As vicissitudes de um soldado pianista
O pior sofrimento está na solidão que o acompanha.
György Cziffra
Se os tempos passados na Academia Franz Liszt foram decisivos para o amadurecimento pianístico de György Cziffra, a IIª Grande Guerra veio interromper o percurso do intérprete. Recrutado para o serviço militar, tem de preparar-se em poucas semanas para ir ao front combater o exército da União Soviética, pois o Reino da Hungria integrava o Eixo Berlin – Roma – Tóquio. Cziffra narra em “Des canons et des fleurs” (Paris, Robert Laffont, 1977) sua epopeia. O título da autobiografia teria origem na frase atribuída a Robert Schumann após ouvir Liszt, “Canhões sob um campo de flores”. Daquela infância fragilizada física e socialmente aos estudos na Academia Franz Liszt, Cziffra viu-se “jogado” em ambiente rigorosamente estranho à sua existência até então.
Escrito tardiamente, seria possível que narrativas pungentes tenham sofrido influência do ambiente que o cercava. Comentar algumas das vicissitudes vividas por György Cziffra se faz necessário, pois, ao que se conhece, nenhum pianista viveu sucessão de agruras tão violentas. A título de correlação mencionaria excelentes pianistas que estiveram em campos de concentração ou de “reeducação”: Lili Kraus, igualmente húngara (1903-1986), a pianista chinesa Zhu Xiao-Mei, nascida em 1949 (vide post: “La Rivière et son Secret” (06/11/2009), e o intérprete polonês Wladislaw Spilman (1911-2000), que escreveria Morte de uma cidade, mais tarde reeditada sob o título O Pianista, narrativa de sua história nos guetos de Varsóvia. Roman Polanski, a partir do relato, dirigiria o premiado O Pianista.
A inaptidão para as tarefas da caserna fá-lo não observar determinadas instruções: “A preparação à disciplina militar, que não é senão a arte de disciplinar o civil após domá-lo, pareceu-me uma aberração inexprimível”. Lembrar-se-ia da saudação que era obrigado a realizar para um cabo instrutor não satisfeito com seus erros, “uma espécie de bruto de aspecto pré-histórico: levantar a perna bem alto, descendo-a e batendo três vezes no chão, uma vez a saudá-lo, outra dando meia volta e a terceira vez para caminhar em direção ao objetivo designado”. Essas e outras inobservâncias valeriam sua “prisão” intramuros durante curto período, em que apenas lhe davam 300 gramas de pão e água. As palavras de uma alta patente, que apropriadamente denomina César, mais bruto do que o cabo, a vaticinar o seu quase certo fim no campo de batalha, deixam-no ainda mais deprimido. Tão logo reintegrado aos que deveriam partir provoca uma queda diante de todos para evitar o front, sabedor de que, “desmascarado às vésperas da partida, estaria definitivamente curado pelas palavras reconfortantes que o padre do tribunal militar lhe diria antes de sua execução sumária”.
Logo seria capturado por partisans russos, que o consideraram prisioneiro de guerra e desertor, pois estava sem armas. Passaria período sombrio em uma mina insalubre com muitos outros infelizes. Ludibriando um dos guardas consegue fugir e vagueia por algum tempo em alguma parte do território ucraniano.
Cenas pungentes são narradas por Cziffra que, durante a fuga, entra em uma igreja, descrevendo com pormenores a sua construção. Feridos de guerra húngaros e alemães se amontoavam, muitos mutilados. Ao dizer que era pianista a um dos médicos, este lhe pede para tocar órgão, a fim de amenizar sofrimentos. Realiza várias improvisações, inclusive do hino húngaro, mas, ao ouvir tiros de canhão ao longe, sorrateiramente foge a correr e refugia-se numa floresta próxima. De lá assiste a um poderoso tiro de canhão lançado pelo exército soviético, que destrói a igreja que a seguir consome-se em chamas.
Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de François Couperin, La Bandoline:
https://www.youtube.com/watch?v=GKq4KGpt5Ho
Errando pela floresta, sem rumo e desorientado, deixa-se recapturar pelos partisans e retorna desesperançado à mina por período que não sabe precisar, pois “os relógios de todos foram confiscados desde a chegada e o conceito tangível do tempo passou a não mais existir para nós”. Posteriormente emerge dos subterrâneos com os outros condenados, a fim de longa caminhada a pé durante mais de uma semana, levados por soldados soviéticos a um campo de concentração. Nesse dramático caminhar recebiam pão preto duro e cebola crua. Comenta: “prevendo a marcha do dia seguinte, ninguém deixava sequer uma migalha da ração, sabendo que um desmaio durante o percurso seria tratado pelos russos como pelos alemães com uma bala na nuca”. Ao sair do bloco que apoiava o Eixo, a Hungria se “aproxima” da União Soviética e, após a estada no campo, György Cziffra é levado com outros húngaros ao seu país natal para se reincorporar ao exército.
Na caserna os tempos melhoram para György. Quando convidado pelo comandante para se apresentar como pianista durante uma festividade, reluta inicialmente, pois há anos não mais tocava, mas aceita. Teve dez dias para se preparar, após anos sem tocar e, nervoso antes de entrar em cena, aceita tomar uma bebida alcoólica fortíssima. Sente-se melhor e bebe mais de uma dose, o que o faz entrar em cena não ziguezagueando, mas confuso. Escreve: “Não me lembro sequer de ter saudado o público e, desde o início, verifiquei que minha execução estava inqualificável’. Lamentaria durante o resto da existência ter tocado pessimamente nessas condições, mas sem aferição de um público não exigente. Seu testemunho não deixa dúvidas da seriedade com que encararia futuramente a consagrada carreira: “A lembrança de minha desventura, qual uma chaga ardente, consumia o meu de profundis e, durante muitos anos após, assombrava meus dias e sobretudo minhas noites. Na verdade, foram necessárias umas boas décadas de atividade profissional irrepreensível para esquecer. Foi o único unguento capaz de cicatrizar e apagar definitivamente o que restou desse estigma interior”.
Após tratativas que resultaram, György Cziffra consegue desligar-se do exército e, reencontrando sua mulher e filho, consegue subsistir tocando em cabarés, casas de chá, sempre improvisando com maestria. Apresentando-se com uma jazz-band americana, músicos e público o saudavam com entusiasmo. O regente do conjunto comparou-o ao extraordinário pianista de jazz Art Tatum.
Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, uma de suas improvisações:
https://www.youtube.com/watch?v=usi0lkfIhjw
Apesar dos sucessos nessa atividade musical, tentaria sair da Hungria com a mulher e o filho. Presos, foram separados e durante três anos, de 1950 a 1953, Cziffra permanece detido em um campo disciplinar. Não há como não pensar em Sisuphos ao se ler a passagem: “Durante dez horas, dia após dia, subia blocos de sessenta quilos do térreo ao sexto andar de uma universidade em construção. Devido ao esforço, os músculos dos meus punhos ficaram de tal maneira dilatados que era obrigado a colocar apertadas munhequeiras para evitar inflamações”. Teve de usá-las durante décadas. Confessaria que, no futuro, “muitos do métier passaram a usar os braceletes de couro, persuadidos de que se tratava de uma invenção astuciosa de minha parte, destinada a favorecer a alta virtuosidade”.
Cumprida a pena, sem perspectivas, retoma sua atividade como improvisador. Cônscio de sua qualidade técnico-pianística ímpar, teve a chance de ser ouvido nessas noitadas por influente personalidade oficial, que o convida para reunião cujo resultado o deixa esperançoso, pois seria engajado oficialmente para uma série de concertos. Narra com sinceridade as suas “deficiências” estilísticas, que o fazem estudar, até as apresentações meses após, dez horas por dia. Lembrar-se-ia de que, após seus longos anos de infortúnio e apesar de sua técnica excepcional, “tornei-me um anticristo nas improvisações que multiplicavam as dificuldades por dez”. Apesar do sucesso incontestável junto ao público, tomou consciência de que teria árduo trabalho junto ao repertório sacralizado. “Cada vez que voltava ao camarim, sentia-me desmoralizado pela quantidade de imperfeições e a noção da distância que ainda teria de percorrer, persuadido de que um artista digno desse nome não confunde a visão de uma verdade com a demonstração dessa verdade”. A acolhida pública fê-lo recuperar a fé.
Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Chopin-Liszt , Canto Polonês.
https://www.youtube.com/watch?v=ALvqdKD-1Bc
Ressalte-se sua opinião sobre parte da crítica que, independentemente de suas performances, não esquecia seu passado. Comenta: “Nada tenho contra a crítica, entendendo-a indispensável, mas acredito que ela deveria ser exercida por profissionais, ou seja, por artistas que, em sendo eles próprios produtivos, sabem do que falam”. É ácido em suas observações: “Exceções à parte, esses necróforos de espírito estreito, que formam legião, são reconhecidos facilmente por sinais distintos: orgulho incomensurável e pensamento derisório”.
Em sua última apresentação na Hungria interpretou o dificílimo IIº Concerto para piano e orquestra de Béla Bártok, que teve de preparar em pouquíssimo tempo. Após a apresentação, eram evidentes os sinais a apontar para a Revolução Húngara de 1956, que se estendeu de 26 de Outubro a 10 de Novembro até ser sufocada pelos tanques soviéticos. “As duas mil pessoas presentes ao concerto saíram da sala cantando o hino nacional, arrancando das ruas tudo o que não tivesse as únicas cores nacionais”. Aproveitando a brevíssima abertura das fronteiras, György Cziffra finalmente consegue fugir com mulher e filho. “Alguns dias após nossa fuga dei meu primeiro recital em Viena, apresentação que foi saudada, pelo público e pela crítica, como a performance de um mestre”. (tradução: JEM).
No terceiro post, abordarei o início da grande carreira de György Cziffra a partir de seu porto seguro, a França, assim como seu projeto filantrópico, “restaurar e glorificar a capela real de Saint-Frambourg em Senlis, não apenas para a minha música, mas dedicada a todas as artes”.
Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Robert Schumann, Toccata:
https://www.youtube.com/watch?v=ztvEgLjZWYU
I believe there has been no celebrated pianist who has gone through so much adversity as György Cziffra. In this blog I mention, with quotes from Cziffra himself, his various arrests and hardships endured while serving in the Army, both during and after World War II.
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