A Dignidade como Respiração
Toda ascensão é dolorosa. Toda mudança traz sofrimento.
Eu não atinjo o cerne dessa música se não tiver sofrido.
Ela é fruto de meu sofrimento e não creio naqueles
que se vangloriam das provisões colhidas por outrem.
Não acredito que seja suficiente mergulhar os filhos dos homens
no concerto, no poema e no discurso
para lhes proporcionar a beatitude e o delírio do amor.
O homem é resultado do amor, mas também do sofrimento.
Antoine de Saint-Exupéry
(Citadelle, cap. XXXV)
O homem é ou não é, dizia meu saudoso pai. Na essência, não há meio termo, pois impossível tergiversar quando se é. Ao longo da existência, quão poucas vezes temos o privilégio de cruzar o caminho de homem íntegro na acepção! Neste Brasil tão conturbado, onde o desvio da verdade e a chaga da corrupção se expandem sem esperanças de estancamento, ainda mais raramente encontramos essas figuras abençoadas, diria, que semeiam o bem, vivem a generosidade, esquecem-se de suas privações sabendo que o próximo pode ter sua chance na vida, assimilam como penitência o mal físico inflexível que pode estar agregado desde a infância, sabem distribuir, são generosas e têm o olhar que não esconde intenções. Tudo é claro, translúcido, sem a menor possibilidade da névoa que encobre simulações.
Sígrido Levental é esse homem, entre pouquíssimos. Nascido em Santos em 1941, cedo inicia seus estudos pianísticos, realizando seu primeiro recital no Clube XV da cidade aos 15 de Novembro de 1954. Em sua apresentação aos 6 de Setembro de 1957, Sígrido apresenta recital corajoso na Rádio Clube de Santos. No programa encontram-se, entre muitas obras, a Sonata op. 57 de Beethoven (Appassionata) e a Balada nº 1 em sol menor de Chopin. Dados curriculares no convite faziam antever promissora carreira “O jovem recitalista iniciou seus estudos musicais com a professora Luísa Gelli Jacoponi. Em 1953 entrou para a Escola Musical ‘São José’, na classe de D. Oraída do Amaral Camargo. Em 1955 diplomou-se, sendo-lhe conferida a Medalha de ‘MÉRITO ARTÍSTICO’ por uma banca julgadora presidida pela insigne pianista Ana Stella Schic. Iniciou, então, um curso de aperfeiçoamento com o renomado mestre José de Souza Lima, com quem vem estudando atualmente”. Torna-se necessário esse histórico da formação de Sígrido, pois suas atividades futuras ligadas à música tiveram raízes sólidas que determinariam, em seu caso singular, decisões ponderadas, corajosas e que estimularam gerações no caminho da música.
As sendas da Música são incontáveis. Sígrido abraçaria sua missão maior, a de dirigente de estabelecimento de ensino musical. Foi na década de 1980 que tive o privilégio de conhecer pessoalmente Sígrido Levental, dirigente do Conservatório Musical Brooklin Paulista, inicialmente instalado na rua Álvaro Rodrigues, frente à Paróquia Sagrado Coração de Jesus. Posteriormente o Conservatório mudaria de endereço, transferindo-se para a Rua Roque Petrella, próximo ao anterior. Admirava sua ação pedagógico-diretiva e o ambiente congraçador que formara no estabelecimento de ensino, fatos do conhecimento público. Sob nova direção, o CMBP localiza-se presentemente na Av. Portugal, 1074.
Foram as edições que me levaram ao dirigente. Imediata a empatia. Tornamo-nos amigos sem subterfúgios. Em torno de meu livro “O Som Pianístico de Claude Debussy”, publicado pela Editora Novas Metas sob direção de Sígrido em 1982, e de quatro obras de Henrique Oswald editadas no mesmo ano, contatos diários eram mantidos e aprendi, dia a dia, a admirar a altivez, a solidariedade e o despojamento do amigo, qualidades agregadas à determinação, concentração e capacidade invulgar quando tarefa lhe era apresentada. Saliente-se que Sígrido foi pioneiro ao editar compositores das mais diversas tendências abrindo-lhes caminhos seguros.
Para as novíssimas gerações, impossível entender a edição de um livro com exemplos musicais nesse início dos anos 1980. Sígrido digitou-o inteiramente em uma máquina de escrever elétrica com esferas da IBM, dernier cri para o momento brasileiro. Revisões e revisões. Quanto aos exemplos, hoje tão fáceis de serem realizados, Sígrido tinha páginas com notas set que vinham ligeiramente fixadas em folha transparente. Com uma pinça, o amigo colava nota após nota e todas as indicações contidas na partitura. Verdadeiro artesão!!! Realizava esse trabalho, mas conjuntamente resolvia os problemas do Conservatório e da Editora, assim como atendia alunos e seus pais, professores e visitantes. A dificuldade enorme de locomoção fazia-o ficar sentado durante a jornada que se estendia, por vezes, até bem tarde, sem reclamar, bebendo sua água e, hélas, fumando muito, mas abnegado a saber seu desiderato maior. Conto nos dedos de uma só mão os batalhadores de tal estirpe.
Finalizado “O Som Pianístico…”, houve lançamento concorrido e precedido por recital Debussy no então recém inaugurado Centro Cultural de São Paulo, já àquela altura pleno de insolúveis problemas estruturais. Uma curiosa situação deu-se dias após. Ao me encontrar com Ruy Yamanishi, médico e dileto amigo que estivera no lançamento, este estava a ler o livro. Abriu na página em que há uma das ilustrações do inspirado artista Johan Howard e questionou-me com a sabedoria oriental que lhe é peculiar: “Neste desenho ‘Et la lune descend sur le temple qui fut’, onde está a lua?”. A resposta veio imediata: “Possivelmente escondeu-se atrás da torre do templo”. Procurei Sígrido e lhe disse que no desenho original havia a lua. Imediatamente liga ao seu amigo Guariglia, que imprimira o livro, questionando-o. Alguns momentos de espera e veio a resposta: “o gráfico pensou que fosse uma sujeira, daí suprimi-la”. Lembro-me do sorriso contagiante de Sígrido pelo equívoco tão inusitado. Momento a não ser esquecido.
Quando Sígrido, pleno de esperanças, criou a orquestra do Conservatório formada por jovens músicos, por duas vezes me apresentei apoiando a bela iniciativa, sendo que na segunda oportunidade, sob a direção do saudoso amigo e maestro português Manuel Ivo Cruz. Essa iniciativa e tantas outras eram a razão do respirar de Sígrido Levental, que assistia às apresentações por ele imaginadas, sempre à distância, em lugar escondido das salas. A modéstia e o recato eram-lhe familiares.
Os anos se passaram. Estivemos juntos algumas vezes no segundo endereço na Rua Roque Petrella. Bem mais tarde visitei-o em seu apartamento. Se nossos contatos ficaram escassos, jamais deixei de ter pelo grande amigo e incentivador das artes um carinho especial. Quando o homem é, o exemplo se propaga, as atitudes servem de norte para tantas ações individuais que surgiriam, a ter Sígrido Levental como inspiração.
A homenagem que lhe foi prestada neste último dia 12 de Dezembro é justíssima. Comovente todo o evento realizado no Auditório Ibirapuera. Apresentou-se a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, sob as regências competentes de Marcos Sadao Shirakawa e Mônica Giardini. O respeitado saxofonista Roberto Sion foi solista de várias peças. A Banda Sinfônica, o Coral Infanto-juvenil da Escola de Música de São Paulo (Regina Kinjo, regente de coro) e cantores convidados apresentaram o musical “Os Saltimbancos” de Luiz Henriques, com adaptação de Chico Buarque de Holanda e arranjos de Júlio Cesar de Figueiredo. O espetáculo todo esteve sob a égide amorosa. A professora e pianista Aida Machado e o compositor e maestro Aylton Escobar fizeram depoimentos pungentes. O público que lotou o auditório viveu momento de intensa emoção quando anunciaram a presença de Sígrido que acabara de chegar em uma cadeira hospitalar. Deram-lhe a permissão no hospital para que presenciasse a homenagem que tantos alunos, amigos e admiradores lhe tributavam.
A portuguesa Leonor Alvim Brasão e as dedicadas filhas do homenageado, Cláudia e Rosana, tiveram a iniciativa do “Obrigado Sígrido”. Há tempos radicada nos Estados Unidos, Leonor ainda jovenzinha, viveu a transição das décadas de 1970/80 com seus irmãos e sua mãe, a saudosa artista plástica e pianista Leonor Alvim, num convívio intenso com o CMBP. Outros admiradores juntaram-se ao projeto.
“Obrigado Sígrido” só acontece graças à imensidão de uma figura exemplar que tem marcado sua existência pela singularidade de estar sempre com a mão estendida para o apoio, para a música, para o amor.
This week a concert in honor of Sígrido Levental was held in São Paulo. This post is my personal tribute of respect to this great man, former Principal of Brooklyn Music Conservatory and editor (he supervised the publication of my book on Debussy and Henrique Oswald’s scores), an example of willpower, fight and love of art whom I was lucky to have met.
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