A saga de um herói imaginário

Jean-Christophe é um evento ético mais do que literário.
Stefan Zweig
(“Berliner Tageblatt”, 22/12/2012)

Para o povo, a injustiça é a desigualdade,
Para a elite, é a igualdade.
Romain Rolland
(“Jean-Christophe”, p. 1263)

Foram duas as minhas leituras do mesmo compêndio de 1595 páginas em papel bíblia (Paris, Albin Michel, 1950). A primeira em 1957 e a segunda no ano 2005. Foi certamente um dos romances que retive indelevelmente na memória. Curiosamente, interessei-me pela obra porque Romain Rolland (1866-1944) foi também biógrafo e entre seus livros tem-se os estudos sobre Beethoven, Gandhi, Tolstoi, Haendel, Péguy, Michelangelo, Ramakrishna, Vivekananda…

Escreve em 1903 uma primeira biografia de Beethoven. Sua admiração inconteste pelo compositor fá-lo edificar, a partir de 1928, a monumental coleção dedicada ao genial compositor alemão, não desprovida de análises de muitas criações, e que se estenderia por sete volumes redigidos até os estertores da existência. Abro parêntesis para mencionar que a tradução para a língua portuguesa foi realizada pelo notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) em três volumes (Lisboa, Cosmos, 1960). A leitura de “Goethe et Beethoven” (1930), segundo da série, levou-me a percorrer com intensidade “Jean-Christophe” (1904-1912), obra dividida em 10 volumes. Romain Rolland escreveria na “Introdução” do romance que “as analogias históricas entre o músico de Bonn se reduzem a alguns segmentos da família de Christophe, no primeiro volume”. Creio que vão além, conscientemente ou não. Romain Rolland acompanha o herói imaginário e acalentado, do nascimento à morte, seguindo-o da Alemanha à França, à Suíça e em seu retorno definitivo a Paris.

Jean-Christophe Kraff, músico imaginário nascido na Alemanha, onde receberia a formação musical que o leva a ser pianista, violinista, regente e compositor meritório, após os primeiros lustros no país natal, onde vive também seus primeiros amores, parte para Paris movido por decepções de várias ordens. Na capital francesa se desalenta e se indispõe com a moral vigente e com a classe artística, mas pouco a pouco vê suas composições serem aceitas. Encontra um grande amigo, Olivier, irmão de Antoinette, que conhecera na Alemanha e que é título do sexto livro. Olivier, ligado a revolucionários, morre em uma escaramuça. No blog anterior mencionei que, na “Introdução” tardia de 1931 para reedição de “Jean Christophe”, o autor tencionava tornar o personagem central um revolucionário também, o que daria destino completamente diverso aos dois livros finais (9 – Le Buisson Ardent, 10 – La Nouvelle Journée).

Saliento a minha percepção após as duas leituras tão espaçadas no tempo. Na primeira abordagem, aos 19 anos, a figura do herói Jean Christophe se me apresentava como inspiração. Romain Rolland, em toda a trajetória de seu personagem, consciente ou inconscientemente, não descarta o adolescente em seus sonhos, mesmo na idade madura de Jean-Christophe, apesar de seus almejos e desencantos frente à vida. Seria possível entender que, para o jovem músico que eu fui, eleger àquela altura Jean-Christophe tem lá suas razões, como anos antes, aos 13 anos, sob contexto outro, escolhera a figura de Enrico, no comovente “Cuore” de Edmondo de Amicis (1846-1908), que, décadas após a publicação, por motivos essencialmente ideológicos, a intelligentsia tentou desconstruir. Como não pensar igualmente num dos livros franceses de maior aceitação pública e êxito editorial absoluto, “Le Grand Meaulnes”, de Alain-Fournier (1886-1914), morto durante a primeira grande guerra? Seu único livro, publicado em 1913, aos 27 anos, apresenta um jovem em sua trajetória fantasiosa e imbuído dos fluidos românticos. Sem o conteúdo de Jean-Christophe, a literatura de Fournier é lírica e cativante. Quanto à criação de Romain Rolland, nos meus 19 anos comungava os anseios do herói e seu comprometimento indelével com a Música – o que também acontecia com o jovem leitor. Na leitura em 2005 o interesse maior foi pelos últimos dois volumes, marcados pelas cicatrizes advindas de sucessos – por vezes efêmeros -, ilusões, amores de diversas intensidades, amizades intensas, confissões, almejos, riscos, espírito libertário, desalentos profundos e resignação de Jean-Christophe, mormente no período a anteceder o desenlace, quarta parte de La Nouvelle Journée, 10º livro da saga.

Os dez volumes de “Jean-Christophe”, inicialmente publicados paulatinamente nos “Cahiers de la quinzaine” de seu amigo, o poeta Charles Péguy (1873-1914) – tragicamente morto na frente de batalha no início da primeira grande guerra -, alcançaram recepção pública expressiva, mas com reservas da crítica. Tem-se de entender que, em tempos entre guerras, a franco-prussiana de 1870-1871 entre a França e Estados alemães dirigidos pela Prússia, e a primeira Grande Guerra 1914-1918, Romain Rolland estava a erigir um jovem alemão com fortes vínculos com a França como personagem capital de seu romance, do berço à morte. Sob outra égide, elegera Beethoven seu compositor preferido e alemão. A aproximação com a cultura da Alemanha seria uma das conotações, entre tantas outras, das críticas chauvinistas a Romain Rolland. Teria passado desapercebida uma frase na segunda parte de La Nouvelle Journée sobre o retorno de Jean-Christophe a Paris, após ter se refugiado na Suíça: “jamais gostaria de rever essa cidade”? (p.1469).

Creio que “Jean-Christophe”, assim como “Citadelle”, de Saint-Exupéry, este rigorosamente sob outra égide, são odes à condição do homem em direção à fraternidade e a um humanismo que está a esvair-se. Romain Rolland constrói o herói gestado amorosamente, distanciando-o de uma vida estéril: “Desgraça à alma que não se sente fecunda, plena de vida e de amor, como uma árvore florida na primavera! O mundo pode honrá-la de diversas maneiras; mas está a coroar um cadáver” (p.383).

Jean-Christophe é o modelo do herói romântico. Tem suas características essenciais. As inúmeras mensagens recebidas pelo autor, mormente de jovens ao longo de duas décadas, evidenciariam a escolha do personagem que, criado, flutuaria através do tempo como paradigma. Beethoven é um farol para Romain Rolland, mas a aura de compositores do período romântico também poderia estar em sua mente, pois confessaria uma certa indisposição para com o modernismo. Jean-Christophe atravessa a existência “acalentado” por seu autor. Criador e criatura se amalgamam. Romain Rolland consegue, através de seu personagem, transmitir suas convicções sobre arte, moral, costumes, fé, música essencial, assim como sobre os objetivos frente à vida: “A maior parte dos homens morre aos vinte ou trinta anos: passado esse marco, esses homens não são mais do que seu próprio reflexo; o resto da vida se escoa enquanto imitam a eles mesmos, repetindo a cada dia mais e mais, de maneira mecânica e também caricata, o que disseram, fizeram, pensaram, amaram nos tempos passados” (p.238). Há a visão clara da Arte como patamar não contaminado pelos interesses econômicos: “…não há nenhuma relação entre uma soma de dinheiro e uma obra de arte, a obra não está acima, tampouco abaixo: ela está fora” (p.1289). Essa apreensão da arte como alheia a poderes por vezes inconfessos é contrária ao que hoje ocorre, ou seja, o caminhar progressivo em direção à civilização do espetáculo, que nega valores culturais sedimentados pela tradição. Confessa in adendo: “…as pessoas atualmente leem rápido e mal, não mais sabem a força maravilhosa que irradia dos livros que bebemos lentamente” (p.1217).

Poder-se-ia considerar uma frase, quase ao final do livro, que tem a sonoridade e o significado de uma oração e sintetiza a transcendência do herói na saga: “Ó minha velha companheira, minha música, tu és melhor do que eu. Sou um ingrato, eu te despedi. Mas tu não me abandonas; não te aborreces com meus caprichos. Perdão! Tu sabes bem, são brincadeiras. Eu nunca te traí, tu jamais me traíste, somos seguros um do outro. Nós partiremos juntos, minha amiga. Fica comigo, até o fim!” (p.1588). (tradução: J.E.M.).

Sobre meu leito, tenho essa passagem manuscrita.

In this second post I comment on my two readings of “Jean-Cristophe”, in 1957 and 2005. The different perceptions have only increased the great appreciation I have always had for this monumental novel. Humanism, culture, art, morals, customs and responsibility permeate the novel. Such qualities have faded over the decades.

Romain Rolland – a longa gestação de um romance

Pareceu-me sempre que a Arte
deveria proporcionar essa alegria,
necessária para suportar a vida cotidiana,
tão dura para uns, tão morna para outros.
Todavia, quanto tempo será necessário
para que transpareça, através de um acorde,
a ideia da bondade e do desinteresse que o inspira.
Claude Debussy
(carta a Romain Rolland, 11/05/1904)

Indubitavelmente é fora de dúvida
que a considerável obra de Romain Rolland
só pode ser simpática a todos os artistas,
em particular, aos músicos.
Claude Debussy
(carta a Arthur Cantillon, Fevereiro, 1913)

Encontrei meu amigo Marcelo a fazer compras no supermercado próximo à minha morada. De imediato diz ter ouvido o primeiro movimento da Sonata Hammerklavier na interpretação de Désiré N’kaoua e que gostara imenso da criação de Beethoven, apesar de, como leigo, entendê-la bem “abstrata”, conforme afirmou. Marcelo observou que, pela segunda vez em pouco tempo, insiro epígrafes de Romain Rolland. Diz haver lido anos atrás um volume de seu famoso romance “Jean-Christophe”. A extensão da obra impediu-o de prosseguir a leitura. Perguntou-me se eu já havia lido o romance. A resposta afirmativa e o breve diálogo despertaram em mim o interesse de abordar sucintamente o monumental romance de Romain Rolland, o que agradou a Marcelo.

Romain Rolland (1866-1944) foi uma das figuras mais brilhantes de sua época. Francês, foi escritor, romancista, dramaturgo, ensaísta, biógrafo, memorialista e musicógrafo. Humanista, não poucas vezes teve suas posições entendidas como não patrióticas, mormente durante a primeira grande guerra, o que lhe valeria dissabores. Intelectuais mais nacionalistas viam-no como tendente a observar o conflito de forma não engajada e dúbia aos interesses da França. As posições, que se tornaram públicas, fizeram inclusive com que a Academia da Suécia, que lhe atribuíra o Prêmio Nobel de literatura em 1915, sensível às pressões, somente entregasse o prêmio desse ano em 1916.

Dividirei o tema “Jean-Christophe” em dois posts, o primeiro a salientar a importância da “Introdução” tardia do livro, redigida pelo autor em Villeneuve-du-Léman na Páscoa de 1931, e o segundo a comentar as impressões que me calaram fundo em ambas as leituras, tão espaçadas no tempo. “Jean-Christophe” está dividido em 10 tomos, publicados de 1904 a 1912 na formatação de feuilleton (romance em série) pela revista Cahiers de la quinzaine, sendo que uma segunda edição do primeiro tomo, L’Aube, foi impressa pela Librairie Paul Ollendorf de Paris (1906).

A “Introdução” revela uma das características do pensar de Romain Rolland, o humanismo. À sociedade do espetáculo em que se vive nessas últimas décadas, as palavras introdutórias para uma edição tão distante (1931) da primeira publicação podem parecer anacrônicas. O narrador tem agora consciência da trajetória vitoriosa de seu herói pelo mundo, através de tantas traduções de seu livro. O apego à figura por ele criada se metamorfoseia e, nomeando-se “pai”, se a visse “com os costumes os mais variados” teria dificuldade de reconhecê-lo. Romain Rolland, ao revelar identidade plena com o personagem consagrado pelos leitores através das décadas e seu afeto por Jean-Christophe do berço à morte, fato reiteradas vezes mencionado, expõe-se por inteiro: “O Jean-Christophe que eu carregava em mim, como uma mulher o seu fruto”. Tão distante da marcante dedução do notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923), que, no prefácio à segunda edição de “A velhice do Padre Eterno”, escreveria: “Um livro atirado ao público equivale a um livro atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se não o for, também não verterei uma lágrima”.

Romain Rolland confessaria, à guisa de introdução: “O pensamento de Jean-Christophe abrange mais de vinte anos de minha vida. A primeira ideia data da primavera de 1890, em Roma. As últimas palavras escritas datam de Junho de 1912. Encontrei esboços de 1888, enquanto aluno da École Normale Supérieure de Paris. Christophe me era uma segunda vida, escondido aos olhos exteriores, onde eu retomava contato com o meu eu mais profundo”. Seria a partir de 1900 que, “…inteiramente livre e em solilóquio com meus sonhos, minhas armas da alma, lancei-me resolutamente sobre a torrente”. A primazia pelo projeto é notória, ao afirmar: “Jamais uma obra foi tão totalmente organizada no pensamento como Jean-Christophe, antes que as primeiras palavras fossem jogadas sobre o papel”, fato que ocorreria aos 20 de Março de 1903. Se o herói já fazia parte do pensar de Romain Rolland, não mais o abandonaria durante a longa gestação: “Em dez anos, nenhum dia passou sem a sua presença. Ele não tinha necessidade de falar. Ele estava lá”. Romain Rolland tem consciência de que Jean-Christophe tem sua trajetória “numa época de decomposição moral e social na França”. Elenca a seguir as condições de um chefe. Jean-Christophe é moldado para a missão de herói, mas seria ledo engano entendê-lo como figura mitológica. Para Romain Rolland, como definira em relação a Beethoven: “Chamo de heróis somente aqueles que foram grandes pelo coração”. A contemporaneidade de Beethoven com o personagem idealizado no romance estaria presente mormente nos primeiros anos de Jean-Christophe, fixados nos três primeiros livros (L’Aube, Le Matin, L’Adolescent), pois nos outros sete adquire seu papel pessoal pela história e se universaliza. Contudo, seria possível apreender Beethoven a “sobrevoar” em tantas passagens nos livros subsequentes. Romain Rolland descreve o pós-edição: “Jean-Christophe não é mais, em nenhum país, um estrangeiro. Das terras mais distantes, das raças as mais diversas, da China, do Japão, da Índia, das Américas, de todos os povos da Europa chegaram homens dizendo: ‘Jean-Christophe é nosso. Ele é meu. Ele é meu irmão. Ele é meu’ “. Em 1883, no alvorecer das ideias visando à edificação do herói, já apregoava a insistência, a repetição como necessidade de ser compreendido ao dar significado ao personagem: “E se, para melhor penetrar seu pensamento, será útil que você repita as mesmas palavras, repita, insista, não busque outras palavras! Que nenhuma palavra seja perdida! Que seu verbo seja ação! São princípios que eu reivindico ainda hoje contra a estética contemporânea”.

Romain Rolland confessa ter escrito notas, fragmentos esboçados, encaminhando Jean-Christophe, nos livros finais, para a difícil senda dos heróis revolucionários partícipes dos movimentos que explodiram na Alemanha e na Polônia. Abortou a ideia de estender a saga, mas acredita não ter colocado um ponto final na narrativa. “O fim de Jean-Christophe não é um fim, é uma etapa. Jean-Christophe não acaba. Sua morte é um momento do Ritmo, uma expiração do grande sopro eterno… Ele terá morrido cem vezes, ele renascerá sempre, ele combaterá sempre, ele é e continuará o irmão dos homens e das mulheres livres de todas as nações, que lutam, que sofrem e que vencerão”. E como última frase, o autor relembra em 1931 seu herói: “Um dia eu renascerei, para novos combates…”.

O fervor de Romain Rolland pode ser sintetizado em seu testemunho: “Eu não escrevo uma obra literária. Eu escrevo uma obra de fé”.

Today I write about the French novelist, playwright, musicologist, essayist and great humanist Romain Rolland (1866-1944) — Nobel prize winner for Literature in 1915 — and his masterpiece, the ten-volume epic novel “Jean Christophe” (published from 1904 to 1912), in which the author expresses his views on music, social matters and his love of mankind. I will divide the post into two parts, the first stressing the importance of the belated introduction to the book (only written in 1931); the second commenting on the deep impressions the book made on me after two reads.

Desafio do ilustre pianista Désiré N’Kaoua aos 86 anos

Atesto que em nenhuma outra obra de Beethoven nos seus derradeiros anos
– mesmo na Missa e na Sinfonia -,
o velho leão  mostrou-se tão soberanamente mestre e senhor de seu ‘reino de sonho’
que na Sonata op. 106.
Romain Rolland (1866-1944)

Pode-se comparar a Hammerklavier a uma catedral gótica.
Há sempre algo a aperfeiçoar, a rever.
Jamais chegaremos a termo.
Edwin Fischer (1886-1960)
(notável pianista suíço)

Désiré Nkaoua foi meu colega no início dos anos 1960 nos cursos de Marguerite Long, em Paris. Poucos anos menos jovem do que eu. Estou a me lembrar de suas interpretações admiráveis de criações de Mozart e Chopin. O pianista francês, nascido em Constantina, na Algéria, fez brilhantes estudos em Paris e ao ganhar, aos 27 anos, o primeiro prêmio no prestigiado Concurso Internacional de piano de Genebra iniciaria brilhante carreira, que o levaria a tocar com as principais orquestras europeias e a gravar. Mozart, Schubert, Chopin e os franceses Chabrier, Debussy, Albert Roussel (integral). Foi o primeiro pianista a apresentar em uma só soirée a integral de Maurice Ravel para piano (sua gravação é encontrada no YouTube, acessando-se, inicialmente, YouTube Désiré N’Kaoua e após, um outro link: Désiré N’Kaoua – Topic – Youtube). Sua atividade didática levou-o à docência no Conservatoire Supérieur de Genève e no Conservatoire Supérier de Paris. Désiré N’Kaoua é Oficial da Ordem Nacional do Mérito com o título de embaixador da música francesa no Exterior.

Sou-lhe grato, pois com a ascensão de sua carreira indicou-me como seu substituto na Escola de Ballet Simon Siégel, em Paris, função que passaria a exercer durante dois anos, duas ou três vezes por semana, como acompanhador dos cursos de ballet, onde era necessária a leitura à primeira vista de muitas das obras que eram utilizadas nessas aulas.

Em 2019, Désiré N’Kaoua registraria a monumental Sonata Hammerklavier op. 106 de Beethoven, enviando-me recentemente a gravação (Beethoven, Sonate opus 106, France, Polymnie, 2019).

Com o aparecimento do pianoforte, assistiu-se a um rápido aperfeiçoamento na técnica da manufatura. Os vários instrumentos da família do cravo, já nas décadas finais do século XVIII, mormente após a Revolução Francesa em 1789, entrariam num longo ostracismo de mais de um século e nenhum dos compositores meritosos do Século XIX dedicaria obras a um instrumento que foi um dos símbolos da música da realeza.

Ludwig van Beethoven (1770-1827) viveu em tempos da grande evolução do pianoforte ao piano. As Sonatas para o instrumento, desde a opus 2, composta em 1795, até à última, opus 111, criada em 1821, são testemunhas do interesse de Beethoven pela tessitura. À medida que o teclado se expande, mercê dos avanços tecnológicos do instrumento, o compositor se atualiza em termos dos pianofortes-piano, o que implicaria uma “amplificação” escritural. Ao ser presenteado com um instrumento Broadwood de Londres, com seu teclado de seis oitavas e meia e cujas cordas eram percutidas por martelos, hammer-klavier, utilizar-se-ia da extensão plena no período. Esse fato implicaria igualmente na criação de obras que ultrapassam o seu tempo, poder-se-ia dizer revolucionárias na feitura, sendo que as cinco últimas Sonatas – de um total de 32 -, compostas entre 1816 a 1821, estabeleceriam uma “ruptura” em relação às criações anteriores, em especial a Hammerklavier.

A extensão tecladística e os recursos do novo instrumento implicariam um pensar diferenciado. Basicamente surdo, Beethoven, ao compor a Sonata Hammerklavier, sua mais arrojada e ampla Sonata – num período em que igualmente elaborava a Missa Solene e a Nona Sinfonia -, ultrapassa, sob o aspecto de inovação, tudo o que séculos haviam elaborado em termos de arrojo. O ilustre pianista Paul Badura Skoda (1927-2019), um dos grandes intérpretes da obra de Beethoven, comenta: “A Hammerklavier-Sonata é, para nós pianistas, o que a Nona Sinfonia representa para o regente: obra monumental, culminante, ou melhor, obra que percorre as profundezas e os cumes. Dela nos aproximamos com o máximo respeito”. Esboçada em 1817, prioritariamente escrita durante o verão de 1818 na diminuta Mödling – localidade que contava à altura com 280 casas -, a cerca de 20km de Viena, seria finalizada em 1819 e publicada no fim daquele ano sob o título Grande Sonate pour le Pianoforte. Para a segunda edição, datada de 1823, receberia o título Grosse Sonate für das Hammerklavier. Período de depressão, dificuldades financeiras, ausência de um mecenas, saúde precária e a surdez doravante permanente. Em Mödling, o pintor Klöber fixaria uma de suas mais divulgadas imagens.

Beethoven morreria em 1827 sem ter tido ao menos o prazer de receber notícias da apresentação pública da Hammerklavier. Seus coetâneos achavam-na “inexpugnável”. O compositor acreditava que os pianistas só a compreenderiam cinquenta anos após a publicação. Franz Liszt (1811-1886) a interpretaria, abrindo doravante o caminho para a sua divulgação. Richard Wagner (1813-1883) escreveria, após ouvir Liszt interpretar duas Sonatas de Beethoven num mau piano: “Eu peço a todos que ouviram as grandes sonatas op. 106 e op. 111, tocadas num círculo íntimo por Liszt, a atentarem para aquilo que sabiam antes sobre suas criações e o que sabem a partir de agora”. Clara Schumann (1819-1896) seria uma das divulgadoras da op. 106. Hans von Bulow (1830-1894), grande especialista beethoveniano, apresentaria a Hammerklavier em Paris, na Sala Pleyel, aos 27 de Janeiro de 1860. Karl Reinecke (1824-1910) escreve: “Não obstante a propaganda enérgica de Bülow, as ‘cinco últimas sonatas’ nunca conseguiram conquistar os favores do público, como o fizeram as mais belas dos períodos anteriores”. Apesar de muitos pianistas ao longo das décadas terem apresentado a integral das Sonatas de Beethoven, poucos se atrevem a apresentar a op. 106 isoladamente em público, não apenas pelo “hermetismo” de sua construção como pela extensão da Sonata, por volta de 45 minutos de duração.

A Sonata nº 29 em Si bemol maior Hammerklavier, op. 106, estende-se em seus quatro movimentos: Allegro, Scherzo, Adagio, Largo-Allegro risoluto. Na magnificência integral da obra, a se considerar o ineditismo no tratamento do terceiro movimento, Adagio sostenuto com a indicação Apassionato e con molto sentimento. Considere-se a extrema concentração emotiva desse andamento de longa duração e que apresenta elementos tão diversificados. O Allegro risoluto final, precedido de um Largo, apresenta uma Fuga, forma utilizada na Sonata precedente (op. 101) e na posterior (op. 110), mas que, na Hammerklavier, adquire a aura da monumentalidade a evoluir em seus 384 compassos!

Com ideias precisas, Désiré N’Kaoua expõe, no encarte que acompanha o CD, algumas de suas competentes ideias sobre a Sonata. Tem interesse sua observação sobre as indicações metronômicas de Beethoven. “Concernente à Sonata opus 106, considere-se que ela é a única sonata (e talvez única obra?) com indicações metronômicas em cada movimento assinaladas pelo compositor: as obras que a precedem, e mesmo as que seguem, comportam somente indicações de caráter (alegro con brio, andante sostenuto, etc.), oferecendo aos intérpretes uma escolha mais extensa. Sem dúvida a vontade de fixar um tempo preciso não era estranha à invenção do metrônomo dois anos mais cedo por J.N.Mälzel; infelizmente, a indicação 138 para a mínima assinalada por Beethoven torna o primeiro movimento ilegível sob os dedos de intérpretes os mais capacitados que desejam respeitá-la. O pianista Paul Loyonnet, em sua magnífica obra sobre as 32 sonatas de Beethoven, declara ser ‘impossível de ser tocada’ nesse tempo. Sob outra égide, a primeira publicação em Londres – Beethoven ainda vivia – indica o mesmo número (138), mas para a semínima, o que também não é possível pela maneira inversa. Penso eu que a realidade se situa entre as duas indicações, a resultar a intenção de Beethoven em ressaltar a pulsação a dois tempos ao invés de quatro”.

Quanto às indicações metronômicas que, a partir das primeiras décadas do século XIX, proliferaram nas partituras, nem sempre há exatidão. Em não poucas missivas trocadas entre autores e editoras ao longo, por vezes as indicações, mercê do esquecimento do compositor em assinalá-las, eram fornecidas sem muito critério. Estou a me lembrar de que na coletânea de Estudos para piano (1985-2015), que idealizei e que receberia 80 Estudos vindos de várias partes do planeta, muitos compostos por autores expressivos, vários chegavam sem a indicação. Consultados, os autores me enviavam a marcação. De um dos mais importantes dentre eles, o ilustre compositor búlgaro Gheorghi Arnaoudov, recebi um magnífico Estudo, Et Iterus Venturus (CD “Éthers de l’Infini”, França, Esolem, 2017), com uma indicação metronômica impossível. Escrevi ao ilustre músico, que retificou imediatamente. Tratava-se de algo bem próximo ao que ocorrera com o genial Beethoven. No caso em pauta, tratava-se também de uma figura que, se adequada à marcação metronômica, inviabilizaria a execução.

A interpretação de Désiré N’Kaoua da Hammerklavier é referencial. O notável pianista soube captar essencialidades da magistral Sonata de Beethoven. Nenhum artificialismo. Gravar aos 86 anos a Hammerklavier, só mesmo após décadas de amadurecimento e equilíbrio. Interpretação maiúscula. Sente-se em sua execução o scholar consciente, atento às estruturas formais da obra sem deixar ao largo a emoção. O respeito de que nos fala Badura-Skoda está presente. Em sendo a Hammerklavier a mais complexa e importante de toda a criação beethoveniana para piano, a execução tem que passar pelo debruçamento analítico profundo, o que torna a performance de Désiré N’Kaoua ainda mais dignificante. Um grande pianista. Em carta que me enviou anexa ao CD, afirma que pretende gravar, até o final deste ano os 21 Noturnos de Chopin!!! Como bem expressam palavras reverenciais em França: chapeau bas (de se tirar o chapéu).

Clique para ouvir o Allegro da Sonata Hammerklavier, op. 106, de Beethoven na interpretação de Désiré N’Kaoua. Os outros três andamentos entram pela ordem logo após o final do Allegro:

https://www.youtube.com/watch?v=VJ5xpPbPG8w&list=OLAK5uy_lFihsvkLmpftPYf7_RL7J18_ttRmJ22ZA

The acclaimed French pianist Désiré N’Kaoua, born in Constantine, Algeria, has recorded, at the age of 86, Beethoven’s monumental Hammerklavier Sonata in B flat major, op. 106.A high level interpretation of that which is the longest, more innovative and “hermetic” of Beethoven’s Piano Sonatas. I congratulate him on this superb recording, a real gigantic task.