Um filme a revelar a compreensão do ocaso

Você, pedra no meu caminho,
Você é mais forte do que eu.
Hermann Hesse

Qual o momento a se pensar no encerramento de uma carreira? Mormente no que tange à interpretação musical, onde a presença física frente ao público é basicamente imperiosa, assim como nos esportes, a realidade se apresenta de difícil articulação, mas em determinado instante tem de ser enfrentada.

No que concerne ao músico instrumentista, há variações da perenidade em cena, e “o tempo insubornável”, de que nos fala o grande Guerra Junqueiro, atinge a todos, mas a aceitação da concretude obedece a nuances. Os músicos têm o privilégio da longevidade em suas atividades. O mesmo não ocorre com os esportistas profissionais, cujo desempenho obedece a tempo exíguo, que dificilmente ultrapassa 20% de suas existências. Findos os ciclos esportivos, rememoram durante décadas suas performances, narrativas tantas vezes nostálgicas ou superdimensionadas.

“A última nota” (título original “CODA” – 2019) é um filme que leva à reflexão sobre o tema. Em música, a coda é o epílogo de uma composição musical, tantas vezes apresentando temas ouvidos nas secções anteriores. Dirigido pelo canadense Claude Lalonde e com Louis Godbout como roteirista e consultor musical, tem como ator principal Patrick Stewart e mais as participações de Katie Holmes e Giancarlo Esposito. O filme expõe a situação de um pianista no ocaso voluntário da carreira, acrescido da presença do medo do palco, mormente após uma falha de memória quando já estava a interpretar, diante de um grande público, o virtuosístico final (coda) da 4ª Balada de Chopin. A trágica morte da esposa, Elisabeth, deixa-o longe do teclado durante três anos, fato que dimensiona o receio do retorno. Público e crítica o prestigiam, alheios aos seus dramas. O reencontro com a articulista de importante jornal, Hellen (Katie Holmes), suaviza temporariamente o período soturno que Henry Cole, o pianista ficcional, atravessa. Nos encontros visando a uma entrevista, entremeados com a necessidade imperiosa de Henry de manter-se solitário, estaria a essência das muitas reflexões entre os dois personagens. Henry Cole encontra-se no dilema a apontar para o fim da carreira. Para que a intensidade do tema atingisse o objetivo maior, a acentuar a realidade infalível, poucos foram os atores em ação. O multum in minimo dimensiona o momento inexorável, proposta atingida no cerne. As cenas lentas, prioritariamente acrescidas por obras para piano consagradas em andamentos tranquilos, não teriam sido pensadas para intensificar a sensação da nostálgica e irrefutável decisão do pianista? Há o instante do acontecido, que acentua o temor do final de uma gloriosa atividade. Se episódios inseridos no roteiro já evidenciam a necessidade de interromper a carreira, a “coda” chopiniana estabelece a certeza. A necessidade de buscar paisagens alpinas apenas provoca a reflexão consciente. Não lhe basta o afago do fiel empresário, a considerar que o grande pianista Sviatoslav Richter tocava com a partitura à frente – fato real, após o pianista ter os denominados “brancos” de memória em recitais no Extremo Oriente -, pois a decisão inexorável já estava tomada.

O temor do palco é fato que pode advir em muitos casos. Pianistas relevantes tiveram crises transitórias ou que se prolongaram. Vários seriam os motivos: problemas relativos à memória, insegurança devido a problemas físicos, depressão, idade avançada. Este último raramente tem solução, mercê do fim à espreita.

Em blog bem anterior comentei dois livros fulcrais sobre Le Trac (o medo do palco), do médico Dr. André-François Arcier (France, Alexitère, 1998 e 2004), que estuda pormenorizadamente a situação, suas causas e consequências (vide blog: “O Medo do Palco” (04/10/2008). Dois pianistas relevantes têm frases mencionadas em seus livros. György Cziffra (1921-1994) afirmou que “adentrar um palco é um ato de coragem. É nesses instantes que reside a fragilidade do intérprete. Leva-se uma mensagem que tem de ser passada em hora precisa, por vezes fixada anos antes, sendo um paradoxo que oscila entre a ação de graça e o suplício de Tântalo”. Martha Argerich (1941- ), por sua vez, confessa: “Hoje, eu poderia muito bem deixar de dar concertos. É um ato contra a natureza. O prazer é tão raro. No palco não temos a naturalidade de quando em nossa casa, pois não realizamos os mesmos gestos com as mãos frias, há os joelhos que tremem, o nariz que escorre. A interpretação se modifica. E mais, o peso dos olhares sobre você…”. Glenn Gould (1932-1982) não sentia le trac, mas sim o batimento cardíaco aumentar sensivelmente, causa possível de, a certa altura, dedicar-se unicamente às gravações. Samson François (1924-1970) no final da vida, após carreira meteórica, estava “consciente de ter desenvolvido uma grande apreensão relacionada ao seu estado no dia do concerto”, segundo sua ex-aluna, a pianista Myriam Birger.

Nos encontros de Henry e Hellen há conteúdos enigmáticos da parte do pianista, mas que, no todo, revelam sensibilidade e poética. No diálogo há dizer basilar: “O sucesso esconde falha ou ferida sedimentada. Pode até ficar longe da sua mente, mas estará sempre ali, a operar em plano secundário, à espreita por trás de uma máscara”. Uma rocha nos Alpes Suíços faz Helen relembrar a transitoriedade da vida e a perenidade da pedra, onde não falta menção a Nietzsche. Futuramente Henry visitará a rocha ancestral. Símbolo a sugerir o legado que permanece através das gravações, único meio sonoro de preservação de um intérprete. As frases reflexivas foram pensadamente expressas em lugares bucólicos, provocando uma melhor apreensão.

Henry entende que os compositores alemães são boa companhia e que não teria vivido a adolescência sem Schumann; aliás, o compositor mais presente entre as obras executadas. Na divagação comenta que apenas ele o entendia e que, mais tarde, Beethoven e Bach entrariam na lista de suas opções preferenciais.

“A última nota” é um belo filme, pleno de reflexões sobre a fase decisiva da escolha: continuar ou findar a atividade. Para o músico solista essa decisão pode conter traumas ou aceitação, a depender também de como a carreira foi encaminhada. Há aqueles que, em plena forma, mas com a idade a avançar, fixam bem antecipadamente o término. Outros, de maneira ab abrupto, como a pianista Monique de la Bruchollerie (1915-1972), após acidente automobilístico em 1966 na Romênia.

Sob outra égide, esse término pode estar implícito em outra categoria da atuação. Quantos não são aqueles que, já na quarta ou quinta década, não mais renovam o repertório, repetindo-se até os estertores da carreira? A renovação dos programas é um alento que não descarta a infalibilidade do término, mas possibilita ao intérprete, ao aventurar-se em criações que jamais estiveram em seu repertório, renascer como Phoenix.

A direção do canadense Claude Lalonde, nessa comunhão com o roteirista e consultor musical Louis Godbout, está impecável. Filmes biográficos quase sempre incorrem em inúmeros equívocos. “Coda”, sendo ficcional, é preciso nas abordagens relativas aos dramas dos intérpretes, o que dimensiona a pesquisa do roteirista. A escolha do pianista ucraniano Serhiy Salov para a interpretação de todas as músicas para piano solo foi criteriosa e algumas das execuções são pungentes.

Clique para ouvir, na interpretação de Serhij Salov, a 4ª Balada de Chopin. Precisamente aos 9:58 tem início a coda:

https://www.youtube.com/watch?v=kdHcNXfIFN8

O ator principal, Patrick Stewart, num dificílimo papel, evidencia diversos atributos. Nas inúmeras expressões faciais, universo de nuances que jamais ultrapassa o excesso, o que torna ainda mais complexa a caracterização do sentimento, ou da sua ausência, Patrick Stewart mostra-se um mestre. Katie Holmes revela qualidades sensíveis e são admiráveis suas expressões de admiração pelo entrevistado. Seu recato frente à determinadas negações do pianista revela sempre a aceitação, jamais o desacordo. Insistente, sem importunar o personagem, amando-o discretamente sem buscar retribuição, a atriz está precisa em seu papel. Quanto ao agente de Henry Cole, o ator Giancarlo Esposito, mostra-se incentivador e fiel escudeiro, tão distante da maioria dos que praticam a atividade.

Recomendo vivamente “A última nota” (CODA), um filme que merece ser visto e revisto.

The movie Coda  (in Portuguese “A última nota”) is contemplative and addresses two important aspects of a pianist’s work: stage fright and the inevitable moment of ending one’s career. The work of the Canadian director Claude Lalonde is impeccable and the script by Louis Godbout, who is also the musical consultant, is very well done. The main actor, Patrick Stewart, reveals remarkable qualities in a very difficult role. The same can be said about Katie Holmes in a sensitive and fine performance. As for actor Giancarlo Esposito, he presents himself as a supportive and faithful manager, contrary to most of his colleagues in real life. Concerning the movie repertoire, excerpts from pieces by J.S. Bach, Beethoven, Schumann, Chopin and Scriabin are interpreted by the highly accomplished Canadian pianist (of Ukrainian origin)  Serhij Salov.