Acompanhar o primeiro ciclo de vida

É provável que, na hierarquia artística,
os pássaros sejam os maiores músicos
que existem sobre nosso planeta.
O pássaro é na realidade um ser maravilhoso
sob todos os pontos de vista.
Olivier Messiaen

Já ele andava jovial, inquieto,
comendo alegremente, honradamente,
todos os parasitas da seara
desde a formiga ao mais pequeno inseto.
Guerra Junqueiro
(“O Melro”)

Sabe-se da atávica atitude das rolinhas. Pela quarta vez uma rolinha caldo-de-feijão se aproveita do mesmo ninho e nele coloca, como de hábito, dois ovinhos. Nesta quarta oportunidade, quis seguir através de imagens um dos ciclos da natureza.

Num post datado de 19 de Maio de 2007 (vide “Rolinhas – Columbina Tapacoti”) descrevia a montagem de um ninho de rolinha em arbusto de jasmim-manga que tínhamos no pequeno jardim frente à rua, ou seja, ao ar livre: “Gravetos e outros materiais afins compuseram o espaço que abrigaria dois ovos. Cuidadosamente agasalhados pelo casal que se revezava, pouco menos de duas semanas após a postura nasceram os filhotes, que não podiam ser vistos, mas eram tratados com a maior dedicação pela dupla. A nidificação foi feita a menos de dois metros das abelhas negras, mas certamente rolinhas e as arapuás se entendem. Após dias seguidos de aguaceiro, em que havia permanentemente um dos pássaros a proteger o ninho, fez bom tempo”. Sobre as abelhas arapuás, vide “Dando asas à imaginação” (07/07/2007). As rolinhas não mais fizeram ninho no jasmim-manga. Presentemente, sabiás nidificam na “unha de gato” a poucos centímetros da entrada das abelhas. Pelo que eu vejo, confraternizam-se.

No blog “Natal, dia maior da cristandade” (26/12/2020) comentei três posturas de uma rolinha desde Setembro último. Qual não foi minha surpresa ao verificar que, antes da metade do mês de Janeiro, novamente a rolinha estava a chocar. Acredito que o fato de o ninho estar num vaso com a denominada renda portuguesa, abrigado de chuva e vento por um telhadinho plástico, fez com que o casal entendesse que esse ninho seria permanente.

Nesta quarta vez quis acompanhar a evolução desde a postura. Sei que essas avezinhas encontram o que as mantém. Sempre foi assim. Mas, mercê da fidelidade desse casal, coloco sementes e água em local de fácil acesso. Quando por rápidos momentos o ninho ficava sem um membro da dupla, se estivesse por perto aproveitava para fotografar. Dessa maneira consegui fixar o ciclo completo.

No dia 6 de Fevereiro verifiquei pela manhã que os filhotes alçaram voo. Saídos do ninho, nunca mais retornam. Consegui à tarde do mesmo dia fixá-los num dos ferros que sustentam o telhado plástico, sendo que a mãe está sobre o muro, à esquerda, na parte inferior da foto.

Já se fazia tarde, por volta das 18:00, Regina nos chama em voz alta, pois uma das rolinhas que descobriram o ato de voar estava em nosso quarto. Nossa filha Maria Beatriz, que nos visitava, e eu subimos rapidamente e com todo o cuidado agarrei a avezinha, soltando-a no quintal. Assistimos ao seu voo ainda inseguro, mas com certa orientação. O casal de rolinhas estava por perto, certamente a aguardar a aventureira que se desgarrara.

Continuo a colocar sementes e água para as rolinhas, pois presentemente o casal e as proles que nasceram desde Setembro comparecem ao “banquete”. Uma festa!

Aqueles de minha geração certamente lembram-se dos pássaros que nidificavam em São Paulo. Recordo-me de que, durante minhas duas primeiras décadas, era raríssimo vermos e ouvirmos sabiás ou sanhaços, quando muito bem-te-vis. Basicamente só havia pardais que nidificavam abaixo dos telhados, bandos dos pequeninos bicos-de lacre (não nativos) e os tico-ticos, raríssimos hoje na cidade. Nossos ouvidos se habituaram ao pobre chilreio dos pardais. Àquela altura acreditava-se que eles teriam expulsado todas as outras espécies. Passaram-se as décadas e hoje a desumana e gigantesca São Paulo, paradoxalmente, ouve cantos de sabiás, sanhaços, corruíras, caga-sebos, bem-te-vis, joões-de-barro, chupins, pitiguaris (pássaro do hemisfério norte que escolheu viver em São Paulo) e os gritos estridentes de bandos de maritacas. Realmente é um privilégio ouvi-los. Nos parques de São Paulo há ainda canários da terra, quero-queros e outros mais pássaros. Basicamente, desapareceram os pardais, que foram inspiração para nosso rico cancioneiro.

Clique para ouvir, na magistral interpretação de Elizeth Cardoso (1920-1990), “No tempo dos quintais”, de Sivuca e Tapajós:

https://www.youtube.com/watch?v=M-oL0WX3PSM

Creio serem as rolinhas as mais simpáticas da espécie dos columbídeos. Rodolpho von Ihering, em seu magnífico “Dicionário dos animais do Brasil” (São Paulo, 1940), não escreve sobre o canto, inexistente nessas avezinhas, mas afirma: “Sua voz é – gu-hú, gu-hú, repetido por longo tempo”.

Haverá uma quinta postura? Mercê da disposição do casal é bem provável que nova ocupação do ninho aconteça. Será bem-vinda.

Sexta-feira à tarde. Blog pronto para ser publicado neste sábado às 0:05. Frente ao computador, ouço Regina subir as escadas apressadamente e a sorrir anuncia: “lá está a rolinha a chocar novamente”. Quinta postura! Incansável…

A couple of ruddy ground-doves made their nest in a pot plant in my backyard this season, so far raising four broods. Each time the female laid two eggs, warming them up for two weeks until the baby birds were born. I have followed the fourth cycle of egg-laying carefully, documenting it with photos until the two nestlings fled the nest, today publishing the “photo report” on my blog.

A qualidade extrema interrompida precocemente

…estas mãos de que a querida mãe tanto cuidou durante toda a vida para que eu pudesse tocar piano – estas mãos que a mãe esfregava com glicerina quando eu dormia para que elas se mantivessem macias, estas mãos que você tanto amava!
(carta de Dinu Lipatti, já doente em Genebra, à sua mãe em Bucareste -1947)

Dinu Lipatti figura no panteão dos grandes mestres do piano. A maioria foi longeva, algo a merecer ainda estudos mais prolongados, e poucos partiram antes da plena maturidade. Dinu Lipatti se insere nessa categoria.

Nascido na Romênia, filho de pais músicos, ainda no ventre materno já lhe era atribuído o vaticínio da carreira pianística. Anna Lipatti, mãe do pianista, em sua pungente e extremada biografia onde proliferam adjetivos para sublimar a idolatria, traça a trajetória da gestação à morte precoce do notável pianista. O mérito de “La vie du pianiste Dinu Lipatti écrite par sa mère” (Paris, La Colombe, 1946) reside nesse acompanhamento permanente, revelador, que, apesar das exacerbações, constroi o perfil de um pianista singular. Nascido em ambiente favorável, abastado, pais músicos favorecedores de toda a educação musical e humanista, Dinu Lipatti revelou desde a tenra infância qualidades excepcionais. Conduzido pelos mestres mais reputados de Bucareste, como Georges Enescu (1881-1955), que inclusive foi seu padrinho e, ao longo da breve existência do pianista, com ele colaborou em recitais violino-piano e também como regente em várias obras para piano e orquestra. Cedo faria incursões na composição e teve como mestre decisivo Mihail Jora (1891-1971).

Precocemente já se apresentara em Bucareste solando os Concertos de Grieg e o nº 1 de Liszt. Em Viena obtém o 2º Prêmio no Concurso Internacional. Alfred Cortot, que integrava o júri, sentindo a injustiça cometida pelos colegas abandonou a banca julgadora, convidando Lipatti para ir a Paris para com ele estudar. Juntamente com seu irmão mais novo, Valentin, e sua mãe, permanecem anos na capital francesa. Dinu Lipatti ingressa na École Normale de Musique e estudaria piano com Alfred Cortot, mas preferencialmente, por sugestão do mestre, com Yvonne Lefébure, regência com Charles Munch, análise musical com Nadia Boulanger e composição com Paul Dukas. Dias após a morte de Dukas, Lipatti apresenta-se pela primeira vez em recital na sala da École Normale de Musique, aos 20 de Maio de 1935. Lipatti o reverencia interpretando o coral Jesus, alegria dos homens de J.S.Bach-Hess. A plateia ouviu em pé a execução. Em pouco tempo, suas apresentações nas principais salas parisienses são acolhidas calorosamente. Lipatti adentrava os 20 anos de idade.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “La Leggierezza”, na interpretação de Dinu Lipatti (1947):

https://www.youtube.com/watch?v=PINztU27Wzg

Regressou várias vezes a Bucareste para férias que se passavam na propriedade da família às margens do Mar Negro. Todavia, o advento da segunda grande guerra e o ingresso da Romênia no conflito foram catastróficos para os Lipattis. Bens confiscados e a impossibilidade de um retorno, fizeram-no radicar-se em Genève com sua esposa, tornando-se professor no Conservatório da cidade. Cultuado na Suíça como um pianista de exceção, diminui suas atividades após o diagnóstico de leucemia, responsável por sua morte prematura aos 2 de Dezembro de 1950. Em seu último recital em Bezançon, na França, a menos de três meses do desenlace (16/09), sentindo-se indisposto durante a apresentação, hesita e toca Jesus, alegria dos homens, sua última mensagem frente ao público.

https://www.youtube.com/watch?v=BcOyojBU3hs

Estou a me lembrar de que as gravações em LPs de Dinu Lipatti chegaram ao Brasil na década de 1950 e nosso pai as adquirira. Já àquela época encantava-me a qualidade da interpretação de Lipatti. Nenhum efeito para agradar. A virtuosidade plena a serviço de uma singular musicalidade. Efeitos timbrísticos sensíveis, pensados, personalíssimos, mas sempre a serviço da música. Em sua biografia, Anna Lipatti salienta inúmeras vezes essas qualidades interiores da interpretação, reflexos, segundo a progenitora, de seu temperamento cordial, atento, sempre voltado ao próximo, às vozes da natureza e ao prazer, desde a tenra infância, de estar próximo do piano e da Música. Inexiste o toque agressivo, percutante. Suas interpretações podem ser entendidas como modelo de um pensar introspectivo.

Comovente foi sua ligação com sua conterrânea, a notável pianista Clara Haskil (1895-1960). Ambos reverenciaram a música com a maior qualidade, sempre a tê-la como prioridade. Serviram à música. Há certa semelhança na interpretação dos dois pianistas (vide blog: “Clara Haskil” 06/06/2020).

Clique para ouvir, nas interpretações de Dinu Lipatti e Clara Haskil, de J.S.Bach, o Coral BWV 659, “Que venha agora o Salvador dos pagãos”:

https://www.youtube.com/watch?v=0AgzkHUw5No

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, L’Alborada del Gracioso, na interpretação de Dinu Lipatti:

https://www.youtube.com/watch?v=CuZOVSL5woo

Como compositor, Dinu Lipatti legou considerável produção em estilo que se poderia nomear néo clássico. Compôs obras para orquestra, piano e orquestra, piano e órgão, piano solo, melodias…

Clique para ouvir, de Dinu Lipatti, “L’Arrivée des Tziganes” da suíte para orquestra “Tziganes”. Orquestra da Suisse Romande, sob a direção de Ernest Ansermet (gravação ao vivo, Genebra, 1951)

https://www.youtube.com/watch?v=HdMVv5CYSrM

O “modelo” Dinu Lipati já praticamente se estiolou a partir desta civilização do espetáculo que, independentemente da qualidade do intérprete, privilegia a exacerbação do gesto, a mímica facial frente às câmaras ou as apresentações histriônicas. A mensagem de Dinu Lipatti sempre será glorificada pelos ouvintes que apreciam a execução a mais fidedigna, sensível e sublimada e da qual o grande pianista romeno foi exemplo perfeito.

In this post I write about the excellent Romanian pianist and composer Dinu Lipatti (1917-1950), who died precociously at age 33. He had his biography from birth to death written by his mother, Anna Lipatti (“La vie du pianiste Dinu Lipatti écrite par sa mère”), who idolized him. Lipatti, despite his short career, was without doubt one of the finest pianists of the 20th century. His recordings, which my father used to buy in the fifties, showed a sensitive pianist, preaching austerity, control of timbristic effects and refined emotion. Nothing to do with many histrionic performances so valued today.

Ruptura e novos caminhos de um pianista


A sociedade deveria fazer o mea culpa,
pois ela tende a enclausurar os artistas,
muitas vezes com a cumplicidade
dos parentes, professores e agentes.
Certos pianistas são instrumentalizados,
impelidos ao palco por razões financeiras,
sendo marionetes alcançando lindas realizações artisticamente,
mas que passam à margem de suas vidas.
Estive à margem de minha vida durante trinta anos de carreira.
Hoje, reconciliei-me com o
métier.
não tenho nenhum amor pelo cerimonial da sala de concerto.

François-René Duchâble
(entrevista a Laurent Deburge, 25/09/2016)

Ao longo dos anos a escrever semanalmente nesta coluna, por diversas vezes comentei minha plena idiossincrasia a várias constantes sacralizadas concernentes à carreira de um intérprete. Segui-las é opção individual basicamente majoritária, romper esse elo sem perder a qualidade é reservado a raríssimos.

Creio haver três categorias de intérpretes frente à carreira consolidada e sequencial: aquele que segue a trajetória obedecendo aos ditames sedimentados pela tradição e que, após ter sido aceito internacionalmente pelos méritos, tem em seu empresário o elo que o liga às grandes temporadas musicais do planeta. Será o agente – geralmente nulo em música, mas expert em marketing – que se ocupará de sua presença na grande mídia, submetendo-o ao repertório repetitivo imposto pelas sociedades de concerto; o executante igualmente meritoso, mas que, a atender a apelos diferenciados, apresenta-se de maneira espetaculosa, sendo aceito com entusiasmo, por vezes idolatria, por um público geralmente mais jovem que busca a “renovação”, palavra que se camufla na aparência da tradição; o intérprete que, também pleno de competência, mas farto de toda a maquinaria que se perpetua, empreende caminho até exótico, abandonando a carreira de um passado de sucessos, prosseguindo exitoso na senda da qualidade. Sem uma denominada carreira, haveria uma quarta categoria: intérpretes relevantes que preferem as apresentações menos internacionalizadas, dedicando-se igualmente ao magistério. Conheci imensos artistas dessa estirpe em vários países, tendo assistido a inúmeras récitas realmente hors série, algumas contendo integrais interpretadas em altíssimo nível.

Minha filha Maria Beatriz enviou-me um vídeo do renomado pianista francês François-René Duchâble (1952-) que, entrevistado em Rennes, na Bretanha (2018), narra as razões que o levaram à ruptura com a denominada carreira tradicional. O vídeo em francês, de pouco mais de 30 minutos, sem tradução, expõe com clareza os porquês do consagrado pianista, a certa altura de sua vida, mudar radicalmente de atitude frente à atividade (2003), ação que o levou à guinada mental e material empreendida desde 1998, resultando na destruição de símbolos que certamente o atormentavam. Esse expurgo fez que estabelecesse outros parâmetros para a vida, sem, contudo, abdicar da qualidade pianística, que deveria subsistir imperiosa. Todavia, o modus faciendi do passado não mais seria resgatado. No vídeo, Duchâble expõe algumas das posições já externadas desde a ruptura em entrevistas publicadas por várias vertentes da mídia. Ao final do post insiro o link que leva à entrevista.

A cisão, após carreira consolidada como um dos grandes intérpretes franceses, faz-me lembrar, sob outra égide, da guinada profunda feita pelo extraordinário pianista igualmente de França, Thierry de Brunhoff (1934-), que, igualmente com carreira consagrada, abandonou os palcos em 1974, ingressando na vida monástica na abadia de São Bento em En-Calcat (Tarn), tornando-se monge desde então.

A ruptura de Duchâble tornou-se um acontecimento. Adquire um piano semidestruído (780 E$) e este é transportado por um helicóptero de conhecidos seus, jogado em um lago e mais tarde recuperado, tornando-se “escultura”. Duchâble afirma: “depositei o piano em ato solene de purificação para abandonar três décadas de mentiras. Esse gesto espetacular foi interpretado como ato de um megalomaníaco desesperado, como se eu estivesse no fim da picada. É falso, pois estava em plena forma, tendo dado 78 concertos entre Janeiro e Julho de 2003. Meu desejo era aceder à luz e sair de uma espécie de atoleiro”. A decisão definitiva, longamente gestada, veio após a gravação dos cinco Concertos para piano de Beethoven. Quanto à casaca, ainda hoje um ícone “indispensável” na indumentária masculina de intérpretes, regentes e membros de orquestra, Duchâble a incendeia. Esses signos exteriores serviriam para a consolidação definitiva da nova trajetória. Afirmaria: “O resultado tem sido magnífico. Acedi à alegria de viver cotidianamente. Reconciliei-me com o piano, a música, o palco e o público. Queria viver minha vida. Levar a música aonde ela não chegava”.

Clique para ouvir, de François-René Duchâble, a cadência composta para o primeiro movimento do 3º concerto para piano e orquestra de Beethoven:

(27) La cadence de François-René Duchâche dans le 1er mouvement du 3ème concerto de Beethoven – YouTube

Nas entrevistas, Duchâble afirma que “fui formatado, pela cultura, pela família, neste meio esclerosado da música. Quis romper não com a música, mas com tudo que a cerca”. Sobre as causas que o levaram à ruptura com o modelo tradicional de carreira internacional, nas várias entrevistas e no vídeo de Rennes, elenca cinco: 1ª “As viagens distantes não importando o destino, pois o fato de sair da França representava para mim um terrível sofrimento físico, mormente quando para a atividade musical”; 2ª, “Os ensaios com orquestra ou com conjunto de câmara. A relação dos regentes com os solistas nem sempre é harmoniosa, sendo aqueles nem sempre dispostos. Sobrevoam as partituras e por vezes ensaiam no dia do concerto de maneira superficial. Esses ensaios nunca foram prazerosos para mim. O ambiente é raramente caloroso, mercê da rotina dos músicos e da disparidade de ganho dos membros da orquestra e de um solista, algo que pode trazer um mal-estar”; 3ª, “as luzes das salas de concerto fixas, brancas e tristes. Acreditamos estar sob interrogatório de polícia. A mania de focalizar o teclado, a técnica e a virtuosidade desviam a atenção da música. Ao invés de olharem as mãos ‘que olhem os meus pés!’, dizia Rubinstein”; 4ª, “minha rejeição ao público puramente musical representado por uma mínima parcela da população. A difusão da música clássica nada tem de democrática, mas continua convencional e tantas vezes fonte de tédio, principalmente pela escolha dos programas destinados aos conhecedores. A longa duração das obras é a principal causa do aborrecimento do público neófito”; 5ª “o ‘semideus’ que julgamos ser na sala de concertos fica reduzido a um pequeno estudante submetido ao julgamento do engenheiro de som que assinala defeitos, como um barulho de pedal, e controla a partitura como um membro de júri. Detesto os estúdios, não mais gravo discos, salvo exceções”. As cinco conclusões, repetidamente mencionadas, permaneceriam como o divisor de águas em sua trajetória.

Decisão tomada, Duchâble confessa que outros interesses que passam ao largo, se em carreira internacional feérica, tornaram-se prioridades e elenca: literatura, poesia, filosofia e a natureza. Doravante consideraria a relação em pleno ar, no meio de um lago, recitais nas montanhas, sob as estrelas, em florestas, assim como daria atenção especial às apresentações em hospitais, escolas, prisões e afirmaria “a comunhão com a natureza, a arquitetura e a música”. Prender-se-ia doravante preferencialmente às formas mais breves, evitando nessas apresentações obras de longa duração. Muitas de suas récitas são feitas sem qualquer cachê, tantas delas revertidas às causas sociais e humanitárias. Outras mais em plena natureza.

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, o terceiro movimento da Sonata “Ao Luar” de Beethoven:

https://www.youtube.com/watch?v=rRd8doBqeF8

François-René Duchâble volta-se ao passado: “Se detestei por vezes o piano há trinta anos atrás, essa relação melhorou com o passar dos anos e hoje ele é o prolongamento natural de meu corpo. Sou feliz por ser pianista, pois isso corresponde ao meu desejo de ser um ‘arquiteto’ da música. Na música, a arquitetura é a primeira coisa que privilegio. Em seguida temos o rigor dos tempi, o fraseado e, após, a beleza do som”. Esportista, ciclista, Duchâble adaptou a uma bicicleta especial um teclado numérico e, logicamente, alto-falantes. Percorre praças e outros logradouros e tem o prazer de tocar frente a público mutante, que pode também se aglomerar.

Creio ser necessário fazer distinções. François-René Duchâble, pianista com carreira consagrada, rompeu com o modus faciendi relativo ao universo ligado à dualidade intérprete-público, compreendendo suas cinco razões mencionadas acima. A se assistir a vídeos posteriores, não há queda alguma da qualidade interpretativa. Sob outro aspecto, em várias oportunidades associa-se ao consagrado diretor e comediante Alain Carré para apresentações onde poesia e arte cênica estão presentes. Estar frequentemente em escolas, hospitais, prisões ou praças, no caso com sua “bicicleta-piano”, evidencia a necessidade de levar a mensagem musical basicamente inexistente nesses espaços.

Clique para ouvir de Manuel de Falla, Dança ritual do fogo, na interpretação de François-René Duchâble com a participação de Alain Carré:

https://www.youtube.com/watch?v=GIWMjL8UJ-c

Lembro ao leitor que François-René Duchâble tem repertório imenso, mormente voltado ao longo período romântico, mas a cultuar igualmente, de maneira menos intensa, J.S.Bach. Mozart, Debussy, Scriabine, Ravel e Rachmaninov. François Servenière, presente em inúmeros blogs como comentarista eclético, teve excertos de sua coletânea Rhythimiques & Repetitives (dois pianos) interpretados e gravados para CD pelo duo Helène Berger e François-René Duchâble. De Servenière gravei várias criações, lançadas em CDs pelo selo Esolem (França), sendo que algumas obras, como os Études Cosmiques e Promenade sur la Voie Lactée, estão no Youtube.

Clique para ter acesso à entrevista de François-René Duchâble mencionada acima:

https://www.youtube.com/watch?v=PX0oi6JGgpA

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, os Estudos opus 10 e opus 25 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=Pqc5E6y7Zoc

This post addresses François-René Duchâble (1952 -), the French pianist with a successful concert and recording career who in 2003 ended his “conventional” career in protest at what he saw as the elitism of the classical music system and a life of endless travels, rehearsals, recording sessions, all of which he felt ruined his existence. He has buried his professional past symbolically in a very curious way, dropping his grand piano into a lake and burning his tuxedo. Feeling reborn, he now tours around France performing casual concerts for small audiences in schools, hospitals, prisons and in the open air, often pedaling with a keyboard specially adapted for a tricycle.