René Desmaison e sua Incríveis Performances

Récompense suprême d’une incompréhensible passion.
René Desmaison

Não são poucos os posts sobre montanhismo. Reiteradas vezes tenho confessado meu fascínio sobre o tema, mormente quando escrito por competentes alpinistas que viveram experiências dramáticas, trágicas ou triunfantes. Creio que a vida em parte sedentária faz-me viajar no imaginário, desde a juventude, a paraísos impossíveis. Intrépidos aventureiros, “conquistadores do inútil”,  segundo Lionel Terray, têm narrativas não desprovidas da presença da morte à espreita, sempre, proporcionando ao leitor que aprecia essa literatura momentos de profundo interesse. Já desfilaram em posts anteriores Jan Krakauer, João Garcia, Waldemar Niclevics, Vitor Negrete, Sylvan Tesson e André Poussin (sob outra égide), Maurice Herzog, Jamling Tensing Norgay, Thomaz Brandolin, narrativas sobre Malory e Irvine e mais outras histórias. Mínima literatura, que está a se enriquecer paulatinamente.

Quase todos os temas dos livros percorridos buscam os  altos cumes do planeta, os denominados 14 acima dos 8.000m. O homem a buscar quase imperiosamente o desafio frente à morte, a preferenciar o pico mais elevado. Tanto é verdade que o Everest (8.848m) é incomensuravelmente mais procurado por alpinistas profissionais e amadores do que o K2 (8.611), a pouco menos de duas centenas de metros abaixo. Recordes como metas. Ilusões que se concretizam ou se desfazem, por vezes tragicamente. Todavia, é cada vez maior a vontade do risco empreendida por alpinistas de toda sorte. Há pouco escrevi sobre o excepcional alpinista português João Garcia, que conseguiu atingir os 14 cumes acima dos 8.000m. Enviou-me gentil carta, o que muito me honra.

Geralmente, os livros sobre grandes aventuras nas montanhas partem do projeto a ser realizado, dos preparativos, da empreitada, do êxito ou da desilusão. René Desmaison (1930-2007), em seu livro Les Forces de la Montagne (Paris, Hoëbeke, 2006, 381 pgs.), teve a feliz ideia de nos fazer conhecer as origens originárias de sua vocação absoluta pelas montanhas, a escolher majoritariamente os temíveis paredões. Sua infância já estaria marcada por determinadas rebeldias e atrações pelas pequenas alturas, peraltices inusitadas, desavenças em sala de aula, enfim, René foi um verdadeiro enfant terrible. A morte da mãe obrigou-o a seguir seu padrinho a Paris. Amizades da juventude levaram-no até os rochedos de Fontainebleau e a paixão pelas desafiadoras montanhas instalou-se. A performance de Desmaison ao longo de sua vida ativa como alpinista é notável. Cerca de 1.000 escaladas, sendo 114 como pioneiro! Alpes, Himalaia, Andes foram conquistados, mormente a infinidade de picos alpinos. Motivos vários o impediram em 1959 de chegar ao topo do  Jannu (7.710m na cordilheira himalaia), considerado de muita dificuldade, tendo alcançado 7.350m com seus colegas. Em 1962, uma segunda investida com sucesso ficaria gravada indelevelmente. Picos andinos do Peru foram escalados após ter-se notabilizado nas conquistas alpinas.

As narrativas de René Desmaison prendem a atenção do leitor. Curiosamente, não se concentrou nas altas montanhas do Himalaia, mas preferencialmente nos complicadíssimos paredões dos Alpes. Picos já conquistados, se não o fossem pelas vias mais complexas, encontrariam em Desmaison o aventureiro a tentar o acesso improvável, o paredão que está sujeito à quantidade de adversidades como queda de blocos de gelo, de pedras que tantas vezes têm levado cordadas inteiras precipício abaixo.

Nesse aspecto, impressiona o número de amigos e colegas que o autor nomeia que perderam a vida em trágicas ascensões. Enumera-os e cada morte para Desmaison é quase o apelo para que continue, ao menos in memoriam. Quando nas montanhas, “a morte pode acontecer no momento que ela desejar, naquele menos esperado”, como afirma. Em Les Forces de la Montagne são inúmeros os capítulos reservados às tragédias: Jean Couzy, La mort en face, Équipée tragique au pilier Central du Freney, Les naufragés des Drus, Ascension vers l’enfer. Vitórias e tragédias são narradas com a mesma precisão por Desmaison, que chega a pormenorizar todos os procedimentos das subidas. Jean Couzy (1923-1958) foi companheiro de várias cordadas e morreria em outra aventura alpina; muitos de seus amigos sucumbiriam numa avalanche no pilar central do Freney, no Mont Blanc; o salvamento de dois alemães no difícil paredão do Drus, quando outros haviam sucumbido, são relatos minuciosos. Neste episódio, Desmaison desobedece ordens superiores, parte para o salvamento e é desligado da Companhia da qual fazia parte.

Digno de registro, Ascension vers l’enfer, inserido no livro, já rendera anteriormente uma das mais lidas obras de Desmaison, 342 Heures dans les Grandes Jorasses. O autor não mais desejava retornar ao tema, mas, a conselho de seu editor Lionel Hoëbeke, regressa àquela que se tornaria a aventura que mais o marcou durante toda a existência como alpinista e após a “aposentadoria”. Tratava-se da abertura de uma via nordeste da “ponta” Walker, nas Grandes Jorasses. Na trágica escalada ao pico, iniciada aos 10 de Fevereiro de 1971, em um temível paredão de 1.200m, após dias de intensas adversidades climáticas, seu companheiro de cordada, o jovem Serge Gousseault (1947-1971), morre de exaustão,  a evidenciar indícios que se acentuavam, como lentidão quanto ao acesso, inchaço nas mãos, falta de víveres, inanição. Desmaison permaneceria “grudado” no paredão  ao lado de seu finado amigo durante dias, a pouco mais de 80 metros do pico de 4.208m. Apesar de sinalizar para os pilotos dos helicópteros que decolaram de Chamonix, alegou-se que ventava muito. Só após a decolagem de um Alouette III do heliporto de Grenoble, aos 25 de Fevereiro, houve a possibilidade do resgate. O piloto Alain Frébault e o mecânico Roland Pin apesar de desconhecerem o trajeto conseguiram pousar numa outra face do paredão, a 4.133m, resgatando o corpo de Gousseault e Desmaison em estado deplorável. Inúmeras controvérsias  formaram-se sobre o trágico acontecimento e estão, ainda hoje, a alimentar especulações. Dois anos mais tarde, René refaz com sucesso a ascensão invernal completa da face norte da ponta Walker, caminho doravante denominado voie Gousseault. Desta vez, a cordada era composta dos experientes Desmaison, Giorgio Bertone e Michel Claret, que morreria pouco tempo após numa escalada solitária.

René Desmaison teria de enfrentar várias polêmicas. No affaire Drus, consideraram que preparava material sobre o resgate dos dois alemães para ser vendido à revista Paris Match; no das Grandes  Jorasses, acusaram-no de ter levado consigo, numa cordada arriscada, um jovem não muito experiente e não ter observado melhor o deteriorar físico de Gousseault. Em outra oportunidade, ter escalado o Mont Blanc e lá instalado material publicitário filmado por helicóptero. Todos esses acontecimentos são suficientemente defendidos por Desmaison em La Force de la Montagne com diplomacia, diria. Contudo, no caso das Grandes Jorasses, a participação do primeiro alpinista a escalar um 8.000m (Annapurna), Maurice Herzog -  prefeito de Chamonix quando da tragédia em 1971 -, ao alegar publicamente que fortes ventos impediam o resgate,  foi amplamente questionada quanto às reais intenções dessas afirmações, o que favoreceria as atitudes de Desmaison. Frise-se uma reconhecida animosidade entre os dois, fato que alimentou o affaire. Entre os muitos links que podem ser acessados pelo leitor, recomendaria um bem incisivo a respeito da triste cordada:

http://ghirardini.blogspot.com.br/2011/05/serge-gousseault-un-jeune-guide.html

Uma visita à África e a narração de certos costumes, assim como as quatro viagens andinas, quando realiza as primeiras escaladas da face sul e sudoeste do Huandoy, nos Andes peruanos, entre 1976 e 1979, encerram esse instigante livro biográfico, narrado com os pormenores mais precisos em relação a cada passo das tantas aventuras, com espírito de fraternidade em relação aos seus colegas de cordada e, por vezes, com certa dose de humor. Fica também a narrativa da natureza em suas manifestações mais antagônicas: tempestades de neve, tormentas, quedas de séracs, avalanches, contemplação do céu imaculado, visão nas alturas das distâncias imensas, as várias colorações dos espaços percorridos pelo olhar. Livro pleno de interesse.

In this post I comment on the book “Les Forces de la Montagne”, written by the French alpinist René Desmaison (1930-2007), in which he gives an account of an entire life dedicated to mountain climbing: he explains the roots of his strong inclination for mountaineering, talks about his ascents of the Alps, the Andes and the Himalayas, the new routes he has opened, the death of many friends, the controversy of the Grandes Jorasses, his epic climbing of the mountain in the Mount Blanc massif that saw the death of his partner Serge Gousseault. Desmaison also describes nature in all its contradictory manifestations: snow storms, fall of seracs, avalanches, clear skies, endless horizons with a myriad of colors. A fascinating book for lovers of adventure stories.