Considerações sob outra égide
A paz é árvore que leva tempo a crescer.
Como acontece com o cedro,
há que se aspirar muito cascalho para fundar sua unidade.
Antoine de Saint-Exupéry
(Citadelle, Cap. XVII)
As opiniões divergiram. Unânimes na qualidade exemplar do livro “Guerra e Poder na Europa Medieval”, divergiram na avaliação da essência da Guerra, das incontáveis mortes e destruição, mas também da salvaguarda das liberdades. Atento à recepção de tantas mensagens, busco no presente texto considerar a dedução de uma conversa descontraída que mantive com o amigo Marcelo, durante um curto num café de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo.
Preliminarmente menciono segmento de e-mail do arquiteto Marcos Leite que bem reflete a mentalidade generalizada, a entender as Cruzadas de uma maneira plena de romantismo, pois minha geração foi formada por narrações poéticas das guerras na Terra Santa entre cristãos e muçulmanos. Marcos traduz bem aquela realidade: “Tema apaixonante este das guerras medievais. Nossa imaginação tende sempre a romancear esse período da história, levado talvez pelas cenas cinematográficas da Távola Redonda, Excalibur, Ivanhoé e seus corações de leões batendo no peito protegido por luzentes armaduras, cobertas pelo manto branco com a cruz vermelha que caracterizava os cruzados, montados em brancos e enormes cavalos. Lindas imagens dessas figuras galopando em verdejantes prados ao encontro de donzelas perfumadas e bem penteadas. Lindas até pararmos um pouco para pensar na dureza desses tempos idos”. Marcos desfila algumas adversidades: “saúde, ou se der certo, sobrevivência; alimentação, seja a qual for, agradeça a Deus; inexistência de vestuário condizente com as condições climáticas e… o total desconhecimento da palavra higiene. E os odores após batalhas, graças às decomposições e incinerações de corpos de homens e animais… Fiquemos nas telas e nos livros…”.
O compositor e pensador francês François Servenière, a viver realidade na França atual, onde a população muçulmana cresce acentuadamente – natalidade, imigração desordenada -, envia-me uma série de artigos publicados no país e na Inglaterra. Preocupante, é o mínimo que podemos considerar.
Voltemos à conversa com Marcelo. A certa altura, pergunta-me o porque de, paralelamente à história real tão bem expressa no livro mencionado, enriquecida pelas narrativas de cronistas que presenciaram as batalhas sangrentas, não há comentários que se concentrem no “conteúdo”, estendendo-se à razão das mortes, às lições apreendidas de tantas carnificinas e destruição, à salvaguarda de gerações futuras. Disse-lhe que os notáveis historiadores não podem fugir da realidade dos fatos, consequência também da busca criteriosa às fontes fidedignas. Contudo, fiquei a pensar e lembrei-me de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), escritor, poeta, repórter e aviador francês, que em várias situações de sua obra maior, Citadelle, aborda a temática. Segundo Simone de Saint-Exupéry, irmã do escritor, “essa obra densa e profunda aborda todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”.
O narrador dos textos que constituiriam Citadelle é filho e herdeiro do Mestre do Império, situado num espaço indefinido, em algum lugar do vasto deserto. Em incontáveis vezes o agora senhor berbere faz alusão ao pai como mentor. Tornar-se-ia, por sua vez, Mestre do Império, e a narração concentra-se naquilo que pode levar seu povo ao fervor ou à degeneração. O estilo recitativo, poético, espiritual e filosófico de Citadelle já foi observado por estudiosos como tendo contornos bíblicos.
Observa o autor: “Todos os anos nascem aqueles que afirmam serem as guerras impossíveis, pois ninguém deseja sofrer, abandonar mulher e filhos, ganhar um território que não será desfrutado, para enfim morrer ao sol sob golpe de mão inimiga e receber calhaus ferventes no ventre. Sim, você pede a cada um de seus homens a sua escolha. E todos recusam. Não obstante, no ano seguinte o império novamente pega em armas, e todos aqueles que recusavam a guerra, inaceitável no seu linguajar simples, unem-se numa moral informulável para efetuarem uma abordagem sem sentido para eles. Constrói-se uma árvore que se ignora, apenas reconhecida por aquele que se faz profeta na montanha”.
Em Citadelle há um universo metafórico. Todavia, Saint-Exupéry tem seu idiomático nessa área. Em torno dele edifica sua narrativa. São tantas as alusões à árvore, desde a semente à plenitude, que ultrapassam gerações. Água a correr e pedra como eternidade também preenchem esse universo, assim como tantos outros aspectos integrantes da natureza.
Em outro préstimo que faz à metáfora: “Vocês perdem a guerra por nada desejarem. Não colaborando, vocês se destroem uns aos outros com decisões incoerentes. Olhem o peso da pedra. Ela rola e desce ao fundo da ravina. A pedra é a colaboração de todos os grãos de poeira que a formaram, contribuindo todos para o mesmo fim”. Em situação outra, Saint-Exupéry alude que a reunião de pedras irregulares formará o Templo e que, só, ela é apenas uma pedra. Continua: “Olhem a água de um reservatório. Apoia-se contra as paredes no aguardo das ocasiões, e elas surgem. Noite e dia ela incansavelmente pressiona as paredes. Aparentemente adormecida, ela vive. À mínima rachadura ela escorre, insinua-se, contorna obstáculos e reencontra aparentemente o sono se o caminho estiver interrompido, até que nova rachadura a faça deslizar. Ela não desperdiça a oportunidade. De maneira indecifrável para qualquer avaliador, basta uma simples pressão e o reservatório de água estará sem suas provisões. O seu exército é semelhante ao mar, que não pressiona o dique. Vocês são massa sem fermento, terra sem semente, multidão sem aspirações. Administram, ao invés de conduzir. Vocês são testemunhas estúpidas. As forças obscuras que forçarem as paredes do império não se importarão com os administradores e os afogarão sob suas marés”.
Preocupa-se Saint-Exupéry com a não firmeza de generais na condução de seus exércitos, quando sujeitos a opiniões oportunistas: “Destituo aquele general, coloco-o na prisão e não me preocupo em não o alimentar, pois dispôs seus exércitos, ponderou suas chances, sentiu o vento, escutou dormir o inimigo, mediu o peso do despertar dos homens, mas após mudou seu planejamento, substituiu seus capitães, modificou a marcha dos exércitos e improvisou sua batalhas pelo fato de ter ouvido uma pessoa preguiçosa que passava e que, durante cinco minutos, proferiu um ridículo sopro de palavras disposto em silogismos”.
Na condução do império, o senhor berbere considera que não é apenas o exército que pode salvaguardar o império, pois “quando o fervor se extingue ainda assim o império pode subsistir através dos seus guardas. Contudo, se esses sozinhos não puderem salvá-lo, é pelo fato de que o império já está morto”. A retomada da metáfora relacionada ao cedro, constante em Citadelle, ajuda Saint-Exupéry em suas reflexões: “Gostaria que fizéssemos a guerra contra qualquer coisa? O cedro que prospera e destrói a moita pouco se importa com ela. Desconhece-a. O cedro faz a guerra para o cedro e transforma em cedro a moita”. E sobre a morte sempre à espreita: “Quem quererá morrer? Queremos matar, não morrer. Ora, a aceitação da guerra é a aceitação da morte e este aceitar só é possível se você realiza essa sua troca por qualquer coisa. Portanto, pelo amor” (tradução: JEM). As considerações do senhor berbere, sempre a mencionar ensinamentos recebidos de seu pai, mestre do império, entenderiam possível o sacrifício de uma geração de combatentes, pois são esses que, ao morrer, garantirão a sobrevivência das gerações que estão por vir.
Saint-Exupéry idealiza a guerra. Necessária em tantas situações de impasse, a essência de seu pensamento será sempre o ser humano e o que ele tem de fulcral: a família, a responsabilidade, o fervor, o congraçamento. Em plena Segunda Grande Guerra, aos 31 de Julho de 1944, Saint-Exupéry, piloto, realizou seu último voo de reconhecimento na região de Grenoble e Annecy. É possível que tenha sido abatido por um ataque de caças alemães.
Saint-Exupery’s view of the war as expressed in his masterpiece Citadelle (translated into English as The Wisdom of the Sands), a collection of the writer’s reflections about humanity through a series of parables.
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