Um caminho sem volta

Há hoje quem esteja plenamente convencido
de que nasceu mais engenheiro do que homem;
como se já estivéssemos naquele tempo de pesadelo
em que se fabricariam homens-máquinas

de servir máquinas de servir homens-máquinas.
Agostinho da Silva

Vivemos na era das especializações em praticamente todas as áreas. Ao ler artigo publicado aos 19 de Novembro deste ano em Contrepoints, sob o título “Télémédicine c’est pour demain… ou après-demain” (artigo do The Conversation assinado por Roxana Olegeanu-Taddei e David Morquin, ambos da Universidade de Montpellier), mais acentuadamente fica exposta a necessidade imperiosa de adequação às tecnologias e à especialização daqueles que se dedicam a essa área em evolução, assim como, por parte do Estado, uma atenção maior. Ainda no campo da medicina – e em praticamente todas as áreas – a especialização tem sido quase absoluta. O denominado médecin géneraliste em França e clínico geral na língua portuguesa está a se tornar raridade. Em minhas primeiras décadas lembro-me do Dr. Semi Sauda que nos visitava e que mui raramente seu diagnóstico falhava. Auscultava meus irmãos e nossos pais e prognosticava qual caminho tomar. Cirurgiões daquela época, majoritariamente precisos, apesar dos recursos técnicos menos avançados, realizavam não apenas uma modalidade cirúrgica. Estou a me lembrar do dileto amigo Gabriel Meirelles de Miranda, médico em Pouso Alegre, Minas Gerais. Atendia em seu consultório pacientes com os mais variados males, sendo igualmente cirurgião seguro nas mais diversas especialidades (vide blog “Amizade que desafia tempo e distância – Gabriel Meirelles de Miranda”, 14/03/2015). A super especialização da medicina atual, amparada nos avanços extraordinários da tecnologia e da pesquisa científica, implicou também o custo por vezes estratosférico de determinados procedimentos. No âmbito individual, pacientes de muitos afamados especialistas sabem disso na hora do acerto. Estou a pensar numa piada que ouvi anos atrás. Paciente que visitava um otorrino disse-lhe que estava com dor em seu ouvido direito, recebendo pronta resposta do médico: “sou especialista do ouvido esquerdo”.

Sempre que tema faz-me lembrar leitura de Agostinho da Silva, recorro aos textos do filósofo, ensaísta e poeta português (1906-1994). São vários os escritos do autor sobre especialização e especialistas (Agostinho da Silva. “Citações e pensamentos”. Organizador: Paulo Neves da Silva. Alfragide, Casa das Letras, 2009). Argutos, precisos, os textos de Agostinho da Silva atingem aspectos fulcrais do tema, tanto positivos como contrários. Quantas não foram as epígrafes que retirei desse e d’outros livros do notável pensador?

O autor tem consciência clara de que seria inútil negligenciar a civilização de especialistas. Engloba o homem das artes, das ciências e das técnicas. Faz-se necessário o especialista capaz de lançar luzes para gerações futuras. Haveria contudo em seu pensamento uma crítica à face do especialismo que, se “favorece aquela preguiça de ser homem que tanto encontramos no mundo, permite ele, por outro lado, aproveitar em tarefas úteis indivíduos que pouco brilhantes seriam no tratamento de conjuntos”. Estende seu pensamento às lideranças, que necessariamente têm de possuir a ideia do conjunto. Ampliando o leque, à cultura geral indispensável. Menciona o comandante em suas estratégias de guerra e na ação psicológica voltada à condução de seus homens que, “na maior parte das vezes, mal sabem por que se batem”. Não falta a menção ao desejo do homem e o seu ingresso na vida política. Agostinho da Silva comenta: “… paga-o o indivíduo quando, no cumprimento de uma missão fundamental para os destinos do mundo, se arrisca a ser político e sofre todos os habituais ataques dos especialistas de um outro campo que se não lembram de que o defeito para o político não é o de não ser técnico, mas o de não ouvir os técnicos e não lhes dar em troca, a eles, o sentido largamente humano que tantas vezes lhes falta. E, mais grave, paga-o de um modo geral a própria natureza humana, que, embora gostosamente embalando a sua preguiça nas delícias do especialismo, sente ainda, mais fundo e constante, o remorso de o ser”.

Se a abrangência faz-se necessária, nas áreas das Ciências Humanas ela pode ter ramificações. Considerando-se, pode um estudioso dedicar-se décadas a um só período histórico e nele se debruçar, assim como especializar-se em um só autor, exaurindo as fontes possíveis para o desvelamento mais preciso. Seria plausível supor que a expansão do conhecimento, ao ampliar horizontes, possibilita uma maior visão da “especialidade” a ser estudada. Ao longo desses dez anos tenho salientado a necessidade imperiosa da Cultura Geral como ferramental para o aprofundamento de qualquer pesquisa nessa vasta área das Ciências Humanas.

Agostinho da Silva questiona e responde: “Em que trai o homem, sendo especialista, a sua verdadeira missão de homem? Creio que em vários pontos. Um deles seria, por exemplo, no que respeita a fraternidade humana. Impedido pela especialização, pela compartimentação do saber, pelo emprego até de uma linguagem que se torna incompreensível para quem não andar exactamente pelos mesmos caminhos, de estabelecer relações com os outros em plano verdadeiramente elevado, o especialista tende ao ideal de uma civilização em que cada minhoca fosse paciente e forçadamente cavando a sua galeria…”.

Em dois posts abordei obras que apontam malefícios da especialização quando seus praticantes miram outros interesses. Russell Jacoby (vide blog “Os últimos intelectuais”. 21/03/2009) aponta a ininteligibilidade da escrita em revistas universitárias visando ao carreirismo e ao agrado dos pares: “Artigos que outrora eram legíveis, ou pelo menos interessantes, tornaram-se absolutamente herméticos e enclausurados”. Por sua vez, afirma Victor J. Rodrigues (vide blog “Teoria Geral da Estupidez Humana” e “A Nova Ordem Estupidológica”. 14/08/2010): “De qualquer modo, vale a pena realçar a postura básica subjacente à estupidez epistemológica: fechar a mente e a consciência a tudo o que não esteja de acordo com as ideias e metodologias pelos senhores das capelinhas do saber consideradas. Isto é feito pelo recurso militante à escolástica universitária, ou seja, a um corpo de teorias, ideias epistemológicas e autores cuja autoridade não pode ser contestada pois isso é tomado como ofensa directa ao senhores feudais que acreditam nelas”.

Individual ou seletivamente coletiva, a especialização é fato irreversível. Agostinho da Silva bem afirma: “Fomos todos obrigados a ser especialistas. Logo de princípio e nos termos mais gerais”. Reitera problemas advindos: “O que há de ruim no especialismo é o ser cada um o especialista de um domínio ainda vasto demais; o mal vem aqui, como em muitos outros pontos, de se ficar em meias medidas, de se não fazer até ao fim com inteireza lógica aquilo que uma vez se começou; temos de reduzir a especialidade a um domínio tão estreito que o trabalhador possa não só apreender o que já se fez com um gasto mínimo de tempo, como ainda com o mínimo de tempo manter-se a par do que se faz pelo mundo em sua especialidade e contribuir para que ela avance”. Como não pensar na obra-prima de Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, de 1936? A essência do fenômeno está exposta de maneira tão clara!

A especialização é fato. Ascendente, sempre. Não nos deveríamos esquecer contudo do coletivo e do caminhar do homem pela História. A visão ampla ainda se mostra como via em direção à harmonia, pois há que se pensar no amálgama das tendências.

This post considers the pros and cons of specialization in the modern world according to the Portuguese philosopher, essayist and writer Agostinho da Silva (1906-1994).