Diminuição do público – juventude – racismo
Não corro como corria
Nem salto como saltava
Mas vejo mais do que via
E sonho mais que sonhava
Agostinho da Silva
Insistentemente tenho pontuado, ao longo de mais de treze anos, a gradual, mas irreversível, mudança de comportamento das gerações mais jovens. Impactadas pelo advento avassalador da internet e de todas as suas ramificações, a atenção dessas novas gerações se fixa no imediato. Assim como as transformações vertiginosas das engenhocas que em curtíssimo tempo levam adquirentes desses aparelhos a desprezá-los em detrimento do novo, de maneira análoga a cultura musical não erudita se transforma e “renova-se” a cada estação e aquilo que era ouvido em certo momento é desprezado sem quaisquer ressentimentos logo a seguir. Uma ou outra “música” desse compartimento prossegue sua existência, mais como mote de “cantor ou cantora” bem conhecido, para delírio de seus aficionados.
A Música Clássica ou de Concerto tradicional é basicamente apresentada há séculos e admirada, tendo, entre seus cultores no Ocidente, preferencialmente gerações de faixa etária mais avançada. Após dias a gravar em Mullem, na Bélgica Flamenga, no início da última década, meu amigo Johan Kennivé, magnífico engenheiro de som responsável por minhas gravações desde 1999, convidou-me a ouvir no grande auditório do De Single (circa 900 lugares), na Antuérpia, a apresentação da Symfonie Orkest Vlaanderen, sob a regência do ótimo Etienne Siebens. Fiquei ao lado de Johan durante a apresentação da 3ª Sinfonia de Mahler. Chamou-me a atenção a plateia lotada. A impressão era de um extenso campo de neve… Público entusiasta, mas praticamente da terceira idade.
Artigo publicado no periódico francês online “Valeurs” aos 22/06/2020, sob o título “Trop blanche: la musique classique, nouvelle sible des antiracistes”, aponta, entre outras considerações, para a diminuição sensível do público mais jovem nos concertos. Reacende problemática que se acentua no Ocidente.
O texto inicial é claro, sem subterfúgio: “É um fato concreto: a música clássica não mais desperta interesse do grande público, ainda menos dos jovens. Estudo realizado pelo ‘National Endowment for the Arts’ indica que o público que assiste a um concerto de música clássica, a representar 13% em 1982, caiu para 8,6% em 2017. Para aqueles com menos de 30 anos a queda foi ainda maior, despencou de 27% para 9% no mesmo período. Face a essa constatação, os profissionais do setor apelam à renovação, explica o ‘Le Figaro’. E o desafio maior, segundo eles, é o de mudar a imagem de um domínio muito branco”. Segundo dados obtidos, afirma o periódico “que nos Estados Unidos a música clássica é julgada muito pouco ‘inclusiva’ e considerada como ‘privilégio’ da população branca”.
Têm interesse essas afirmações. Antes de abordar o domínio “muito branco” (tema do próximo blog), diria que, excluindo-se conjuntos ou intérpretes extremamente mediáticos, a grande maioria das apresentações de música clássica se dá em espaços pequenos, para 100 a 500 ouvintes. Nessas salas se apresentam intérpretes pelo mundo e assim mesmo há redução do público. Estou a me lembrar da sala da De Rode Pomp em Gent, na Bélgica. Comportava cerca de 150 lugares e a organização promovia mais de 120 concertos anualmente. Apresentei-me mais de dez vezes nessa sala ao longo dos anos. Conversei com muitos músicos solistas ou de câmara que se apresentavam nessas programações – belgas, franceses, russos… – tantos deles excepcionais, mas fora do grande circuito. Sentiam a diminuição física dos espaços como realidade para os não mediáticos e a presença maior de ouvintes da terceira idade. Igualmente concordavam com o progressivo desinteresse dos mais jovens pelos concertos de Música Clássica. Anos atrás, De Rode Pomp encerrou suas excelentes atividades, compostas de concertos, gravações para selo da casa e galeria de arte, La Perseveranza. Em Portugal, Bélgica e França apresentei-me em várias dessas salas menores que promovem récitas, inclusive no Museu Debussy em Saint-Germain-en-Laye, cidade natal do compositor. A sala do Museu comporta cerca de 100 pessoas e é concorrida.
O fluxo sonoro clássico ou erudito, como também é conhecido, acelera-se em países do Oriente. Não há presentemente, no grande volume de jovens oriundos da China, Japão e Coréia do Sul que têm alcançado notoriedade no Ocidente, crítica à Música Clássica como pertencente a uma determinada raça. A cada ano é mais praticada nesses países. Na China, dezenas de milhões de crianças e jovens estudam piano!!! Meu dileto amigo e fundador do Instituto URBEN, Philip Yang, há tempos falou-me algo a impressionar. Tratava-se de artigo publicado no New York Times em 03/04/2007: “O entusiasmo chinês sugere o potencial de um mercado crescente para gravações e apresentações ao vivo, enquanto que o envelhecimento dos admiradores de música erudita e a venda de discos em declínio preocupam muitos profissionais na Europa e nos Estados Unidos.
Gravações de música clássica no Ocidente, vendidas há 25 anos às dezenas de milhares, ficaram reduzidas apenas a milhares. Mais profundamente, os executivos da música clássica dizem que essa forma de arte está sendo cada vez mais marginalizada em um mar de cultura popular e novas mídias. Um número menor de jovens ouvintes americanos segue o caminho da música clássica, em grande parte devido à falta de educação musical que era comum nas escolas públicas há duas gerações. Como resultado, muitas orquestras e casas de ópera lutam para encher suas salas.
A China, com cerca de 30 milhões de estudantes de piano e 10 milhões de estudantes de violino, está em uma trajetória oposta. Agora, testes abrangentes para entrar nos principais conservatórios atraem quase 200.000 estudantes por ano, em comparação com alguns milhares na década de 1980, de acordo com a Associação Chinesa de Músicos.
O lado do hardware também explodiu. Em 2003, 87 fábricas produziam instrumentos musicais ocidentais. No ano passado, o número havia aumentado para 142, produzindo 370.000 pianos, um milhão de violinos e seis milhões de violões. A China domina a produção mundial dos três”.
E qual é o repertório estudado progressivamente desde a infância e vindo a público? O ocidental, preferencialmente europeu. No famoso Concurso Internacional de Piano Chopin em Varsóvia em 2015 viu-se, entre os cinco primeiros laureados, quatro orientais!!! Nos principais concursos internacionais de piano ou violino existentes no hemisfério norte raramente não se encontram intérpretes do Extremo Oriente entre os laureados.
Que houve diminuição de frequentadores em salas e teatros que interpretam Música Clássica no Ocidente é fato. Um deslocamento geográfico do gosto pela Música Clássica tem-se acentuado em direção ao Extremo Oriente. O número extraordinário de estudantes entusiastas já garantiria a lotação nas salas de concerto. Se a menos de duas décadas os intérpretes orientais que se deslocavam para o Ocidente vinham muitíssimo bem preparados sob o aspecto técnico-pianístico, mas tendo tantas vezes compreensões questionáveis sob o conteúdo musical, assiste-se presentemente, mormente na China, Taiwan e Coreia do Sul, à assimilação progressiva da cultura musical voltada à Música Clássica sob as várias especificações, analítica das partituras e sócio-cultural referente aos períodos históricos da criação composicional. Na China está-se distante da revolução maoísta iniciada em 1966, e que se prolongou de fato por mais de uma década, período em que a cultura erudito-musical do Ocidente foi execrada. Em pungente livro, a notável pianista chinesa Zhu Xiao-Mei narra suas vicissitudes nesse trágico período (vide blog La Rivière et son secret. 06/11/2009). Presentemente Xiao-Mei vive em Paris. O Japão estaria fora dessa realidade, pois há muitas décadas já professava com competência o repertório ocidental.
Não deixa de ser extraordinária a apreensão da Música Clássica pelo Extremo Oriente. Conservatórios, intérpretes, orquestras e salas amplas abrigando a criação musical erudita, uma das fontes essenciais da cultura humanística.
Que o jovem ocidental, hoje, basicamente busca outras manifestações “musicais” é também fato. Contudo, a Música Clássica é e continuará a ser, através da História, mesmo que a sofrer diminuição de público no Ocidente e ataques movidos por ideologias, o testemunho de que a raça humana conseguiu atingir níveis inefáveis sob o aspecto humanístico e espiritual.
Comments on the opposite directions taken by classical music in Western and Far Eastern countries — China in particular — in the last decades. An article published by the The New York Times in 2007 sums up the situation perfectly: “… China has become a considerable force in Western classical music. Conservatories are bulging. Provincial cities demand orchestras and concert halls. Pianos and violins made in China fill shipping containers leaving its ports”. On the other hand, younger generations in the West have grown alienated from classical music, increasingly excluded from dominant music media by financial sponsors in favor of pop-music. Spaces for soloists and orchestras dwindle since senior audiences — the public that still listens to classical music today — are not enough to fill concert halls. However, my belief is that classical music will continue to be, even with a drop in audience attendance and attacks fueled by ideologies in the West, the testimony that men succeeded in achieving the ineffable in terms of their cultural heritage.
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