Recepção ao filme reflexivo

Sempre tive a necessidade não só de tocar,
mas de escrever.
Alfred Brendel (1931- )

Foram inúmeras as mensagens - de músicos ou não - sobre o post anterior. Alguns já tinham visto “A última nota”. Todos os leitores que privilegiam o blog, o que muito me honra, teceram comentários positivos sobre o filme.

Chamou mais atenção o drama enfrentado pelo personagem ficcional, pianista Henry Cole, que, após décadas de carreira consagrada, entende o momento de finalizá-la. Curiosamente, o medo do palco foi pouco mencionado. Ele é real e interrompeu muitas carreiras, inclusive teria sido motivo fulcral para a decisão final de Henry Cole, o pianista protagonizado por Patrick Stewart.

Entre as tantas mensagens, destacaria a do advogado Pedro de Almeida Nogueira, que, ao mencionar uma frase minha interrogativa, constrói um conto pertinente e sugestivo, a abordar uma atividade hipotética. Com a permissão do autor transmito aos leitores o texto citado, pois ao longo da existência assisti a muitos casos de aposentados que exerceram as mais variadas funções e que se afastaram das cidades grandes para viver a tranquilidade em outras bem menores ou ainda no campo, na montanha ou no litoral.

De meu questionamento, surgiu: “Hoje a provocação e o estímulo foram grandes, quando disse: ‘Qual o momento a se pensar no encerramento de uma carreira?’. E escrevi:

QUEM ACREDITA NUM VELHO

Quando o nível de cansaço e estresse chegou ao limite e passou a influir na razão, comecei perder o equilíbrio e, antes de sucumbir, resolvi deixar tudo; os amores, a moradia, a cidade, os amigos, e o trabalho! Abandonei a profissão. Não entreguei os pontos, fui vencido. Sabe do avião em estol? Do motor que funde? Do atleta que cai sem fôlego? Do barco à vela sem vento? Pois bem, qualquer um desses era exemplo de meu estado! Tornei-me irritadiço e não queria mais ouvir explicações. Até desacreditei dos incentivos e fechei a porta do mundo que havia conquistado. Fui ou fugi para um lugar distante e bem modesto, onde não conhecia ninguém. Ali sabia que não seria aconselhado, cobrado, perguntado ou bajulado, nem estava com vontade de conversar.

Queria esse lugar! Onde eu pudesse ser eu nu! Necessitava me conhecer sem influência e sem influir, por isso a intenção de omissão e esconderijo.

Nesse novo lugar e sozinho, não teria que dar satisfações e ter obrigações. Poderia contemplar a natureza sem reserva prévia e a qualquer momento tomar um café sem formalidade, comer sem hora, tomar uma bebida em casa, no botequim, na conveniência ou onde fosse, sem ninguém acompanhando.  Iria ouvir animais e pássaros e não buzinas.

Consegui o lugar muito modesto e no desterro pensei em escrever. Ocupar o tempo com alguma coisa que gosto de fazer e sem obrigação: artigos, poesias, peça teatral e um livro!  Sempre tive muita vontade de escrevê-lo: o tema não faltava. Escolhido, a ele me dediquei dias e noites sem me encontrar. Nunca estava bom; escrevia e apagava com enorme frequência e velocidade de fazer inveja a Penélope. O tempo começou a fazer provocações e a esmorecer o entusiasmo de ficar só. Comecei a me sentir inútil. Comecei pensar na necessidade de tirar o pijama nas manhãs.

O cansaço das atividades desenfreadas de outrora passou e veio a reflexão de que perdera a credibilidade conseguida à custa de muito sofrimento e trabalho dedicado.  A ausência dos filhos e netos começou a incomodar. Por todo lugar que passava via avôs acompanhados. Amigos visitando amigos. Gente jogando conversa fora nos bares e restaurantes. Percebi que o arquivo da memória se descortinava diante de uma simples foto vista até sem querer ou do nome de alguém ouvido por acaso, lembrando-me de um amigo abrindo o palco do passado. Comecei a ter sistemáticas e doces lembranças que só provocam saudades, justo dessas que são só ‘mardade’, como diz Genésio de Arruda. Só agora entendi que estava em solidão, porque no primeiro momento foi gratificante ir ao banheiro com a porta aberta, como disse Antônio Maria, mas com o tempo fui percebendo que estava no mundo dos excluídos. Que lugar cinzento! O que adianta a privacidade estando a sós; muito melhor eram as interferências. Então porque ficar na solidão, se caminho com meus próprios pés? Simplesmente pela perda do elo, da interação com a profissão e a certeza de saber impossível retomá-la. Quem sai tem o lugar preenchido e o substituto impõe novo ritmo, fazendo obsoleta a volta de quem foi. Na vida não há vazios e ninguém é insubstituível.

É verdade que conceitos se incorporam às pessoas e por eles são elas rotuladas, mas com o tempo perdem a validade, principalmente sem o renovar do convívio. Até os conceitos ficam ultrapassados e passam a servir apenas de exemplo ou, quando muito, de apoio para uma afirmação. Sem atividade envelhecemos e perdemos a credibilidade.

Hoje penso que deveria ter lutado contra o stress, pelo menos para não abandonar tudo, e ter esperado pelo momento certo de encerrar a carreira!”

Todos os pianistas têm o seu dia D, programado ou alongado, quanto ao término da carreira, o que não ocorreu com Mônica de la Bruchollerie (1915-1972) e William Kapell (1922-1953), acidentados em estrada (1966) e em queda de avião, respectivamente, ou mesmo Solomon Cutner (1902-1988), que em plena carreira teve problema cardiovascular a comprometer um dos braços, décadas antes de sua morte. Nesses três casos o dia fatal, a encerrar carreiras gloriosas, foi abrupto. Aqueles que prosseguem, mesmo no declínio, são reverenciados pelo público como lendas, apesar de problemas técnico-pianísticos e falhas de memória não raras. Saber o momento de parar reflete ato de sabedoria. Nos primeiros anos deste século, o afinador do Palais des Beaux Arts de Bruxelas, Taki, afinava o piano durante os três dias de minhas gravações em Mullem. Tinha eu sessenta e tais anos e Taki me afirmou que, quando afinava o piano para as apresentações do notável pianista Alfred Brendel (1931- ), este ficava ao seu lado, a observar os mínimos detalhes. Nas nossas conversas, disse-me Taki que Brendel lhe afirmara que encerraria a carreira, em plena forma certamente, aos 75 anos. Finalizou-a aos 77, em 2008. Essa determinação pragmática merece louvor. Ao se aposentar diria que sessenta anos de carreira foram bem suficientes. Ao jornal Daily Telegraph, declararia: “”Mapeei exactamente o que faria quando me aposentasse. Durante muito tempo tive uma vida literária – não um passatempo, uma segunda vida – e é bom continuar a dar aulas e a escrever de uma forma mais focalizada”. Essa determinação expressa por Brendel longe está do pensamento da maioria dos intérpretes, que, indecisos quanto ao afastamento ainda no domínio do teclado, fazem-no por problemas acentuados pela idade, assim como dificuldades motoras outras, perda progressiva da visão ou alteração na audição. Neste caso específico, Sviatoslav Richter (1915-1997) sentiu disfunção auditiva relacionada à exatidão da altura dos sons registrados na partitura.

Empresas e serviço público têm suas regras para que, independentemente da vontade, o afastamento se processe. Para o músico não engajado em qualquer das duas opções elencadas, a decisão individual será a porta aberta para outros caminhos que preencherão a existência ou para a solidão do pensar, que pode levar a um futuro nostálgico. Sob outra égide, se deixou um legado através das gravações ou de textos relevantes, será lembrado pelas gerações de aficionados.

I received countless messages praising the Canadian movie “Coda”. In one of them, the lawyer Pedro de Almeida Nogueira sends a story based on my questioning about the moment of saying farewell to the public. To conclude, I comment further on this decisive moment in one’s career.

 

Um filme a revelar a compreensão do ocaso

Você, pedra no meu caminho,
Você é mais forte do que eu.
Hermann Hesse

Qual o momento a se pensar no encerramento de uma carreira? Mormente no que tange à interpretação musical, onde a presença física frente ao público é basicamente imperiosa, assim como nos esportes, a realidade se apresenta de difícil articulação, mas em determinado instante tem de ser enfrentada.

No que concerne ao músico instrumentista, há variações da perenidade em cena, e “o tempo insubornável”, de que nos fala o grande Guerra Junqueiro, atinge a todos, mas a aceitação da concretude obedece a nuances. Os músicos têm o privilégio da longevidade em suas atividades. O mesmo não ocorre com os esportistas profissionais, cujo desempenho obedece a tempo exíguo, que dificilmente ultrapassa 20% de suas existências. Findos os ciclos esportivos, rememoram durante décadas suas performances, narrativas tantas vezes nostálgicas ou superdimensionadas.

“A última nota” (título original “CODA” – 2019) é um filme que leva à reflexão sobre o tema. Em música, a coda é o epílogo de uma composição musical, tantas vezes apresentando temas ouvidos nas secções anteriores. Dirigido pelo canadense Claude Lalonde e com Louis Godbout como roteirista e consultor musical, tem como ator principal Patrick Stewart e mais as participações de Katie Holmes e Giancarlo Esposito. O filme expõe a situação de um pianista no ocaso voluntário da carreira, acrescido da presença do medo do palco, mormente após uma falha de memória quando já estava a interpretar, diante de um grande público, o virtuosístico final (coda) da 4ª Balada de Chopin. A trágica morte da esposa, Elisabeth, deixa-o longe do teclado durante três anos, fato que dimensiona o receio do retorno. Público e crítica o prestigiam, alheios aos seus dramas. O reencontro com a articulista de importante jornal, Hellen (Katie Holmes), suaviza temporariamente o período soturno que Henry Cole, o pianista ficcional, atravessa. Nos encontros visando a uma entrevista, entremeados com a necessidade imperiosa de Henry de manter-se solitário, estaria a essência das muitas reflexões entre os dois personagens. Henry Cole encontra-se no dilema a apontar para o fim da carreira. Para que a intensidade do tema atingisse o objetivo maior, a acentuar a realidade infalível, poucos foram os atores em ação. O multum in minimo dimensiona o momento inexorável, proposta atingida no cerne. As cenas lentas, prioritariamente acrescidas por obras para piano consagradas em andamentos tranquilos, não teriam sido pensadas para intensificar a sensação da nostálgica e irrefutável decisão do pianista? Há o instante do acontecido, que acentua o temor do final de uma gloriosa atividade. Se episódios inseridos no roteiro já evidenciam a necessidade de interromper a carreira, a “coda” chopiniana estabelece a certeza. A necessidade de buscar paisagens alpinas apenas provoca a reflexão consciente. Não lhe basta o afago do fiel empresário, a considerar que o grande pianista Sviatoslav Richter tocava com a partitura à frente – fato real, após o pianista ter os denominados “brancos” de memória em recitais no Extremo Oriente -, pois a decisão inexorável já estava tomada.

O temor do palco é fato que pode advir em muitos casos. Pianistas relevantes tiveram crises transitórias ou que se prolongaram. Vários seriam os motivos: problemas relativos à memória, insegurança devido a problemas físicos, depressão, idade avançada. Este último raramente tem solução, mercê do fim à espreita.

Em blog bem anterior comentei dois livros fulcrais sobre Le Trac (o medo do palco), do médico Dr. André-François Arcier (France, Alexitère, 1998 e 2004), que estuda pormenorizadamente a situação, suas causas e consequências (vide blog: “O Medo do Palco” (04/10/2008). Dois pianistas relevantes têm frases mencionadas em seus livros. György Cziffra (1921-1994) afirmou que “adentrar um palco é um ato de coragem. É nesses instantes que reside a fragilidade do intérprete. Leva-se uma mensagem que tem de ser passada em hora precisa, por vezes fixada anos antes, sendo um paradoxo que oscila entre a ação de graça e o suplício de Tântalo”. Martha Argerich (1941- ), por sua vez, confessa: “Hoje, eu poderia muito bem deixar de dar concertos. É um ato contra a natureza. O prazer é tão raro. No palco não temos a naturalidade de quando em nossa casa, pois não realizamos os mesmos gestos com as mãos frias, há os joelhos que tremem, o nariz que escorre. A interpretação se modifica. E mais, o peso dos olhares sobre você…”. Glenn Gould (1932-1982) não sentia le trac, mas sim o batimento cardíaco aumentar sensivelmente, causa possível de, a certa altura, dedicar-se unicamente às gravações. Samson François (1924-1970) no final da vida, após carreira meteórica, estava “consciente de ter desenvolvido uma grande apreensão relacionada ao seu estado no dia do concerto”, segundo sua ex-aluna, a pianista Myriam Birger.

Nos encontros de Henry e Hellen há conteúdos enigmáticos da parte do pianista, mas que, no todo, revelam sensibilidade e poética. No diálogo há dizer basilar: “O sucesso esconde falha ou ferida sedimentada. Pode até ficar longe da sua mente, mas estará sempre ali, a operar em plano secundário, à espreita por trás de uma máscara”. Uma rocha nos Alpes Suíços faz Helen relembrar a transitoriedade da vida e a perenidade da pedra, onde não falta menção a Nietzsche. Futuramente Henry visitará a rocha ancestral. Símbolo a sugerir o legado que permanece através das gravações, único meio sonoro de preservação de um intérprete. As frases reflexivas foram pensadamente expressas em lugares bucólicos, provocando uma melhor apreensão.

Henry entende que os compositores alemães são boa companhia e que não teria vivido a adolescência sem Schumann; aliás, o compositor mais presente entre as obras executadas. Na divagação comenta que apenas ele o entendia e que, mais tarde, Beethoven e Bach entrariam na lista de suas opções preferenciais.

“A última nota” é um belo filme, pleno de reflexões sobre a fase decisiva da escolha: continuar ou findar a atividade. Para o músico solista essa decisão pode conter traumas ou aceitação, a depender também de como a carreira foi encaminhada. Há aqueles que, em plena forma, mas com a idade a avançar, fixam bem antecipadamente o término. Outros, de maneira ab abrupto, como a pianista Monique de la Bruchollerie (1915-1972), após acidente automobilístico em 1966 na Romênia.

Sob outra égide, esse término pode estar implícito em outra categoria da atuação. Quantos não são aqueles que, já na quarta ou quinta década, não mais renovam o repertório, repetindo-se até os estertores da carreira? A renovação dos programas é um alento que não descarta a infalibilidade do término, mas possibilita ao intérprete, ao aventurar-se em criações que jamais estiveram em seu repertório, renascer como Phoenix.

A direção do canadense Claude Lalonde, nessa comunhão com o roteirista e consultor musical Louis Godbout, está impecável. Filmes biográficos quase sempre incorrem em inúmeros equívocos. “Coda”, sendo ficcional, é preciso nas abordagens relativas aos dramas dos intérpretes, o que dimensiona a pesquisa do roteirista. A escolha do pianista ucraniano Serhiy Salov para a interpretação de todas as músicas para piano solo foi criteriosa e algumas das execuções são pungentes.

Clique para ouvir, na interpretação de Serhij Salov, a 4ª Balada de Chopin. Precisamente aos 9:58 tem início a coda:

https://www.youtube.com/watch?v=kdHcNXfIFN8

O ator principal, Patrick Stewart, num dificílimo papel, evidencia diversos atributos. Nas inúmeras expressões faciais, universo de nuances que jamais ultrapassa o excesso, o que torna ainda mais complexa a caracterização do sentimento, ou da sua ausência, Patrick Stewart mostra-se um mestre. Katie Holmes revela qualidades sensíveis e são admiráveis suas expressões de admiração pelo entrevistado. Seu recato frente à determinadas negações do pianista revela sempre a aceitação, jamais o desacordo. Insistente, sem importunar o personagem, amando-o discretamente sem buscar retribuição, a atriz está precisa em seu papel. Quanto ao agente de Henry Cole, o ator Giancarlo Esposito, mostra-se incentivador e fiel escudeiro, tão distante da maioria dos que praticam a atividade.

Recomendo vivamente “A última nota” (CODA), um filme que merece ser visto e revisto.

The movie Coda  (in Portuguese “A última nota”) is contemplative and addresses two important aspects of a pianist’s work: stage fright and the inevitable moment of ending one’s career. The work of the Canadian director Claude Lalonde is impeccable and the script by Louis Godbout, who is also the musical consultant, is very well done. The main actor, Patrick Stewart, reveals remarkable qualities in a very difficult role. The same can be said about Katie Holmes in a sensitive and fine performance. As for actor Giancarlo Esposito, he presents himself as a supportive and faithful manager, contrary to most of his colleagues in real life. Concerning the movie repertoire, excerpts from pieces by J.S. Bach, Beethoven, Schumann, Chopin and Scriabin are interpreted by the highly accomplished Canadian pianist (of Ukrainian origin)  Serhij Salov.

 

 

A mente soberana a sobrepor-se ao  gesto mediático

Uma pequena mostra de bravura,
possivelmente numa passagem
que não custou ao pianista
mais de dez minutos de prática,
transformará muitos dos ouvintes irrefletidos
numa multidão que ruge.
Isto é, naturalmente,
muito angustiante para o artista sincero,
que se esforça por se estabelecer pelo seu verdadeiro valor.
Wilhelm Backhaus

Deu-se no segundo lustro dos anos 1950 o recital que tive o privilégio de ouvir, apresentado pelo ilustre Wilhelm Backhaus no Theatro Municipal de São Paulo. Independentemente da récita impecável, ficou-me igualmente a lembrança de seu primeiro contato com o teclado, pois realizou “aquecimento” em poucos segundos, através de alguns acordes e arpejos, numa preparação “tonal”, para logo a seguir interpretar com maestria a Sonata nº 25 em Sol Maior, op. 79 (alla tedesca), de Beethoven. Tardiamente soube que era hábito do pianista esse contato inicial com o teclado em todas as suas apresentações pela Europa e Américas.

Wilhelm Backhaus nasceu em Leipzig e, após início pianístico com sua mãe, de 1891 a 1899 estudou no Conservatório de Leipzig com o mestre Alois Reckendorf (1841-1911). Recebeu igualmente aulas particulares com o notável Eugen D’Albert (1864-1932), que o influenciaria. Sua primeira turnê se dá em 1900. Nos próximos anos faria inúmeras apresentações na Inglaterra e já nesse período seu repertório era imenso. Em 1905 ganha o primeiro prêmio no Concurso Anton Rubinstein, sendo que a segunda láurea foi atribuída a Béla Bartók. Sua carreira se consolida e suas apresentações tiveram a mais efusiva recepção. Em 1930 fixa morada em Lugano, Suíça, e recebe a nacionalidade do país. Como professor, lecionou na Inglaterra e nos Estados Unidos. Morreria em Villach, na Áustria, durante turnê.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga nº 39 em Sol Maior, do Cravo bem Temperado (vol. 2), na interpretação de Wilhelm Backhaus (1958):

https://www.youtube.com/watch?v=pN52LYFRAkc

A carreira de Backhaus desenvolver-se-ia igualmente como camerista, requisitado que foi para inúmeras apresentações. Realizou diversas gravações, inclusive duas versões, em períodos diferentes, das 32 Sonatas de Beethoven. J.S.Bach, Mozart, Schubert, Brahms e, logicamente, Beethoven foram alguns de seus compositores mais frequentados. Foi o primeiro pianista a gravar o Concerto para piano e orquestra de Grieg (1913) e os 24 Estudos de Chopin (1928). Backhaus mantém a primazia de ter sido o primeiro pianista alemão com carreira internacional.

Alguns de seus conceitos sobre a performance pianística têm real interesse. Alheio à superficialidade, Backhaus se posiciona com firmeza: “O público recusa-se a admirar qualquer coisa que possa ser feita por uma máquina, e anseia por algo mais fino, mais subtil, mais intimamente aliado à alma do artista”. Considere-se que, nesta civilização mediática exacerbada, a busca por recordes é evidente. Também nessa linha de raciocínio, Backhaus comenta: “Reiteradas vezes me perguntaram: ‘Qual é a composição mais difícil?’. A pergunta diverte-me sempre, mas suponho que é muito humana e está de acordo com o desejo de medir o edifício mais alto, a montanha mais alta, o rio mais longo ou o castelo mais antigo. Por que é que um tal prêmio é baseado na mera dificuldade? Estranho que nunca ninguém julgue necessário perguntar: “Qual é a peça mais bela?”.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Sonata nº 25 em Sol Maior, op. 79, na interpretação de Wilhelm Backhaus (1951):

https://www.youtube.com/watch?v=tUb3EszM23c

Backhaus observa, em outro direcionamento, um Concerto de Mozart, obra não transcendental sob o aspecto técnico-pianístico, mas que oferece transcendência outra: “Tocar bem um concerto de Mozart é uma tarefa colossalmente difícil. O pianista que trabalhou horas a fio para conseguir uma interpretação tão próxima quanto possível da sua concepção de perfeição jamais receberá  crédito pelo seu trabalho, à exceção de alguns conhecedores, muitos dos quais passaram por uma experiência igualmente exigente”. Tenha-se em conta essas observações por parte de um pianista que realiza gravação extraordinária da virtuosística Rapsódia nº 2, de Franz Liszt.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, a Rapsódia nº 2, na interpretação de Wilhelm Backhaus:

https://www.youtube.com/watch?v=jmDz4DumxNs

Inúmeras vezes comentei neste espaço a respeito do gesto do intérprete. Mais e mais, nessa civilização do espetáculo sempre em ascendência, média e jovem gerações se adaptaram à era das câmaras e refletores. Wilhelm Backhaus simboliza o oposto mais veemente à gestualidade  Essa postura no palco teria sido responsável por comentários de um público afeito ao “espetáculo”, a considerar sua interpretação sem expressão.  Creio que raríssimamente essa distinção entre a transmissão única da música e a cênica-musical se apresente tão evidente. Faz pensar. Fantasia, imaginação, cuidado absoluto com a condução da frase musical, o respeito à tríade de uma interpretação, ou seja, agógica, dinâmica e acentuação, estão presentes em todas as suas interpretações. O vídeo da execução do Concerto nº 4, de Beethoven, bem evidencia que tudo está na mente soberana do pianista e a impassibilidade das feições de Bachkaus estaria a indicar que seu único objetivo é a transmissão integral da mensagem musical e não a sua transmissão teatral. A mente arquivadora do acervo a transmitir à ponta dos dedos unicamente o fluxo musical, sem a mínima possibilidade de que a visualização priorize a distração da essência essencial, a música. Faz-me lembrar das experiências de Alexandra David Néel (1868-1969) e de Paul Brunton (1898-1981), que, em suas estadias na cadeia Himalaia, narram em épocas diferentes a concentração e o pensamento único (vide blog “Leituras sobre o Himalaia” [ I ], 07/12/2007).

Clique para assistir ao vídeo do Concerto nº 4, de Beethoven, na interpretação de Wilhelm Backhaus, sob a regência de Karl Böhm a conduzir a Orquestra Sinfônica de Viena (1967), uma das mais extraordinárias performances dessa composição basilar:

https://www.youtube.com/watch?v=WP3OfvqpgCw

Wilhelm Backhaus, um dos Grandes pianistas da História. Seu legado permanece.

Wilhelm Backhaus was one of the greatest examples of tradition, in its full sense, in piano interpretation. Austere and perfectionist, while still being poetic, Backhaus had an immense repertoire. It is impressive his absolute absence of superficiality and gestures with the purpose of seducing the audience with his dazzling performances.