Uma Apreciação que Merece Leitura

Para o público,
a arte musical se resume na execução das obras clássicas ou românticas.
O compositor contemporâneo
é pois uma espécie de intruso que quer absolutamente se impor
em uma mesa à qual não foi convidado.
Arthur Honegger (1951)

Reiteradas vezes servi-me de frase antológica de Igor Stravinsky, a supor duas espécies de músicos: o criador e o intérprete. A posição de um dos mais importantes compositores do século XX estabelece um entendimento, quiçá amálgama, que deve existir entre a obra feita e aquela a ser vivificada ou perenizada através da execução.

Tema insistente em tantos blogs anteriores, friso sempre a necessidade de o intérprete estar aberto à cultura como um todo, especialmente às artes e à literatura, não desprezando o cotidiano e todas as suas implicações.

A relação entre compositor e intérprete, aquele, do passado ou do presente, é focalizada de maneira arguta por François Servenière na última mensagem que me enviou. Qual a atitude do executante frente à música de nossos dias? O comprometimento com o exaustivo repetitivo  repertorial não poderia ser decorrência do voluntário desconhecimento da música contemporânea? Compositores do passado não encontraram obstáculos para à divulgação de suas obras por intérpretes coetâneos? Essa atitude não teria sido uma das causas de tantos compositores dos séculos anteriores dedicarem-se à função interpretativa? O distanciamento da maioria dos intérpretes da música contemporânea não estaria relacionado ao foco muitíssimo menos intenso dos holofotes? O rigor do debruçar sobre o repertório da modernidade, que tem de ser idêntico ao dedicado ao tradicional, não afugentaria intérpretes? Temos, ainda, o cerceamento criativo do compositor de música para filmes na atualidade e tantas outras possibilidades que Servenière, como músico e pensador, explana de maneira clara e objetiva.

A apresentação aos 11 de Abril em primeira audição mundial dos “Études Cosmiques” para piano  (7+1) de Servenière  justifica, sob outra égide, a inserção no presente post das oito telas do excepcional artista plástico e designer, o saudoso Luca Vitali.

“Apreciei o comentário de Daniel Barenboim apresentado como epígrafe de seu último blog. Ele coloca em evidência o problema da interpretação contemporânea e o principal desgosto dos compositores relacionado aos intérpretes, ou seja, a não consideração, em nível de igualdade, do trabalho sobre as obras do passado e as do presente. Você sabe perfeitamente que todos os compositores de qualquer época, desde os períodos clássico e romântico, tiveram de sofrer as tempestivas atitudes de seus intérpretes coevos. Seria essa, possivelmente, a razão principal a levá-los ao esgotamento físico, por vezes mortal, por serem eles os intérpretes de suas próprias obras… e para que, enfim, pudessem ouvir suas obras interpretadas da melhor maneira, segundo o que ditava o coração e a aspiração artística. Hoje é praticamente impossível o desempenho das duas carreiras simultaneamente, mercê das exigências precípuas concernentes às duas atividades, composição e interpretação. Aqueles que porventura tentam nem sempre conduzem satisfatoriamente as duas categorias musicais. Em período não muito distante, compositores chegaram a ter suas criações menosprezadas por intérpretes, que as consideravam ‘menores’ frente ao caudaloso repertório tradicional.


O compositor deve fazer face permanente à predisposição deplorável de muitos intérpretes diante de obra nova a ele apresentada. O executante célebre colocará toda sua energia na interpretação de uma obra referencial, porque sua reputação estará em jogo nessa trama que consiste na comparação entre intérpretes quando da execução de uma mesma obra, pois esses outros também tocaram e gravaram obras consagradas. Luta sobre o mesmo terreno concorrencial, pois. A energia colocada nas obras atuais e desconhecidas do grande público é tão mais diminuída ou ‘desonrada’,  graças ao fato de não serem prioridade na carreira dos intérpretes, a menos que a obra se torne referencial e célebre, independentemente de seu nível técnico ou artístico. Assistimos a intérpretes, reconhecidos executantes de obras pianísticas pertencentes à cumeeira qualitativa, apresentarem-se tocando amenidades descartáveis hollywoodianas… É fato corrente como atitude, preconizado pelos agentes com a finalidade de quebrar a barreira ‘público de música clássica/grande público’. Curiosamente, somente nesses momento o virtuose em geral coloca energia ‘transcendental’ nessas superficialidades ‘contemporâneas’ tão intensamente como naquelas obras primas do passado. Uma lástima!

Como você bem explica em tantos de seus blogs anteriores sobre interpretação do virtuose e que serve de parâmetro às atitudes de tantos outros virtuoses: carreirismo, conformismo, modismo. Em geral, enquanto muitos intérpretes adquirem sucesso e brilham em cena, a grande maioria dos compositores sobrevive com dificuldade. Única exceção aos raros ‘vanguardistas’ que vivem exclusivamente de sua arte, o compositor de música para filme, no qual o compositor emerge e, mercê de seu sucesso, domina social e profissionalmente os intérpretes. Todavia, a música de filme é raramente de avant-garde, ela retoma as banalidades que alimentam realizadores raramente afeitos à cultura musical. Adaptam-se esses compositores à cultura nivelada por baixo. É fato notório na profissão. Outro fato digno de registro na composição destinada ao filme é a ausência, tantas vezes, de preocupações criativas.

Não podemos dizer que o compositor de música de filmes escreve uma obra integralmente. Muitas vezes essa obra ‘integral’ fora do filme, salvo raras exceções, é decepcionante, pois levada à sala de concertos mostra-se desprovida de sentido. Trata-se de música de complemento, decorativa, de sustentação narrativa e de ilustração do estado de espírito dos personagens. Muitas vezes impregnada de talento, a partitura destinada ao filme se diferencia substancialmente da obra musical completa, pois, no caso da ‘indústria cinematográfica’, o compositor tem de adaptar-se ao realizador, ao visual, ao público. Os maus hábitos de montagem e de realização em Hollywood e na França incluem em acréscimo músicas pré-existentes, pré-montadas e perfeitamente sincronizadas sobre as imagens. O compositor passa a ser não um criativo, mas um imitador, pois lhe é pedido recopiar de maneira ‘original’ uma música já inserida sobre o filme. Muitos compositores se insurgem contra essa prática nefasta ao gênio musical. Foi-se o tempo da florada durante a idade de ouro do cinema, da rádio e da televisão”. Lembraria um post que publiquei sobre a série Bonanza (vide “Bonanza – um Seriado que Marcou”, 10/12/2010). Encantava-me a música que David Rose (1910-1990) escreveu para a série e sua maestria no trato dos leitmotivs (motivo ou tema que faz lembrar personagens, sentimentos e que retorna idêntico ou modificado). Por vezes David Rose desenvolvia verdadeiros temas com variações extremamente sofisticadas, a depender da índole do capítulo da série.

Prossegue Servenière “Através da mídia mais popular, o compositor que escreve para filmes e para o teatro de variedades terá mais sucesso durante sua vida do que o compositor de música clássica moderna. Friso, aprioristicamente não tenho restrições a estilos e gêneros, pois um compositor bem formado pode abordar todos eles. Leonardo Da Vinci e Michelangelo Buonarroti não são exemplos? Aliás, toda a Renascença estava aberta para a expressão dos gênios pluritalentosos. A atualidade restringe, anatematiza e limita criatividades, tutelando-as sob as égides das tendências ‘progressistas’.

Raros são os intérpretes como você ou outros, como o ilustre Barenboim, que colocam tanta energia na interpretação de uma obra atual ou do passado e que consideram a obra unicamente pelo seu aspecto artístico ou criativo, cegamente, sem se importar com a notoriedade do autor e sim com a simples beleza da arte, sendo este o único critério. Hoje, todo o meio artístico se extasia diante da obra de Van Gogh em nome de critérios soi-disant artísticos (bem retumbantes). Sou mais realista. Todas as celebridades atuais que o elegeram um demiurgo da arte teriam tido certamente desprezo para com sua personalidade de perdedor, fossem eles seus contemporâneos. O mundo não mudou. Despreza-se sempre o perdedor e admira-se tão somente o vencedor, não importando o talento ou a obra envolvida.

Visto de uma perspectiva profissional, daí decorre o desinteresse de intérpretes virtuoses contemporâneos pelas obras de seu tempo. Raros os que apreendem essa perspectiva social e profissional e consideram igualmente a obra antiga e a atual, tornando verdadeiro desafio o conceito de Stravinsky, como você observou em um de seus blogs anteriores, a particularidade única da arte musical separada entre o tempo da criação e aquele da interpretação. Há a necessidade da abertura da mente quanto ao repertório. O primeiro reflexo do intérprete virtuose, antes da leitura de uma partitura, será SEMPRE o de conhecer o nome que se esconde atrás do papel pautado. Desse conhecimento exclusivo decorrerá, salvo exceção, seu interesse pela obra. O intérprete poderá passar um tempo enorme para dominar as dificuldades incríveis de uma partitura referendada pelo público. Porém, não aceitará JAMAIS o mesmo desafio artístico e técnico diante de uma partitura de criador seu contemporâneo e cujo nome não brilhe no panteão da música. É minha experiência, partilhada por muitos colegas compositores. Como dizia um de meus colegas recentemente ou eu mesmo, já não o sei: ‘um bom compositor é um compositor morto’ “. Essa frase traduz bem a visão de muitos intérpretes e do público frente ao compositor “vivo” e seria atribuída ao compositor  francês Arthur Honegger  (1892-1955): ” A primeira qualidade de um compositor é estar morto” (Arthur Honegger. Je suis compositeur. Paris, Conquistador, 1951, p. 16).

Servenière finaliza: “Posso dizer que nos sentimos imensa e eternamente gratos pelo seu empenho em tornar conhecidas nossas obras contemporâneas com o mesmo trato que é dado às obras dos mestres do passado de nossa área musical. Você terá necessidade de carburante psicológico para as apresentações programadas em São Paulo e para a gravação desses ‘Estudos Contemporâneos’ no fim do mês na Bélgica e em primeira audição. Estou, estamos a pensar com energia positiva, como sua família de coração, quase de sangue, artística e musical, naturalmente. (tradução: J.E.M.)

Resuming the subject of last week’s post, I transcribe passages of message from the French composer François Servenière, explaining why, in his view, interpreters, concert goers and sponsors find modern classical music unattractive and idolize composers of bygone days. He also considers the differences between contemporary classical music composers and those who pursue a career as film composers.