Pinacoteca Benedito Calixto, Santos

Todo o fim é contemporâneo de todo o princípio,
só a nossos olhos vem depois.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Para o derradeiro recital, que se dará no dia 31 de Agosto, preparei um folder com texto que busca expressar as razões. Alguns aspectos já foram tratados em blogs anteriores. Todavia, necessário se fez escrever um texto concentrado e de menor dimensão. No folder há o programa a ser apresentado.  Ao longo da existência, sempre busquei um propósito na escolha das peças a serem interpretadas. Nesse derradeiro recital, não fujo a esse hábito. Três composições do inspirado Almeida Prado (1943-2012), santista que estaria a completar 80 anos, e três outras de Gilberto Mendes, (1922-2016), santista da gema e creio que o maior nome da composição brasileira na segunda metade do século XX. Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Alexandre Scriabine (1872-1915) e Claude Debussy (1862-1918) compõem o programa. Quanto à Franz Liszt (1811-1886), há algo ritualístico. Estava nos meus 19 anos quando do primeiro recital em Santos, aos 20 de Novembro de 1957 no Teatro Coliseu, interpretando, entre outras obras, as Duas Lendas do compositor, “São Francisco de Assis falando aos pássaros” e “São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas”. Neste último recital volto a interpretar essas magníficas criações lisztianas. Princípio e Fim.

Transmito ao leitor o texto constante no interior do folder:

“O Tempo insubornável, no dizer do notável escritor português Guerra Junqueiro, aponta para o inexorável. Se não abrupto, o Tempo determinante do fim de uma atividade deveria sempre ser gestado a partir da razão. Prolongado, no desiderato de se atingir o limite incerto, pode ser nostálgico ou desairoso. Planejar o instante do acontecido, a finalização de uma atividade que acompanha o intérprete desde a primeira década da existência, configura decisão drástica ou resolução harmoniosa. A composição originária na mente do compositor, e por ele edificada, passa pela ponte indispensável, o executante, até o destino derradeiro, o ouvinte. A intermediação do intérprete nesse triângulo é passageira. A origem da palavra é latina, interpres, interpretis. O Dicionário Moraes da Língua Portuguesa (8ª ed., 1891) assinala, entre as atribuições do termo, ‘intérprete de sonhos’. Não seria esse um dos atributos do intérprete? A criação excelsa permanece íntegra, imutável no silêncio da partitura e o executante tem a dádiva de transmiti-la a quem a recebe. E respeitá-la. Todavia, o Tempo do intérprete é infalível. Como em uma maratona de revezamento, o bastão será passado para a geração sequente.

Acreditava eu findar voluntariamente a apresentação pianística em público. Faltava determinar o quando. Aos 85 anos, após dois anos de pandemia sem apresentações, mas que me fizeram refletir sobre o fim que se avizinhava, menos por problemas físicos ou da mente, mas a pensar no natural declínio que a passagem do Tempo determina, escolhi o momento do término. Em Maio despedi-me da Europa em dois países que preponderam no meu universo de afetos: Bélgica, em cidade basilar, Gand, e Portugal, tantas foram as localidades do meu país paterno visitadas ao longo das décadas. Se escolhi Lisboa como paradigma final, a decisão tem algo de simbólico e ritualístico, pois foi nessa bela cidade que dei meu primeiro recital na Europa, aos 14 de Julho de 1959. Não posso me furtar à lembrança de Paris, cidade na qual recebi de mestres excelsos a formação pianística e teórica. Sem esse aprimoramento, lacunas intransponíveis poderiam advir. Em vários outros centros europeus e da América do Sul me apresentei, contudo sem ter logrado laços afetivos porventura duradouros, mercê da brevidade das estadias.

Ter escolhido Santos para o recital último da minha atividade pianística tem razões subjetivas. Sem jamais ter tido empresário, fato que poderia interferir no meu desiderato de penetrar em repertório ‘oculto’ do passado ou da diversificada criação contemporânea, distanciei-me de plateias mais convencionais. Sob outra égide, sempre apreciei prioritariamente as salas menores e nesse quesito estou a me lembrar do grande pianista Artur Schnabel (1882-1951), que também assim pensava. São escolhas. Na bela e aconchegante Pinacoteca Benedito Calixto, nesta Santos histórica, vivi alguns dos momentos mais sensíveis, sempre com a presença do diletíssimo e saudoso amigo Gilberto Mendes, que me privilegiou ao longo das décadas com a dedicatória de 30 peças para piano, todas apresentadas em público com a sua presença. Sentados à primeira fila da sala, Gilberto e sua esposa Eliane enriqueciam meu afeto. Em recente mensagem, Eliane me escreveu: ‘Só de pensar nas encomendas que você fez a tantos compositores, e insistentemente, como dizia o Gilberto, sentíamos o seu prazer em inovar e incentivar a criação, que muitas vezes se encontrava adormecida dentro dos compositores, não fosse você a acordá-los’. Essa foi uma das minhas alegrias ao ‘provocar’ criadores e deles receber cerca de 150 composições de vários cantos do planeta.

Finda a atividade pianística pública, mas não a intimidade com o instrumento. Desde sempre afirmo que a respiração não pede férias e o piano está amalgamado à minha existência. Certamente por vezes, em reunião íntima, continuarei o diálogo. Há tantas obras a serem visitadas e quantas delas escondidas em arquivos! Aprofundamentos musicológicos continuarão. Razão fundamental que me acompanha desde as origens. Os blogs, ininterruptos desde Março de 2007, continuarão seu fluxo hebdomadário e dois livros já estão em ebulição em minha mente.

Parafraseando o notável espiritualista Thomas Merton (1915-1968), ‘homem algum é uma ilha’, foi uma dádiva ter cruzado durante a trajetória com figuras que me ajudaram a compreender a razão das escolhas, a começar pela importância da família, Regina, há 60 anos a entender fraquezas e acertos de um ‘intérprete de sonhos’, como reza o Dicionário, e as resultantes três gerações que nos ajudam a contemplar a vida como um maravilhamento.

Responsável pelo convite para a récita em Santos, o dileto amigo Flávio Amoreira, notável escritor, poeta e crítico literário, já antevia a minha aceitação para esse prazeroso final. A aura de Gilberto Mendes foi o elo”.

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, “Sonatina à la Mozart” (1951), na interpretação de J.E.M.:

(382) Gilberto Mendes – Sonatina à la Mozart – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Antes de minha viagem à Bélgica e Portugal para meus últimos recitais, que marcaram as despedidas das apresentações públicas em solo europeu (Maio e Junho), nossa filha Maria Fernanda me pediu para pousar as mãos sobre uma mesa. Seu desenho, com significativa dedicatória, diz muito.

No próximo blog escreverei sobre a derradeira apresentação público-pianística. Continuarei a tocar para círculo de amigos, pois o piano está amalgamado ao meu pulsar. É uma dádiva perene a dedicação à Música, que, segundo Stravinsky ‘… é um elemento de comunhão com o próximo – e com o Ser’. A publicação se dará no dia 2 de Setembro.

Clique para ouvir, de Almeida Prado, “Profecia em forma de Estudo, nº 1 – Estudo de ressonâncias” (1988), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=jXlZwhrNnog

On my last recital on August 31st in Santos, when I will put an end to my public piano performances at the beautiful Benedito Calixto Art Gallery. In a leaflet for distribution, which is the subject of this blog, I explain the reasons for choosing the city of Santos to end my career, which has given me so much joy over the decades.