente D. João o presenteia com terras e propriedades que “assinalam a consagração de D. Nuno Álvares Pereira como o homem mais rico e poderoso do reino, a seguir ao rei” (Gouveia Monteiro).

No terceiro capítulo, “Senhor Feudal”, a preceder as doações realizadas pelo Condestável, o autor salienta as qualidades de seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira, já expressas no capítulo anterior em citação constante da “Crônica do Condestabre”: nobre de condição e bom cavaleiro e mui entendido, assim como de ter privado com três reis portugueses: D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando. Gouveia Monteiro escreve: “Álvaro Gonçalves Pereira é uma figura relevantíssima na vida de Nun’Álvares”. Ao pormenorizar o pai, que inclusive teve meritório desempenho como guerreiro na batalha do Salado e outras mais contendas, ficaria latente a influência de Álvaro Gonçalves Pereira nas escolhas do futuro Condestável desde a juventude.  Tendo fundamental importância junto à Ordem do Hospital, o progenitor de Nuno Álvares teve “…uma capacidade empreendedora e uma energia assombrosa” d’après Gouveia Monteiro, sendo o mandante da construção do Mosteiro de Flor da Rosa (Crato), local onde está sepultado. Tanto Álvaro Gonçalves Pereira como Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares, esta posteriormente, foram doadores de terras.

Ainda em tempos de combate o Condestável já distribuía entre aqueles que o ajudaram nas batalhas algumas de suas propriedades, mais o fez ao longo de sua vida como Senhor Feudal e despojadamente quando entrou para a Ordem do Carmo. Seguiria, em escala bem mais ampla, as atitudes dos seus progenitores. É notável a presença do homem de fé intensa que desde os tempos como guerreiro, antes das batalhas, permanecia durante bom tempo a rezar. “Estará Fernão Lopes [cronista citado acima] mais próximo da verdade do que até aqui pensávamos, quando comenta o estranho episódio do Condestável, entre penedos, no momento mais apertado de Valverde, passagem em que explica que o Condestável se apartou do resto do seu exército e dos seus mortais inimigos, ‘não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio’”? (Gouveia Monteiro). Prossegue o autor quanto ao Convento do Carmo: “… legado material mais importante da existência do Santo Condestável: o Convento do Carmo, sem dúvida alguma a obra da sua vida e uma parte importante do seu patrimônio”. Gouveia Monteiro assinala ainda que, apesar das dúvidas concernentes à decisão de edificar o Convento, “a tradição relaciona a decisão com os votos que terá proferido por ocasião da batalha de Aljubarrota ou da batalha de Valverde”.  Entende o historiador que há um mínimo intervalo cronológico entre a construção e a desconstrução patrimonial de Nuno Álvares Pereira, pois ainda em tempos de batalhas e escaramuças o Condestável já tinha o hábito de doar.

Na abertura do quarto capítulo, “Um eremita da ‘pobre vida’ no Mosteiro”, Gouveia Monteiro escreve: “Depois de recordada a longa carreira militar de Nuno Álvares Pereira, resta-me considerar o seu ‘terceiro rosto’: o do homo religiosus, que, aos sessenta e dois anos, decide ir viver para o convento que tinha mandado construir em Lisboa, onde entrará em vida religiosa um ano mais tarde e onde virá a falecer, em 1431”. Será o tema do próximo post. Explico: ao final do livro, João Gouveia Monteiro se posiciona, enumerando cinco pontos relevantes em considerações pessoais de grande interesse. Para tanto, servir-me-ei do seu próprio texto, conciso e fundamental. Compreende-se melhor a intensa religiosidade de Nuno Álvares e, entre outros fatores devocionais, tem importãncia os eremitas e as comunidades eremíticas nos anos derradeiros do Condestável.

An essential contribution to the unveiling of Nuno Álvares Pereira, the Constable (1360-1431), has been made by the remarkable Professor of Medieval History at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro. Consisting of three parts – the Warrior, the Feudal Lord and the Saint -  the researcher’s book, based on reliable  sources basically  dating back to the 14th century, appears to be of absolute importance not only to the  Portuguese culture, as it transcends national borders.

“Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”

Nos últimos anos de vida, o elã em direção ao futuro,
o sonho desse devir atingiram uma força e uma acuidade particular.
Tornou-se impaciente e a espera começou a pesar.
A impossibilidade de traduzir, fora da música, o indizível o irritava.
Pôs-se a trabalhar com certa angústia,
como se algo o provocasse ou
como se estivesses a pressentir o tempo escoar:
‘Não mais as palavras, é tempo de se colocar à obra,
necessário se faz agir mais rapidamente, muito tempo foi perdido’.
Bóris de Schloezer (1881-1969)
(“Alexandre Scriabine”. 1975)

Neste terceiro post dedicado a Alexander Scriabine no ano de seu sesquicentenário insiro meu texto sobre o instigante depoimento do escritor Bóris Pasternak sobre Scriabine, publicado na “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho de 1996, mercê da anuência de meu dileto amigo, o sábio editor Cláudio Giordano.

Bóris Pasternak (1890-1960) lega-nos apreciações de relevante importância sobre o compositor russo, pois o conheceu ainda adolescente (1903). Seu pai, o pintor Leonid Pasternak, era amigo de Scriabine.

No texto que segue há várias considerações que fazem parte de minhas pesquisas posteriores a 1972 sobre Scriabine (centenário do compositor), publicadas no Brasil, em França e na Bélgica. Impossível algumas dessas reflexões se ausentarem nos vários posts sobre Scriabine publicados neste espaço desde 2007. Acúmulos…

“Entre os textos autobiográficos de Bóris Pasternak nos quais Scriabine está presente em sua lembrança, o ora publicado é testemunho ratificado da admiração, não desprovida de momentos frustrantes, do autor de ‘Doutor Jivago’ para com o criador de ‘Vers la Flamme’. A imensa importância dos escritos de Pasternak está em dimensionar posturas expressas pelos estudiosos do compositor, das primeiras décadas à atualidade.

Conhecem-se em 1903, Bóris nos seus 12 anos, Scriabine, músico já renomado, aos 31. O jovem evoca características de seu coetâneo ilustre encontráveis nos muitos estudos sobre o autor, entre os quais o de  Bóris de Schloezer, que conviveu com Scriabine, pois seu cunhado. Sob outro aspecto, a substancial iconografia scriabiniana evidencia um homem elegante, voltado ao dandismo, frágil, quase valetudinário.

Pasternak, no texto em questão, observa a pregação de Scriabine quanto ao ‘homem superior e amoral de Nietzsche’. Nas fronteiras do século, Scriabine lê com inusitado interesse, paixão mesmo, segundo sua filha Marina, ‘Assim Falava Zaratustra’, pensando inclusive numa ópera, jamais realizada, cujos fragmentos do libreto ficaram registrados em um carnet do compositor.

Sabe-se da influência exercida sobre Scriabine das teorias de Helena Blavatsky, cuja obra ‘A Doutrina Secreta’ marcaria o autor do ‘Poema do Êxtase’ em seu caminho em direção a uma teoria teosófica.

Pareceria correto admitir-se que a trajetória empreendida por Scriabine, resultando os vários estágios do escrever música, só poderia ser compreendida entendendo-se a amálgama compositor-pensador. Pasternak relata a partida de Scriabine rumo à Suíça, onde permaneceria alguns anos. É de 1904 um texto do compositor, escrito em um café perto de Genebra: ‘Tudo é minha criação. Eu não sou nada. Eu sou unicamente o que crio. Tudo que existe, existe apenas em minha consciência’.

Na medida em que, por processos inusitados, Scriabine caminha, o distanciamento se processa em relação às técnicas composicionais da juventude, sendo praticamente impossível entender-se como sendo do mesmo compositor Prelúdios e Mazurkas dos primeiros anos e os Poemas, Sonatas e Estudos escritos nas fronteiras da morte. Sob outra égide, o pensador em aceleração contínua e em plena vibratilidade delirante estabelece um elo com o Criador, em sendo ele, Scriabine, o Criador: ‘eu vos exalto à vida através do meu carinho e do charme misterioso de minhas promessas (…) eu sou o centro do universo e o universo está perto do centro’ (‘Cahiers inédits’ 1904-5). Curiosamente, os elos que fazem entender serem do mesmo compositor obras de períodos díspares são os do idiomático pianístico ou aqueles constituídos pelos motivos neurótico-obsessivos, separados entre si pelos silêncios (pausas), com o decorrer dos anos cada vez mais angustiantes.

Se as reminiscências de Bóris Pasternak afloram, deixando transparecer evocações precisas, objetiva e subjetivamente, a respeito de um de seus ídolos, alguns aspectos desse passado distante podem remeter ao levantamento de questões e à formulação de hipóteses: que razões, conscientes ou não, teriam levado Pasternak a abandonar a música? O conservadorismo que levou Pasternak a criticar – apesar da diferença etária, frise-se – os ‘novos meios de expressão’ de Scriabine e de outros autores não refletiria o pensamento sacralizado da maioria da sociedade a que pertencia e que consumia a cultura plena de conteúdos ocidentais ligados à tradição? O ressentimento quanto a Alexandre Scriabine não terá origem na inatingibilidade, por parte de Pasternak, ao talento pleno do autor das Sonatas ‘Missa Negra’ e ‘Missa Branca’?

Seria possível visualizar Bóris Pasternak ouvindo Scriabine a executar ao piano fragmentos reduzidos da Terceira Sinfonia ou ‘Divino Poema‘ op. 43 nas dachas perto de Moscou. Imediatamente antes, compusera os oito Estudos op. 42, plenos da mais ampla virtuosidade.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, os Estudos op 42 nº 1 e  nº 5 (Affanato) na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

https://www.youtube.com/watch?v=Z1UvhEy0N0w

Saliente-se ter sido Scriabine pianista de méritos a executar, preferencialmente na Rússia e na Europa, composições suas. Permaneceriam na mente de Bóris Pasternak a qualidade pianística singular e a criatividade fulgurante de Scriabine. O ‘eu tocava pessimamente e lia música como criança aprendendo a soletrar’ e a certeza de que o criar música – entenda-se compô-la mostrava-se em discrepância com o fazer música – entenda-se executá-la – poderia ter sido diferentemente absorvido por Pasternak se o modelo sonoro scriabiniano registrado na adolescência, bidimensionado criação-práxis, não tivesse sido tão mágico. O abandonar a música mereceria ser repensado como fruto da impossibilidade do nivelamento.

Pasternak ouvia a música russa e a ocidental que se tornaram familiares. O seu ouvido aceitaria essencialmente mensagens do código romântico pleno. Scriabine, na sua trajetória místico-criativa, que o leva a uma escrita ousada, distancia-se dessa escuta sacralizada por Pasternak. Se este entende a ‘fase intermediária’ das terceira e quinta Sonatas, paradoxalmente capta conteúdos de obras bem anteriores e plenas da mais intensa exacerbação emotiva – como os Estudos op. 8 e os Prelúdios op. 11 – como totalmente contemporâneos’, quando de fato já não o eram. A criatividade de Scriabine, fruto do amálgama ascensão em direção ao Cosmos-Música, fá-lo atingir níveis do mais preciso vanguardismo nos anos que antecederam a sua morte. O próprio Scriabine dos últimos Poemas e Sonatas disso tinha consciência e, ao tocar em público em sua consagrada carreira de pianista, dava à plateia a oportunidade de ouvir preferencialmente suas criações anteriores, romanticamente comprometidas, portanto. Bóris Pasternak seria assim o exemplo desse ouvinte, pronto a captar mensagens da mais intensa comunicação.

O ‘lado negativo da influência’ de Scriabine, que levaria talvez ao ressentimento, seria a somatória da inacessibilidade ao talento excelso musical e a certeza de que um carisma etéreo, do qual Scriabine era possuidor na sua vontade de expor ideias místico-filosóficas, impusera sentimentos de difícil resolução para o escritor. A respeito da ‘certeza’ conceitual característica de Scriabine  ‘apenas ele poderia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas para ele próprio’, ou ainda o lado ‘miraculoso e premeditado, nada planejado, deliberado, desejado’, conteúdos do ‘negativo’ que ficou como influência do compositor ; Pasternak evidenciaria de um lado o poder carismático de Scriabine, de outro o sentimento frustrante da distância do pensar entre os dois, mercê do ‘egocentrismo’ do autor do ‘Poema Satânico’.

Alexandre Scriabine permanece, talvez, como o mais criativo compositor russo do século XX, sem ligações definidas com ascendentes criadores da Rússia, tampouco deixando imitadores ou discípulos. Morre em 1915 e os pósteros da Revolução de 1917 negligenciam-no nos primeiros anos, pelo fato de ter sido Scriabine um compositor com olhar aristocrático. Contudo, no momento em que o Ocidente se fascina por Scriabine, através, sobremaneira, das ações pianísticas fulgurantes de Vladimir Horowitz e Vladimir Sofronitsky, este na Rússia, tornou-se útil ao regime soviético divulgá-lo e, diga-se, fizeram-no na excelência até os estertores do Sistema.

Bóris Pasternak morreu em 1960. No velório, uma última manifestação sonoro-fascinante sobre seu corpo imóvel. Sviatoslav Richter, um dos mais completos pianistas russos, tocou durante o dia e parte da noite obras de Scriabine num piano de armário colocado bem próximo ao esquife”.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Feuillet d’album”, op. 45 nº 1, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M

In this third post I comment on the magnificent account given by Boris Pasternak about Scriabine published in the two previous posts, raising hypotheses about the effective influence of Scriabine in the future steps of the author of Dr. Zhivago.

Continuação do texto de Bóris Pasternak

A experiência interior ou psicológica não constitui
um compartimento particular de experiência ao lado de outras:
é em geral uma experiência espontânea.
Alexandre Scriabine (“Carnets inédits”, nº 1, 1904)

Dando continuação ao testemunho de Bóris Pasternak, neste segundo post o escritor russo, já na maturidade, considera a importância de Alexandre Scriabine na música. Esse olhar, que vem da infância e comunga durante um período da vida de Pasternak com estudos de música e composição, chega a termo quando opta pela literatura, que o consagraria. Não obstante, a música teria substanciado sua formação literária. Seu “distanciamento” em relação às últimas composições de Scriabine, fase em que a ascensão mística do compositor o faz “amalgamar” a nova escrita musical à visionária senda em direção ao Cosmos, ratifica a plena adesão de Pasternak ao gosto romântico majoritariamente aceito pela sociedade do período, este expresso nas criações de Scriabine ainda na juventude da idade madura. Bóris Pasternak demonstra que  dilemas existiram antes da certeza final de uma vocação literária.

“Sempre tivera inclinações místicas e supersticiosas e um ardente desejo de avisos sobrenaturais. Começara a crer num mundo heroico que necessitava de minha participação entusiasta, embora esta fosse fonte de angústia. Quão frequentemente, aos seis, sete ou oito anos, estivera à beira do suicídio! Imaginava-me cercado de toda sorte de mistérios e mentiras. Não havia absurdo em que não acreditasse. Houve momentos na aurora da vida – única época em que tais tolices são concebíveis – em que me imaginei (talvez porque pudesse lembrar minha babá vestindo-me as primeiras camisolas) já me haver vestido como menina, acreditando poder recuperar esta personalidade mais agradável, mais fascinante apertando tanto o cinto até quase desmaiar. Em outras ocasiões, pensava não ser filho de meus pais, mas um enjeitado por eles adotado.

Assim, razões tortuosas e imaginárias – oráculos, sinais, presságios – afetavam minhas desditas como músico. Faltava-me ouvido absoluto, o que era de todo dispensável em meu trabalho, mas considerei a descoberta triste e humilhante, prova de que minha música era rejeitada pelo céu ou pelo destino. Esmoreci, sem forças para enfrentar tais golpes. Por seis anos vivera para a música. Agora, rasguei-a e arremessei-a longe, como alguém a despedir-se de seu mais caro tesouro. Por algum tempo persistiu o hábito de improvisar, mas perdi gradualmente minha habilidade. Decidi-me, então, por um rompimento total: deixei de tocar piano ou de ir a concertos, evitando encontrar-me com músicos.

Scriabine, em sua defesa do super-homem, era extensão de sua Rússia natal, ansiando pelo superlativo. Na verdade a música, como tudo, precisa supera-se para ter algum significado. Deve haver algo ilimitado no ser humano e em sua lida para que ambos tenham definição e caráter.

Diante de minha ruptura com a música e de meu fracasso em acompanhar seu desenvolvimento, o Scriabine de minhas reminiscências – que costumava ser meu pão de cada dia – é aquele do período intermediário, aproximadamente entre sua terceira e quinta sonatas. Para mim, o fogo de Prometeu de seus últimos trabalhos não é alento diário para a alma, mas mera evidência adicional de seu gênio. Isto me é dispensável; acreditei nele desde o início.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1912), criação da última fase scriabiniana, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

Homens que morreram cedo, como Andrey Bely e Khlebnikov, passaram os últimos anos de suas vidas buscando novos meios de expressão, sonhando com uma nova linguagem, tateando por suas vogais, consoantes e sílabas. Nunca entendi a necessidade desse tipo de pesquisa. Acredito terem sido as mais surpreendentes descobertas feitas no momento em que o artista estava de tal forma possuído pelo espírito de sua obra que, sem tempo para pensar, foi levado por sua urgência a dizer palavras novas na língua antiga, sem se perguntar se era jovem ou velha. Foi como Chopin, usando o velho idioma de Mozart e Field, disse tantas coisas novas em música que, com ele, ela parece ter tido um novo começo. E também assim foi que Scriabine, muito cedo em sua carreira e usando quase nada além dos métodos de seus antepassados, mudou e renovou o clima da música. Desde os Estudos Opus 8 e os Prelúdios Opus 11, seu trabalho já era totalmente contemporâneo, tendo uma correspondência interna, em termos musicais, com o mundo lá fora, com o modo como as pessoas pensavam, sentiam, viviam, vestiam-se e trabalhavam naquele tempo.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine. o Estudo op. 8 – nº 12 (Patetico), criação de 1894, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Naquelas composições, as melodias começam como lágrimas aflorando a nossos olhos e, como essas, resvalam por nossa face até os cantos da boca. Fluem através de nossos nervos e coração, nascidas não de pesar, mas de assombro por haver sido o caminho para nossa emoção tão completamente desvelado. Súbito, irrompe no fluxo da melodia uma resposta a isso, uma objeção com outro timbre, mais alto, feminino e num tom mais simples, coloquial. O argumento fortuito resolve-se imediatamente, deixando atrás de si a lembrança, opressivamente perturbadora, daquela simplicidade da qual em arte tudo depende.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a Valsa op. 38 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

A arte é plena de verdades consagradas que, embora ao alcance de todos, raramente são aplicadas com propriedade. Uma verdade bem conhecida necessita, para ser posta em prática, de um acaso feliz, do tipo que acontece uma vez em cada século. Scriabine foi esse acaso. Como Dostoievsky foi mais do que mero escritor e Blok, mais do que mero poeta, assim Scriabine foi mais do que simplesmente um compositor – ele é motivo eterno para júbilo e congratulação, uma festa, uma celebração na história da cultura russa”.

No próximo post publicarei meu texto “Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”, também inserido no “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho 1996, editado por Cláudio Giordano. Nele teço considerações sobre o sensível depoimento de Pasternak, entre outros posicionamentos de interesse.

Going on with Boris Pasternak’s account of his acquaintance with Alexander Scriabine, the author of Dr. Zhivago discusses — among other things — his preference for the early works of his fellow countryman.