A Capela de Sint-Hilarius em Mullem, na Planura Flamenga

Devemos o que temos a duas espécies de homens:
os que trabalham por gosto,
embora na maior parte das vezes o gosto lhes fosse turvado por outros homens,
e os que sem gosto tiveram de trabalhar nas tarefas impostas.
Agostinho da Silva

Desde 2010 não gravava na Bélgica. A partir de 1995, anualmente visitava o país para gravações e recitais; mas com a interrupção das atividades da De Rode Pomp, excepcional organização que realizava a cada ano cerca de 130 recitais, concertos, gravações e palestras na cidade de Gent, houve um espaçamento. Foram 22 viagens durante esse período! O retorno à cidade que aprendi a amar por todas as oportunidades que lá tive, entre as quais os numerosos CDs gravados e lançados pela De Rode Pomp, traz-me uma alegria profunda. Rever amigos diletos, conviver com músicos e pensadores íntegros e competentes é motivo dessa feliz ansiedade.

Ivan, um bom amigo, questionou-me, poucos dias antes da viagem para Gent, qual a razão da Europa se resumir, hoje, a apenas três países em minha agenda, d’après meus blogs. Respondi-lhe que três aspectos são essenciais. Primeiramente, minha atividade pianística sempre foi, de maneira voluntária, low-profile e essa situação jamais me incomodou, pois adequada ao meu modo de ser. De certo modo, a categoria low profile tem de ser impulso natural e não impositiva ou resultado de traumas ou desilusões. O ato voluntário de escolha deve pressupor harmonia com a existência, um estado de espírito e de ação.  Em segundo lugar, os 76 anos fazem-me pensar no período da síntese e, se tantos países foram visitados para apresentações ao longo, concentrar-me nestes últimos anos na Bélgica, França e Portugal reconforta-me. Finalmente, nesse terço final do existir, a escolha tem razões musicais e afetivas e essas contam, e muito. Bélgica-Gent-Mullem fazem parte do registro da memória e, como dizia meu dileto amigo gantois André Posman, “é aqui que sua herança musical está sendo fixada através das gravações”. A França, por um passado que remonta a 1958 e que me ligou decididamente à música francesa. Portugal, pela paternidade bracarense e pela infinita admiração por sua música do barroco aos nossos dias. São meus países de afeto, pois amizades estão profundamente enraizadas.

No repertório que fará parte dos dois CDs que gravarei, obras rigorosamente contrastantes. Se o primeiro será inteiramente dedicado aos “Estudos Contemporâneos” para piano, fechando um longo ciclo de 30 anos de convites a compositores meritosos, sem contar contribuições espontâneas de vários outros, um segundo CD terá como fulcro obras de nosso romântico maior, Henrique Oswald (1852-1931). Verdadeiras joias musicais serão gravadas e entre elas várias inéditas da lavra oswaldiana. Se o CD dos “Estudos Contemporâneos” já teve longos comentários em blogs imediatamente anteriores, o dedicado a Oswald se caracteriza pela excelsa qualidade das criações. Folga-me verificar que perpassa em tantas das peças, a grande maioria com titulação francesa, essa atmosfera nonchalante do fim do século XIX. Oswald foi um melodista da cepa, extraordinário. A sua escrita pianística é clara, mas a interpretação de suas obras merece um cuidado extremo em quesitos essenciais: dinâmica, articulação e agógica. Busco sempre, ao tocar criações de Oswald, encontrar a flexibilização a mais fluida, pois qualquer tratamento menos envolvente torna sua obra engessada, sem respiração.

Quantos não foram os motivos para me lembrar da Capela Sint-Hilarius, em Mullem. Se fatos variavam, a essência essencial para que as pegadas através das gravações ficassem registradas sempre foi a mesma. Johan Kennivé, mestre irretocável como engenheiro de som, este pianista e as paredes milenares e cúmplices da Capela abrigando as sonoridades que ecoam pelos espaços. Há mística em Sint-Hilarius, razão primeira para preferenciá-la desde a década de 1990. Creio igualmente que a personalidade tranquila de Kennivé promove o amálgama. Paradoxalmente, inexiste o relógio do tempo da gravação, que se pode prolongar até que este intérprete entenda necessária a interrupção. Psiquiatra de formação, antimercantilista por vocação, Johan registra os sons, aconselha seus microfones e a parafernália eletrônica, interrompe-me ao sentir que uma xícara de chocolate quente e fatia de torta de maçã, cuidadosamente preparada por sua mulher Tineke, far-me-ão bem. Como não estar na mais profunda harmonia com essa atmosfera criada? A música agradece. Sei que essa será a rotina prazerosa de intensa dedicação, pois os aspectos mencionados deverão se repetir, assim espero. O repertório é sempre renovado, diria, basicamente inédito, mas a compreensão das obras em questão dá-me a certeza de que estamos diante de criações excepcionais. Na medida em que desdobramentos da estadia na Bélgica e em Portugal forem acontecendo, transmitirei ao leitor, que, em meu primeiro post de 2 de Março de 2007, foi convidado a ser partícipe e cúmplice de meus blogs. Continuemos.

E seguimos rumo a Gent…

This post addresses my forthcoming trip to Belgium to record two CDs: one with contemporary Etudes and another entirely dedicated to works by the Brazilian composer Henrique Oswald. I’m looking forward to meeting old friends and the magic scenario of St. Hilarius chapel, in Müllem.