Carreira consagrada e projeto cultural a envolver a Chapelle Royale de Senlis

É certo que, para um artista que carrega uma mensagem, devolvê-la numa hora fixada
diante de um público que se pretende numeroso,
ao menor estremecimento das fibras de sua sensibilidade resultará um estado entre a ação das graças
e o suplício de Tântalo.
Transfigurado pela pujança de sua visão,
ele entra em incandescência
até se tornar a encarnação viva da revelação fugidia.

György Cziffra
(“Des canons et des fleurs”)

Neste último post sobre o pianista György Cziffra, três temas têm interesse maior: a carreira vertiginosa que assombraria plateias, o hercúleo projeto que compreende a guarda e restauração da Chapelle Royale de Saint-Frambourg em Senlis e a intensa relação com seu filho, György Cziffra Jr., regente de talento.

Fugindo do regime húngaro em 1956, no início da revolução húngara, que em poucas semanas foi sufocada pelos tanques Soviéticos, Cziffra, a mulher Soleika e o filho se refugiam na França, país que concederá futuramente a cidadania aos três. Sua primeira apresentação naquele ano foi fulminante. Impactavam-se as estruturas conceituais da denominada escola francesa de piano. Jamais tinham ouvido tão grande virtuosidade em um pianista. Alain Lompech comenta: “György Cziffra tinha um ar estranho e dez vezes mais dedos do que seus contemporâneos” (“Les grands pianistes du XXº siècle”, 2012). Doravante sua carreira foi meteórica, apresentando-se no Ocidente e no Oriente diante de plateias extasiadas por suas performances singulares.

Esse assombro persistiria durante certo tempo e, posteriormente, o conhecido esprit de corps de alguns colegas e da crítica tentaria minimizar sua atuação, mormente no fator estilo. Alain Lompech avoca: “sua colega Martha Argerich (1941-), que amou Cziffra na primeira vez que o ouviu através de discos nos anos 1950, contou que sentiu o desprezo da classe em relação a ele quando transmitiu toda a sua admiração a músicos célebres. Responderam-lhe ‘sim, o cigano…, enfadonho’ ”. No post anterior inseri palavras ácidas de Cziffra sobre a crítica. Corroborando certos posicionamentos quanto às suas performances extraordinárias, que ensejaram opiniões até desairosas devido seguramente à sua formação inicial e “autodidata”, fora dos padrões de conservatórios, pareceria inacreditável a ausência de seu nome, sequer como menção, nos livros de Harold Schonberg, “The great pianists” (1966) e de Elyse Mach, “Great contemporary pianists speak for themselves” (1991), mormente deste, sabendo-se que em “Des canons et des fleurs” Cziffra tanto escreveu! Incontáveis outros pianistas respeitáveis são mencionados, mas inúmeros sem a dimensão de Geörgy Cziffra.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de J.S.Bach a Toccata e Fuga em ré menor:

https://www.youtube.com/watch?v=0O7mb0soC3g

A atividade do pianista não se resumiria somente à vertiginosa carreira. Ao receber a cidadania francesa, passa a utilizar o prenome Georges e não György. Após as agruras mencionadas no blog anterior, busca retribuir a acolhida em França e tem interesse o diálogo com André Malraux (1901-1976), notável escritor, pensador, historiador e ministro da Cultura (1959-1969) no governo de Charles de Gaulle. György Cziffra foi aconselhar-se com Malraux, a fim de sugerir essa contribuição que entendia necessária, no caso, a restauração de um templo:

“- Seu projeto vos honra… mas não deve ser realizado em Paris, pois não mais há na cidade um pedacinho de terreno onde a intenção do homem não colocou o pé. Talvez em Senlis, que não é uma cidade como as outras. Senlis é bem mais do que isso, é o berço da França. Creio ser a mas antiga dessas igrejas, a antiga Chapelle Royale de Saint-Frambourg, obra-prima hoje periclitante. Outrora foi o feudo dos primeiros Capetianos (final do século X). Presentemente está na iminência de desabar. Vandalizada durante a Revolução, serviu de templo da Razão, forja, loja de forragem, manejo de cavalos, caserna de bombeiros e atualmente… estacionamento pago! Deus sabe como ela é bela. Se você conseguir revelá-la, a França lhe deverá uma vela honrosa, digo-lhe francamente. Mas, há necessidade de muito dinheiro. Você tem o suficiente?”

Após a negativa de Cziffra, a dizer que poderia ao menos iniciar a recuperação, imediatamente Malraux o interrompe com a afirmação de que seria necessário muito dinheiro, indagando como poderia fazê-lo: “Seria com os seus dez dedos que pensa reerguer a capela real de suas cinzas?”. “Sim, respondeu Cziffra”.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Franz Liszt, Grand Gallop Chromatique:

https://www.youtube.com/watch?v=a-fyNP7y680

O estado da Chapelle Royale era deplorável: Paredes rompidas, espaços vazios sem vitrais que se tornaram abrigo, segundo Cziffra, para “corvos, centenas de pombos, milhares de pardais e gatos negros que doravante teriam de buscar abrigo em outro lugar”. Tudo a ser restaurado e… a carreira vertiginosa a dar alento.

Ao iniciar a empreitada com seus próprios recursos, vê-se cercado por “pilha de faturas com tantos zeros que me fizeram estremecer. Sou crente e habitualmente jamais rezo para pedir algo pessoal, mas sim pela saúde e felicidade de meus familiares. Neste dia rezei para São Francisco de Sales, padroeiro da igreja justo em face de minha janela, para que me desse forças para continuar, pois somente um milagre poderia fazer com que pudesse cumprir sozinho os encargos massacrantes desse projeto, mormente naquele período em que meus compromissos pianísticos eram imensos e eu não podia parar”. Desalentado, refletia sobre os quase intransponíveis trabalhos que estavam anunciados, quando sua esposa Soleika, imprescindível na condução dos trabalhos, comunica que donativos chegavam, primeiramente para os vitrais, um a representar Santa Elizabeth da Hungria e, outro, São Francisco de Sales. Saliente-se que o escultor e pintor Joan Miró (1893-1983), amigo do pianista, ofereceria também vitrais para a Chapelle Royale. Outras tantas doações permitiram, após longo processo de reconstrução, a abertura da Chapelle Royale de Saint-Frambourg para apresentação de recitais, concertos com orquestra, corais, exposições e masterclasses. O Festival de Senlis, sonho de György Cziffra, prossegue até o presente.

A proposta de André Malraux possibilitou a utilização por 40 anos da Chapelle Royale, e os esforços hercúleos do pianista húngaro-francês no sentido de reconstruí-la foram coroados. Para tanto, foi criada em 1975 a Fundação Georges Cziffra, importantíssima para a divulgação e recepção de fundos. Somente em 2016, concretizando-se o sonho do pianista, a Fundação Cziffra adquiriu a Chapelle Royale Saint-Frambourg que, na realidade, já desde a década de 1970 era a sua sede histórica.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Franz Liszt, Valsa-Impromptu:

https://www.youtube.com/watch?v=nRD5RralCgA

Um dos grandes prazeres de Cziffra era tocar sob a regência de seu filho, György Cziffra Jr. Em 1981, o jovem regente morre em incêndio em seu apartamento. Cziffra não mais tocou com orquestra e sua carreira vitoriosa aos poucos perderia a denominada joie de vivre. O brilhantismo, sempre presente, doravante ficaria marcado pela nuvem da nostalgia. György Cziffra morreu em 1992, vítima de ataque cardíaco.

Clique para ouvir, na memorável interpretação de György Cziffra ao piano, sob a regência de György Cziffra Jr. a conduzir a Orquestra Nacional da ORTF, as Variações Sinfônicas de Cesar Franck:

https://www.youtube.com/watch?v=offejPoTAzo

A interpretação de György Cziffra ultrapassa os ditames tradicionais em aspectos fulcrais. Considerando-se a atualidade que, graças à profusão de intérpretes das novas gerações, mormente da legião de pianistas do Extremo Oriente que impactam o Ocidente munidos do técnico-pianístico irrepreensível e amparados por fortes holofotes, que possibilitam às câmaras fixarem o gestual sempre mais acentuado, ouvir Cziffra, hoje, é desfrutar de algo raro. Sem contar o fenômeno absoluto que ele representa, sem explicação plausível. Há em sua execução algo de telúrico, uma anima não encontrável em outros pianistas da nova geração. A constatação de Martha Argerich se expande até os dias atuais e não são poucos os “puristas” que o veem de maneira desabonadora. Como exposto no blog anterior, Cziffra fez sua autocrítica, preparou-se leoninamente após as vicissitudes para penetrar no âmago das obras e dos autores estudados, saindo-se vencedor. O longo mergulho no de profundis da criação musical não foi realizado sem sacrifícios. Contudo, o sabido desabono de alguns intérpretes baseia-se, possivelmente, na impossibilidade de alcançarem eles próprios as performances de György Cziffra, sobretudo no quesito técnico-pianístico. Foi ele um caso à parte na história da interpretação pianística. Entre as suas incontáveis qualidades, primeiramente se destaca a virtuosidade rigorosamente singular. Acrescentem-se a clareza de sua execução, mesmo nas passagens mais transcendentais da literatura pianística; a extensão dinâmica em seus limites; a pedalização econômica nas culminâncias da virtuosidade; o senso do rubato; a sensibilidade que não esconde um passado dramático; o gestual discretíssimo; a sinceridade na execução das obras. Nada é apresentado para impactar o público, pois sua interpretação, mais precisamente nas obras de grande virtuosidade, jorra na intensidade de lavas vulcânicas.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra, de Chopin, a Fantaisie Impromptu op. 66:

https://www.youtube.com/watch?v=ow1c8esX3bQ

No pórtico dos 83 anos sensibiliza-me sempre a epopeia, o desprendimento e a generosidade de um pianista excelso que, em país que o acolheu, lega uma herança musical e física que o dimensiona como rigorosamente ímpar entre todos aqueles que se destacaram nessa “Voie Royale” (extraordinário livro de André Malraux), que também foi a grande senda percorrida pelo artista György Cziffra. Ele mesmo comparou sua futura empreitada à criação de André Malraux.

György Cziffra compôs algumas obras, assim como transcreveu para piano inúmeras outras de conhecimento público, configurando tantas delas numa escritura transcendental.

Ao finalizar o terceiro post sobre György Cziffra, exibo uma sua gravação realizada em 1934, registro incompleto, diga-se, em que o menino se apresenta com o traje de marinheiro oferecido pela irmã, tão comum nas crianças de então. Prenunciava-se a singularidade.

Clique para ouvir, na interpretação de György Cziffra aos 13 anos de idade, de Franz Schubert, o Impromptu op 90 nº 4:

https://www.youtube.com/watch?v=-rDoRRKXLSY

In this third post I address the celebrated career of György Cziffra after his escape from Hungary to France; the Chapelle Royale project in Senlis; the premature death of his only son, the conductor György Cziffra Jr., and some fundamental aspects of his interpretation.