Recordações de Bóris Pasternak

Scriabine era um criador visionário e um místico.
Tudo o que criava, vivia, sentia, pensava
instalava-se a partir de uma experiência interior de caráter místico,
pois essencialmente incomunicável na realidade e que, entretanto,
ele se esforçava em transmitir,
tanto em sua obra musical como em seus escritos poéticos,
em suas teorias, seus projetos e em suas conversas
com aqueles que poderiam compreendê-lo.

Marina Scriabine (1911-1998) – musicóloga e filha do compositor

Neste ano comemoram-se duas efemérides de relevantes compositores, o sesquicentenário do compositor russo Alexandre Scriabine e o centenário de Gilberto Mendes, este, tema dos dois posts anteriores. A respeito de Scriabine, ao longo dos blogs desde 2007 reiteradas vezes escrevi neste espaço sobre o importante contributo do compositor e pensador russo na música como um todo.

Estava a reorganizar os meus livros quando me deparo com uma pequena publicação com nome sugestivo. Tratava-se de “Nanico – homeopatia cultural”, criação do prezado amigo e editor Cláudio Giordano. Neste em especial, nº 13, de Junho de 1996, há um artigo extraído de “An Essay in Autobiography” escrito por Bóris Pasternak (1890-1960), autor do célebre “Doutor Jivago” e Prêmio Nobel de Literatura em 1958. Recordo-me de ter conversado com Giordano, que imediatamente se interessou em vê-lo publicado, com tradução cuidadosa de nossa dileta amiga Regina Maria Pitta.

Pensei retransmiti-lo aos leitores, 26 anos após, por motivos precisos. A publicação do excelente “Nanico” era restrita e o texto de Pasternak, sendo revelador de alguns aspectos essenciais nesse cotidiano vivido pelos dois personagens, possibilitou uma maior abrangência sobre o já vasto material literário e analítico a respeito de Scriabine.

Devido à dimensão dos posts, divido o texto de Pasternak em dois, inserindo num terceiro aquele que vem logo após, igualmente publicado no mesmo número e de minha pena.

“Na primavera de 1903, papai alugou uma dacha perto de Maloiaroslavets, no caminho da ferrovia Briansk (agora conhecida como Linha Kiev). Coincidiu que Scriabine fosse nosso vizinho. Até então não o conhecíamos muito bem. As duas casas, algo distantes, ficavam ao lado de uma clareira numa colina. Chegamos, como de hábito, pela manhã bem cedo. O sol, filtrando-se pelos galhos baixos que se debruçavam sobre nosso telhado, penetrava pelas janelas. Dentro, embrulhos foram abertos e alimentos, roupas de cama, frigideiras e baldes surgindo. Escapuli para a mata.

Deus, quão pulsante aquele bosque matinal! A luz do sol trespassava-o por toda parte. Sombras trêmulas embalavam seu cimo num vaivém e do emaranhado de galhos vinha aquele sempre inesperado, sempre estranho chilrear de pássaros, que começa com chamados altos, abruptos e, extinguindo-se gradualmente, repete, em sua insistência, a alternância fugidia de luzes e sombras na distância. E acompanhando a sucessão de luzes e sombras e o cantar e agitar dos pássaros pelos galhos, fragmentos da Terceira Sinfonia ou Divino Poema, composto ao piano na casa ao lado, propagavam-se e ressoavam através da mata.

Senhor, que música! Sucessivamente a sinfonia ruiu como uma cidade bombardeada e foi reconstruída, renascendo dos destroços. Seu sistema, arduamente elaborado, enchia-a até transbordar e era novo – como era nova a floresta, respirando vida e frescor, vestida de primavera naquela manhã de 1903 – não 1803, lembre-se! E assim, como na mata não havia uma única folha artificial, também a sinfonia era livre de profundidade falsa, de retórica solene, nada que soasse como Beethoven, ou Glinka, ou Ivan Ivanovich ou como a Princesa Maria Alexevna; ao contrário, seu trágico poder empinava o nariz em triunfo a tudo o que fosse respeitável e majestosamente decrépito e enfadonho, mostrando-se perniciosamente ousada, livre, frívola e essencial como um anjo caído.

Espera-se, do homem que componha tal música, que conheça a si próprio e que, em horas de lazer, seja tão tranquilo e luzente como Deus descansando no sétimo dia; e tal ele provou ser. Scriabine e meu pai frequentemente caminhavam pela estrada que passava não muito longe de nossa casa. Às vezes eu os acompanhava. Scriabine gostava de tomar impulso e depois saltar pela estrada como se, a qualquer momento, fosse deixar o chão e planar no ar. De um modo geral, desenvolvera formas várias de leveza extrema e movimentos ágeis, parecendo prestes a alçar voo. Em seu caráter, essa habilidade manifestava-se no charme bem educado e na maneira mundana de adotar um ar superficial, evitando assuntos sérios em sociedade. Mais surpreendentes eram seus paradoxos durante esses passeios pelo campo.

Conversavam, ele e meu pai, sobre o bem e o mal, a arte e a vida. Ele atacava Tolstoi e pregava o homem superior e amoral de Nietzsche. Concordavam apenas quanto à essência e aos problemas do fazer artístico; discordavam em tudo o mais. Na época eu contava doze anos. Metade de suas discordâncias estavam além de minha compreensão. Mas Scriabine conquistou-me pelo frescor de sua mente. Idolatrava-o. Concordava sempre com ele, mesmo ignorando o que queria dizer. Logo ele partiu para a Suíça, onde acabou ficando por seis anos.

No outono sofri um acidente que nos manteve no campo mais tempo do que o normal. Papai pintava a tela Pastagens Noturnas. Era uma cena de meninas de uma vila próxima, Bocharovo, cavalgando ao crepúsculo, a conduzir cavalos em direção aos prados úmidos ao pé de nossa colina. Uma tarde acompanhei-as, mas meu cavalo desembestou e, quando pulou um riacho, caí e quebrei a perna. Fiquei com uma perna mais curta do que a outra e, em consequência, fui dispensado do exército em todas as convocações.

Mesmo antes daquele verão arranhara um pouco o piano, conseguindo juntar alguns poucos sons de minha autoria. Agora, após meu encontro com Scriabine, desejava ardentemente compor. Naquele outono comecei a estudar teoria da composição, dedicando-me a ela durante meus seis anos restantes na escola. Trabalhei com o admirável Engel, crítico musical e teórico, e mais tarde com o professor Glière.

Ninguém tinha a mínima dúvida sobre minha vocação. Meu caminho estava traçado. Meus pais ficaram encantados com minha escolha profissional; a música seria meu destino e toda sorte de ingratidão para com eles, cujos sapatos eu era indigno de desamarrar, qualquer desobediência, negligência ou excentricidade minha passou a ser perdoada por esse motivo. Mesmo se flagrado às voltas com algum problema de fuga ou contraponto em classe, um livro de música aberto na carteira em plena aula de Matemática ou Grego, ou quando boquiaberto como um paspalho se algo me era perguntado, toda a classe vinha em minha defesa e os professores toleravam meus defeitos. E, ainda assim, desisti da música.

Desisti dela no exato momento em que tudo fazia crer estar no caminho certo e congratulações choviam sobre mim. Meu deus retornara; Scriabine voltara da Suíça trazendo suas últimas composições, entre elas O Êxtase. Foi recebido em triunfo por toda Moscou. No auge das festividades visitei-o, mostrando-lhe minhas peças. Sua reação superou todas as expectativas: escutou-me, aprovou-me, encorajou-me e abençoou-me.

Ninguém conhecia, porém, minha angústia secreta e, tivesse ela sido revelada, não me teriam acreditado. Eu progredia como compositor, mas tocava pessimamente e lia música como uma criança aprendendo a soletrar. A discrepância entre meus temas musicais, originais e difíceis, e minha falta de habilidade técnica transformou a alegria de um dom natural num tormento, até que não mais pude suportá-lo.

Como pôde tal coisa acontecer? Havia algo intrinsicamente errado em minha atitude, algo que merecia castigo. Eu tinha a arrogância adolescente, a presunção niilista dos tolos, que desprezam tudo o que parece acessível, tudo o que pode ser ‘obtido’ com aplicação. Considerava o esforço pouco criativo. ‘Na vida real’, pensava, tudo deve ser miraculoso e predestinado, nada planejado, deliberado, desejado.

Esse foi o lado negativo da influência de Scriabine em mim. Tomei-o como mestre supremo, sem imaginar que apenas ele podia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas a ele próprio. Desentendi-o infantilmente, mas as sementes de seu pensar haviam caído em solo fértil”.

Bóris Pasternak se dedicaria aos estudos musicais de 1904 a 1910. Compôs algumas obras. No belo Prelúdio nº 2 a influência de Scriabine é evidente.

Clique para ouvir, de Bóris Pasternak, “Prelúdio nº 2”, na interpretação de Eldar Nebolsin:

https://www.youtube.com/watch?v=y8nzjPhTXzY

No próximo post publicarei a segunda parte deste texto, na qual Pasternak avalia obras de fases distintas de Scriabine.

While rearranging my bookshelves I found a small publication edited by Cláudio Giordano in June 1996, “Nanico, cultural homeopathy”. It contained a testimonial by the famous Russian writer Boris Pasternak about his relationship with composer Alexandre Scriabine. His childhood memories remained intact. Pasternak’s account is worth reading, but due to its length I chose to divide it into two parts, the second to be posted next week.

Os livros do notável compositor

Eu serializo instantes musicais das músicas de todos os gêneros,
estilos, épocas, lugares. E componho em cima.
Uma música experimental, mas à minha maneira.
Um experimento com linguagens, combinatório,
visando uma nova linguagem para um momento novo,
atemporal e globalizado.

Gilberto Mendes
(“Viver sua Música – com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevsky”. 1994)

No âmbito do Festival Gilberto Mendes, que festeja o centenário de seu nascimento, está programado para hoje, dia 14 de Outubro às 18:30, no Teatro Guarany, em Santos, um “bate-papo” sobre a obra literária de Gilberto e seu legado nessa área sensível. Flávio Viegas Amoreira, Manuel da Costa Pinto, Márcio Barreto e Zé Tahan irão expor suas posições sobre o importante legado literário de Gilberto Mendes. Haverá igualmente o lançamento do livro do escritor, poeta e crítico literário Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” (2ª edição). Sinto-me honrado de ser autor do posfácio “Gilberto Mendes frente ao intérprete – Estímulo, ideia, criação e interpretação” (Santos, Imaginário Coletivo, 2022).

Quatro obras do notável músico santista foram resenhadas neste espaço (“Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo, Edusp-Giordano, 1994, 13/10/2007; “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Santos-São Paulo, Realejo-Edusp, 2008, 04/04/2009; “Danielle em Surdina, Langsam”. São Paulo, Algol, 2013. 06/04/2013; “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges. Santos, Realejo, 2019. 10/07/2021).

É notório o caminho seguido por Gilberto ao longo de seus livros. Sem ter sido um teórico autor de tratados, mas frequentando diversas tendências composicionais, como poderia se deter em determinada técnica se o dom maior de Gilberto era a curiosidade, o encantamento pelo que se lhe apresentava, não apenas os processos de alguns de seus coetâneos ilustres, mas também de músicas que ouvia vindas de outras geografias e que o seduziam. Nos nossos tempos uspianos quantas não foram as vezes em que me alertou contra as igrejinhas, núcleos de compositores que produzem e se satisfazem nos guetos. Gilberto não se indispunha contra correntes, era um cidadão em paz.

Estou a me lembrar da trajetória do primeiro livro. Estávamos em 1990 e um certo dia Gilberto confessa que gostaria de se aposentar tendo defendido uma tese. Àquela altura a aposentadoria se dava aos 70 anos. Sugeri-lhe escrever sobre o seu caminho tão luminoso. Hesitou inicialmente, mas lentamente iniciou o exaustivo trabalho acadêmico. Insisti que, sendo tão imensa a sua posição na música brasileira, bastaria a narrativa exata dos fatos, almejos, criações e relacionamentos acumulados durante a existência. Confessar-me-ia, reiteradas vezes, que a exaustão o acometia e que não fosse a prestimosa colaboração de Eliane, sua dedicadíssima esposa, dificilmente teria forças para a recolha e seleção de vasto material. A redação iniciada por vezes era interrompida. O tempo a passar e por vezes este amigo a telefonar pedindo-lhe seguir escrevendo. Em duas ou três oportunidades evidenciou discreto incômodo com os meus apelos. Sabia eu da importância de sua tese para a literatura musical brasileira. Enfim, no limite do tempo defendeu-a com brilhantismo e eu tive o privilégio de estar na banca examinadora que contou, entre outros professores relevantes, com a presença do ilustre poeta, tradutor e crítico literário Haroldo de Campos.

Meses após Gilberto me diz que ficaria muito feliz de ver sua tese publicada. Procurei a diretoria da EDUSP. Disseram-me que o meu livro “Henrique Oswald – músico de uma saga romântica” tinha sido aprovado pela Comissão Editorial. Afirmei que esse poderia esperar e que urgia a aprovação – impossível não acontecer – do livro do Gilberto Mendes. Submetido à primeira reunião a seguir as conversações, foi aprovado e publicado em 1994 (Edusp-Giordano). Quanto ao meu Henrique Oswald, a publicação se daria no ano seguinte. Como não se comover com as palavras de Gilberto na página dos agradecimentos de “Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”, livro fruto da tese de doutorado: “Especialmente a José Eduardo Martins, que conseguiu extrair de mim este trabalho. Sem o seu incentivo não o teria feito”.

Quatro anos mais tarde a Edusp publicaria “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Se na “Odisséia…” Gilberto revela um sem número de recordações, musicais ou não, que são fundamentais para o entendimento de período efervescente da criação musical no Brasil, com várias correntes por vezes se antagonizando, em “Viver sua Música”, liberto de certas amarras necessárias “impostas” para uma tese acadêmica, Gilberto continua a rememorar, mas encantam-no sobremaneira as terras andadas, seus personagens, sejam ilustres ou não. Um segmento me sensibilizou, revelador de uma das qualidades essenciais de Gilberto, a ternura e a imediata associação a um de seus ídolos, Stravinsky. Estando em Moscou, um dos locais icônicos visitados dentre o imenso campo geográfico percorrido, mormente quando teve obras apresentadas, ele registra:

“A maior emoção minha, nos meus dias de Moscou, foi no passeio a um campo de pioneiras, como eram chamadas as adolescentes que ali passavam parte das férias, no verão, em meio às características datchas dos arredores da cidade. Duas meninas me pegaram pelas mãos e me levaram para mostrar as variadas dependências do acampamento. Paramos num barracão para assistir um pouco ao teatrinho de fantoches que estava sendo representado. E eis que entra em cena, de repente, um novo boneco, e uma das meninas, apontando o palco, exclama, toda feliz: Petruchka! (Petruchka é uma boneca. Петрушка em russo. Ballet de Stravinsky composto em 2011. Nota J.E)

Foi um momento epifânico, de êxtase, ouvir esse nome mágico, emblemático, na voz de uma menina russa ao meu lado, segurando minha mão, na própria Rússia! O momento em que me senti realmente, profundamente, no coração da Santa Rússia de Stravinsky, de Dostoievsky, Eisenstein, do Poema Pedagógico de Makarenko!”

Nonagenário, Gilberto tudo dissera, ou quase tudo. Sente-se livre e a imaginação sobrevoa outros domínios que jamais dele se separaram desde os primeiros anos, como o encantamento pela invenção. E surgem pequenos livros, depositários de histórias outras decorrentes da inventiva. Nessa senda encantatória renova o prazer criativo. Surgem: “Danielle em Surdina, Langsam” (2013) e “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” (2019), sendo que os fatos narrados nesse último ele vivenciou, mesmo não sendo um dos personagens.

Gilberto Mendes permanecerá. Apesar do breve recuo do tempo, foi imensa a sua contribuição para a música brasileira. Metaforicamente comparo-o ao navegante que permanece temporariamente em portos determinados. Em cada escala Gilberto absorveu e criou, a atender sua admiração por determinada tendência, mas a curiosidade fê-lo navegar e tantas outras tendências, assimiladas em cada porto, o encantariam e levariam a novas criações. Essa descontração criativa, fruto da perene curiosidade, tornou-o um amante das obras dos grandes mestres da música erudita do passado, mas igualmente um admirador das big-bands norte-americanas, da autêntica música popular brasileira e de ritmos de outros portos. Sempre a navegar no imaginário, Gilberto jamais deixou de ter em sua bússola a direção ao porto seguro, sua Santos eterna nos braços de “minha mulher Eliane, que se tornou uma segunda mãe”.

É Gilberto Mendes o nome maior de nossa música a partir da metade do século XX? É-o, na medida em que frequentou com competência várias das tendências composicionais vigentes. É-o por ter, como todos os grandes mestres, imprimido suas impressões digitais em todas as suas criações. É-o no resultado auditivo, pois, assim como os grandes de antanho, sabe-se que tal composição é de Gilberto Mendes.

Aproveito o post atual para anunciar o recital que se dará no Ateneu Paulistano, em São Paulo, no sábado dia 22, oportunidade em que será apresentado o livro de Flávio Viegas Amoreira, mencionado no início deste. A anteceder o recital, o literato santista tecerá considerações sobre o conteúdo de seu livro.

Going on with the celebrations of composer Gilberto Mendes’ birth centennial, there will be on the 14th, at Guarany Theatre in Santos, a round table on Gilberto’s literary work. In this post I make comments about his four books, all of them reviewed in this space over the years. I also announce the recital that I will give on the 22nd of this month at the Ateneu Paulistano in São Paulo, on which occasion the book written by Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – biographical notes”, will be launched, with a postscript signed by me describing the 30 pieces that Gilberto Mendes dedicated to me during our intense friendship. I have presented them in several European countries.

Santos festeja seu compositor maior

Estilo é técnica. Uma técnica serve a um só estilo, do qual é consequência.
Ou bem ou mal, com muito ou pouco estudo das técnicas
– vale dizer estilos –
de composição, acabaremos, através do trabalho constante, adquirindo, construindo nosso estilo,
nossa técnica particular para esse estilo.
Gilberto Mendes
(“Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”, São Paulo, Edusp – Giordano, 1994)

As comemorações em torno do centenário de Gilberto Mendes são motivo de orgulho para o Brasil, pois Gilberto Mendes foi sem dúvida um dos mais importantes compositores pátrios da segunda metade do século XX. Livre das amarras que o poderiam aprisionar a uma só corrente musical, Gilberto Mendes navegou por várias técnicas composicionais. Academicismo inicial, rigor dos ensinamentos aprendidos em Darmstadt, minimalismo e, a preponderar, o amor ao descortino das correntes outras, foram fatores fulcrais para a sua criatividade plena.

O Festival Gilberto Mendes que se inicia no dia 7 de Outubro em Santos traz diversificação a evidenciar as muitas facetas de Gilberto Mendes. Tenho o privilégio de abrir as festividades musicais a partir de um recital em que apresento não apenas dez criações de Gilberto, mas igualmente obras de autores que permaneceram como ícones para o compositor.

https://www.santos.sp.gov.br/?q=hotsite/centenario-gilberto-mendes

Do livro de Flávio Viegas Amoreira, ilustre escritor, poeta e crítico literário, “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” que terá em sua segunda edição a ser lançada no dia 14 (vide programação) um artigo em que historio as 30 peças para piano que tive o privilégio de ser o dedicatário e de apresentá-las em público em primeira audição, retirei as apreciações que figuram no texto anexado à obra do autor santista e que se referem às 10 músicas programadas para o recital de abertura do importante Festival.

“Poderia dividir em dois grupos as composições que Gilberto me dedicou. Num primeiro grupo, vinte criações compostas entre as décadas de 1940-1950 e, num segundo, dez peças escritas a partir de 1985, para as quais o estímulo de minha parte provocaria a recepção plena de Gilberto. Todas têm uma história e, ao narrar, a origem das criações ficará documentada, mercê do convite do ilustre Flávio Viegas Amoreira para que escrevesse este anexo e, pela imensa admiração que ambos temos pela obra e trajetória de um grande amigo e incomensurável mestre, Gilberto Mendes.

Nas várias viagens a Santos no período de nossa docência na USP não poucas vezes visitei Gilberto. Certa vez, ao almoçar em seu apartamento indaguei-lhe sobre suas obras para piano de antanho. Disse-me sem hesitar que não se interessava por elas, pois faziam parte de uma fase remota, que estavam bem embrulhadas e guardadas em um baú. Tendo insistido, Eliane, sua esposa sempre atenta, convenceu-o a me mostrar aquelas criações. Deparei-me de imediato com o manuscrito, já bem envelhecido, da ‘Sonatina Mozartiana’, datada de 1951. Fui ao piano e decifrei-a diante do casal. Ao finalizar, Gilberto a sorrir afirmou: ‘Não é que ela é bonita!’. Fui lendo as outras obras e sugeri apresentá-las in totum no Festival Música Nova. Relutou inicialmente, mas encorajado por Eliane, aquiesceu. Interpretei-as todas em primeira audição em sua Santos, durante o referido Festival  (26/08/1991). Em seu substancioso livro ‘Uma Odisseia Musical – dos mares do sul à elegância da pop/arte-déco’ (São Paulo, Edusp, 1994), Gilberto escreve: ‘Ainda com referência ao pianista José Eduardo Martins, que já me encomendou tantas músicas, sou-lhe grato por haver tocado toda a minha obra inicial, do período de minha formação praticamente autodidata, que estava esquecida nas gavetas. Cheguei muitas vezes, a pensar em jogá-la fora. Mas alguma coisa me segurava, seria como jogar parte de minha vida, e nunca fui de rupturas com o passado’. Dessas obras, apresento habitualmente no Exterior a encantadora ‘Sonatina à la Mozart’, tendo gravado em 1996 em Sofia na Bulgária e incorporado posteriormente no CD “Retour à l’Enfance” (França, Esolem, 2019). Ao sair na Bélgica a edição da partitura, Gilberto entregou-me um exemplar com as palavras: ‘Com meus agradecimentos por esta descoberta arqueológica, e meu grande abraço sempre amigo’ (16/04/2003).

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, “Sonatina à la Mozart” na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ZO0-u5kU5c4

Foi a partir de 1985 que as ‘encomendas’ surgidas em conversas, nas quais algum evento, data comemorativa ou peça tombeau eram temas habituais, que, nasceriam dez novas criações de Gilberto Mendes, algumas integrando hoje repertórios de vários intérpretes brasileiros e do Exterior. Algumas têm o culto ao minimalismo, ‘um gosto meu pela estrutura musical estática, repetitiva’, d’après Gilberto.

Em 1985 fui o responsável por um caderno de oito composições a homenagear o notável compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931). Publicado pela USP, teria todas as composições em xerox dos manuscritos. Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Tsuna Iwami (Japão), Ricardo Tacuchian, Stephen Hartke (Estados Unidos) e Rodolfo Coelho de Souza, aceitaram a proposta. Partindo da consagrada criação ‘Il Neige’! do homenageado, Mignone comporia ‘Il Neige Encore’, Gilberto ‘Il Neige… de nouveau’ e Tacuchian, ‘Il fait du soleil’. No manuscrito autógrafo que recebi, Gilberto escreveria após o título oficial: ‘Quel froid! Mais je suis très bien chez moi… Et les pauvres, les chômeurs…’. A peça de Gilberto é minimalista, “parte do primeiro acorde de Il Neige”, como afirma Gilberto e, apresenta amplificação sonora e motívica nas diversas exposições ao longo dos compassos, através de engenhosa pedalização que leva à reverberação maior a propiciar ao todo uma concepção inusitada.  A primeira audição do caderno se deu durante o Festival Música Nova (São Paulo, MASP, 22/08/1985).

No centenário de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), coordenei a coletânea a ele dedicado, igualmente publicado nas mesmas condições pela USP em 1987. Os dez ilustres compositores convidados enviaram suas contribuições: Camargo Guarnieri, Aurelio de la Vega (Cuba-Estados Unidos), Edino Krieger, Gilberto Mendes, Ramón Barce (Espanha), Mario Ficarelli, Jorge Peixinho (Portugal), Almeida Prado, Roberto Martins, Wilhelm Zobl (Áustria). Apresentei a coleção em primeira audição durante o Festival Música Nova (São Paulo, Instituto Goethe, (23/08/1987). ‘Viva Villa!’ é possivelmente a peça para piano de Gilberto mais gravada e tocada no Brasil e no Exterior. Minimalista, apresenta vários ritmos brasileiros de índole popular utilizados por Villa-Lobos. O autor comenta: “Compus Viva Villa sobre acordes que já tinha prontos – também de um velho caderno de notas – e me pareceu ‘brasileiros’, com algo do Villa, no meu sentir’. Os segmentos não obedecem a rígidas repetições e, como último dos ritmos, Gilberto apresenta o da Bossa Nova. Perguntei-lhe o porquê. A resposta foi imediata: ‘Villa Lobos não teve tempo de vida para aplicá-lo’.

‘Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul’ foi composto em 1988. Gilberto escreve: ‘O pianista José Eduardo Martins me pediu para compor um estudo. ‘Um estudo?’ repeti, aborrecido, já que há muito tempo não componho peças com títulos de formas musicais. Eu não ia compor um estudo, coisa nenhuma! Mas José Eduardo não desiste fácil, muito pelo contrário. E quando menos esperava, lá vinha ele a me pedir o tal estudo, explicava que era para tocar em Potsdam e Berlim, Alemanha Oriental (naquele tempo!), dentro de uma série de estudos que ele estava encomendando a vários compositores. Um dia contra-ataquei. Só se fosse um anti-estudo, algo bem fácil, com notas de valor igual, andante… mas José Eduardo achou ótima a ideia. De fato, sem querer, eu estava esboçando uma ideia musical. E até me pareceu interessante. Não abri mão, no entanto, de deixar a coisa vaga, no próprio título, e imaginei: ‘Eisler e Webern caminham nos mares do sul..’ (São Paulo, Cadernos Musicais, Outubro, 1990). A primeira audição se deu em Potsdam na antiga DDR, no Neuen Palais Sanssouci, aos 31 de Maio de 1989.

‘Estudo Magno, ao Magno professor em sua aula Magna’. A dedicatória foi dada a uma das mais importantes criações de Gilberto para piano. Entendo o ‘Estudo Magno’ como verdadeira obra prima, que faz jus estar entre os mais significativos do gênero em termos absolutos, opinião corroborada por músicos que ouviram a criação em Portugal, França, Bulgária, Romênia, Bélgica, Inglaterra e País de Gales, centros em que apresentei a composição. Historiando, diria que numa de minhas visitas a Gilberto em sua Santos, disse-lhe que fora convidado para a Aula Magna da ECA-USP, mercê de minha aprovação como professor titular. Daria uma palestra no auditório Camargo Guarnieri seguido de um breve recital. Nasceria, pois, o ‘Estudo Magno’, cuja estreia se deu no dia 4 de Março de 1993. São inúmeras as formulações técnico-pianísticas, mormente aquelas concernentes à denominada técnica dos cinco dedos. Gravei-o na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

Clique para ouvir de Gilberto Mendes, Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois, na interpretação de J.E.M.:

338) Gilberto Mendes – Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois! – José Eduardo Martins – piano – YouTube

A amizade entre Gilberto Mendes e Jorge Peixinho era proverbial. Em Dezembro de 1994 Peixinho me escreve lamentando ‘a morte de nosso grande amigo Lopes-Graça’ (1906-1994), consensualmente o maior nome da criação musical em Portugal. Seis meses após era ele, Peixinho que partia. Ao saber do infausto acontecimento liguei para Gilberto. Com a voz embargada teve de desligar o telefone, em prantos. Retomamos minutos depois. Quase dois anos após a morte de Jorge Peixinho, recebi convite para recital de abertura do Orada Hansa Artística que seria realizado no Convento da Orada, em Monsaraz, no Alentejo, em Julho de 1997 e que contaria com a honrosa presença do Presidente da República Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio. Solicitei ao Gilberto um Estudo em homenagem ao nosso diletíssimo amigo Jorge Peixinho. Nasceria o ‘Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois’ in memoriam Jorge Peixinho, obra tombeau que foge aos ditames habituais. Preito sentido de Gilberto através de acordes em forma de coral que percorrem parte considerável do extraordinário Estudo. Elementos rápidos e metamorfoseados, caros na escrita composicional de Peixinho, entremeiam esses lentos acordes, assim como em outros segmentos, lembranças jazzísticas e da música norte-americana simpáticas aos dois compositores desfilam no percurso e, até, citação de passagem existente nos Funérailles de Franz Liszt, por duas vezes sedimentam o apreço ao amigo que se foi. Liszt está presente pois antes da criação dera recital no Museu Benedito Calixto em Santos e interpretei Funérailles. O recital em Monsaraz se deu aos 13 de Julho daquele ano. Gravei esse Estudo na Bulgária para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

‘Étude de Sinthèse’ (2004) teve origem a partir da… síntese. Conversava com Gilberto, já na sua oitava década, sobre um derradeiro Estudo. Disse-lhe que gostaria de uma criação no qual ele colocaria os acordes que mais foram sensíveis em sua produção. Mencionei Wagner, Liszt, Debussy, Scriabine… que tinham lá suas predileções. Pensei receber um Estudo vertical, mas Gilberto os horizontou em forma de arpejos que deslizam… Estudo testamentário? Pode ser, pois sereno, envolvente, generoso como seu criador. Interpretei-o em turnê pela Bélgica, gravando-o em Mullem para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

Consideraria um aspecto que ratifica a abertura de Gilberto Mendes, jamais preso a fanatismos, sejam eles ideológicos ou de tendências composicionais. Frases resumem bem o nosso entendimento e a liberdade que ele proporcionava ao intérprete: ‘A dinâmica entre ‘p’ e ‘mf’, você escolhe, menos no final que é ‘fff’. Tudo bem legato, não obstante eu não tenha feito as arcadas sobre as notas’, ao se referir ao ‘Étude de Sinthèse’. Sob outra égide, nas peças minimalistas, deu-me a liberdade em algumas delas de aumentar ou diminuir as repetições.

‘Largo do Chiado’ tem história singular. Daria recitais em Portugal comemorando 50 anos de meu primeiro recital em solo lusitano, aos 14 de Julho de 1959, na Academia de Amadores de Música em Lisboa a convite do insigne Fernando Lopes-Graça. Conversei com Gilberto e nasceria ‘Largo do Chiado’, breve homenagem do amigo. Composta em Dezembro de 2008, a peça evolui martellato uguale, senza espressione, a evocar nos compassos finais reminiscências do ‘Fado da Severa’, canção caríssima a Gilberto. A estreia se deu durante recital no Convento Nª Senhora dos Remédios em Évora aos 9 de Maio de 2009, interpretando-a a seguir em Tomar e Lisboa. Algumas das obras elencadas, assim como outras não apenas para piano, foram publicadas na Bélgica (Alain van Kerckhoven – New Consonant Music), mercê dos esforços do pianista e professor santista Antônio Eduardo.

Sempre a considerar o intérprete absolutamente necessário, mas num plano secundário em relação a obra a ser apresentada, pois transitório, entendo que determinadas criações através da história jamais viriam à luz se não houvesse o estímulo exterior, seja do intérprete ou vindo de outrem ou ainda de tantos fatores que levam o músico a compor. No meu de profundis apraz-me saber que o estímulo vingou e que fui o mensageiro temporário de todas essas trinta composições. Friso, se talento ou criatividade inexistirem, a criação se perderá no limbo da história. Pode ocorrer a permanência de um compositor durante certas décadas, mas só aqueles que conseguem ultrapassar a arrebentação, amparando-me numa imagem voltada ao mar tão amado por Gilberto, encontrarão o mar infinito. Galhardamente a obra de Gilberto Mendes navega nos ‘mares do sul’ em direção a tantos oceanos imaginários.

Rememorar essas relações musicais é um privilégio que dimensiona o entendimento compositor-intérprete. A corroborar o fato, mencionaria outras maiúsculas criações de Gilberto Mendes das quais participei como pianista: ‘Saudades do Parque Balneário para saxofone alto e piano’, ‘Canções’, ‘Longghorn para trompete, trombone e piano’, ‘Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour’, ‘Concerto para piano e orquestra” e ‘Rimsky’, obra  apresentada em várias cidades da Bélgica com os integrantes do excelente Rubio Kwartet em 2003”.

J.S.Bach, “insuperável”; Franz Liszt, “fenomenal”; Claude Debussy, “fonte da música moderna”, Gabriel Fauré, “daria toda minha obra para ser o autor do Noturno nº4” e Alexandre Scriabine, “o transcendental, o misticismo eslavo contido em Vers la Flamme…”, são cinco de seus compositores eleitos e que povoavam os nossos diálogos. Completarei o recital a interpretar obras desses autores consagrados.

No próximo post comentarei o lançamento de “Gilberto Mendes – notas biográficas”, de autoria d0 ilustre Flávio Viegas Amoreira, livro que tenho o privilégio de participar escrevendo o anexo “Gilberto Mendes frente ao intérprete”. Farei parte da mesa redonda em torno do lançamento.

The city of Santos festively celebrates the centennial of the notable composer Gilberto Mendes. A Festival sponsored by the Santos City Hall will present a series of musical, literary and artistic manifestations in general. I will open the Festival by reading ten of the thirty compositions that Gilberto Mendes dedicated to me over decades of solid friendship.