Quando Repertório Tem Gosto do Desvelamento

O público pede sempre a canção “célebre” repetida por determinado cantor,
aquela que ele ouviu tantas vezes pela rádio ou através do disco.
Deploremos sua preguiça.
Não é o compositor contemporâneo que fala:
é o músico que a defender seus ascendentes, como seus pares e aprendizes,
lamenta a estreiteza do gosto.
Beethoven é o deus dos melômanos: que seja.
Isso não significa que toda sua obra tenha a mesma acolhida.
Entre suas sinfonias…
Arthur Honegger

Após o recital do dia 11 de Abril na Sociedade Brasileira de Eubiose conversei com várias pessoas que prestigiaram o evento. A pergunta formulada por um jovem músico intrigou-me. Retornarei ao tema. Seria interessante frisar que a Sociedade privilegia essencialmente o aperfeiçoamento dos jovens em direção à reflexão sobre o homem, suas aspirações, seu caminhar pela humanidade nessa partícula mínima do espaço universal. Por total coincidência, acaso, diria –  palavra esta contestada pelo dileto amigo Carlos Augusto Souza Lima, um dos organizadores da temporada musical da SBE, que acredita não haver acaso – a maior parte do programa estava relacionada com o espírito da Sociedade: “Missa sem Palavras”, de Eurico Carrapatoso, “Et Iterum Venturus”, de Gheorghi Arnaoudov”, “Études Cosmiques”, de François Servenière” e “Vers la Flamme”, de Alexandre Scriabine, integram esse Universo incomensurável, que estamos a buscar entender desde a Antiguidade.

O jovem questionou-me a respeito de minha insistência em tocar obras inusitadas, apesar de ter declarado sua estupefação diante da qualidade dos “Estudos Contemporâneos” apresentados. Disse-lhe que a resposta estaria no blog da semana. Infelizmente não retive seu nome. Contudo recebi e-mail, num direcionamento bem próximo, de Patrícia Luciane de Carvalho, que se inquieta com programações paulistanas e com o público ainda menor quando repertório não sacralizado é apresentado.

A inserção semanal dos blogs, ininterruptamente desde Março de 2007, faz-me por vezes não quantificar determinados regressos a conceitos ou temas. É normal e humano. Em repetidas oportunidades observei que não me sentiria à vontade se tivesse de atravessar o Atlântico tendo de executar com insistência as mesmas obras do repertório sacralizado. Essa posição rigorosamente pessoal desvia-me de um desconforto espiritual, de vida e, consequentemente, musical. Ficar sentado longas horas em um avião, sendo durante decênios o repetidor de segmento do repertório constituído pelas grandes criações de excelsos compositores, não me entusiasma particularmente desde os anos 1970. Não que não as admire e que não as tenha tocado. Considerando-se que sempre há público diferenciado, constituído pelas gerações que se sucedem ou mesmo por visitantes de passagem por determinada cidade, parte considerável dos que vão aos concertos estruturada no tradicionalismo, aprecia ouvir o mesmo intérprete a executar as mesmas obras. Isso é fato evidente e que parece se perenizar. Insisto que o público habitual, afeito ao Sistema, aprecia a comparação e “teme” o novo, seja ele paradoxalmente do passado ou da contemporaneidade.

A temática Cósmica, tão presente no recital apresentado no último dia 11 de Abril, inclina-nos a entender que, nesse grão de areia que é a Terra, não desvendar o micro mais micro do Universo existente no repertório amplo e ignoto é preocupante. Se consideramos uma das teorias cósmicas que entende o Universo em Expansão nessa “célula” que é o nosso Planeta, há a mente criativa, partícula da partícula em escala infinitesimal. Como não admirar a ideia, a criação e a concretude de uma obra recém produzida por um compositor, desde que as musas sobrevoem sua mente? Revelá-la é dar-lhe a possibilidade da perenização, se qualitativa. Não havendo essa prerrogativa, o olvido será o destino implacável. Sob outra égide, a obra extraordinária do passado e ignorada poderia ser compreendida como um astro perdido no Universo e que uma lente de telescópio poderosíssimo descobre.

Compete ao intérprete optar. Trata-se de ato voluntário e intransferível. A grande maioria tem preferenciado essa permanência no status quo que tranquiliza mentes, “robotiza” inúmeras execuções, mas também revela aperfeiçoamento para eleitos no melhor dos sentidos. Através do YouTube é possível constatar obras interpretadas por músicos, décadas após uma primeira gravação. Existiria mesmo determinada evolução para conceitos menos exuberantes e bem mais introspectivos. As gravações de extraordinários pianistas do passado,  como Vladimir Horowitz, Wilhem Kempff, Sviatoslav Richter e Claudio Arrau, como exemplos, testemunham, no estertor de suas existências, a síntese conceitual da trajetória esplendorosa de décadas anteriores. Dá-se o mesmo na composição, e a história da música está repleta de compositores que se interiorizam em suas mensagens, caso específico de Franz Liszt que, em suas últimas obras, testemunha a mais absoluta síntese, a não concessão, mas paradoxalmente a abertura de caminhos para os pósteros. Situação similar encontramos em Claude Debussy. “Noël des Enfants qui n’ont plus de Maison” e “`Elegie” são exemplos claros, impensáveis em períodos anteriores da existência.

A apresentação na SBE primou pela mostra em primeira audição no Brasil de duas obras significativas, a “Missa sem Palavras” (cinco Estudos Litúrgicos), de Eurico Carrapatoso, e os “Études Cosmiques”, de François Servenière, estes em primeira mundial. O que entusiasma o velho pianista é saber que, das cerca de 170 obras apresentadas em primeira audição ao longo, muitas correm o mundo através de pianistas de tantas latitudes e longitudes. Estou a me lembrar do notável compositor Aurelio de la Vega (nascido em Cuba em 1925 e cidadão norte americano desde 1966), que, ao ter sua magnífica “Homenagem a Villa-Lobos” de 1987 (CD Music of Tribute, Labor USA) apresentada por mim em primeira audição no mesmo ano, gentilmente enviava-me programas dos Estados Unidos, Extremo Oriente e Europa nos quais a obra era executada e tendo nas notas do programa o nome deste dedicatário. Redigia a mão que aquele que motiva uma criação é partícipe e que, sem essa “cláusula”, o tributo a Villa-Lobos jamais teria deslizado para o papel pautado.

O tempo que se afunila é “infalível e insubornável”, na pena do ilustre escritor e poeta português Guerra Junqueiro. Todo o longo caminho trilhado nessa busca interminável pela qualidade do passado submerso e do presente em constante ebulição é motivo de uma surda sensação de estar a participar desse descobrir tesouros. São tantos que continuam a aguardar o encontro criador-intérprete!!! Enquanto houver sopro, a mente estará atenta a essas preciosidades. Assim espero.

The recital last April 11 led me to reflect upon transoceanic crossings and my imperative need for repertoire renewal.