Mensagens que levam à reflexão

Au fond de l’inconnu pour trouver du nouveau !
Charles Baudelaire

Recebi e-mails, telefonemas e também mantive conversas com vários leitores. O tema a envolver uma integral tem sempre opiniões divergentes. Uns a consideram imprescindível, outros um conjunto monolítico maçante. Entra-se num campo da avaliação que apreende a qualidade da opera omnia, determinante para a edificação de um projeto a envolver uma integral, e vazios decorrentes de obras menos qualitativas nesse conjunto. Há autores e autores. Aprioristicamente, para que tal empreitada se concretize, um profundo estudo tem que ser realizado. A integral para piano de Osvaldo Lacerda capta um “catálogo” de gêneros, danças, canções e ritmos brasileiros transformados ou criados pelo compositor, o que enriquece o repertório pátrio.

Considerando-se nomes referenciais da música, nenhum grande compositor que permaneceu na história escreveu somente obras primas. Relatos, missivas deixadas evidenciam por parte desses criadores, por vezes, a certeza da ausência, no instante da escrita, da tão propalada inspiração. Se é mais entusiasmante a realização sob vários formatos – como edição, gravação ou interpretação – da integral de um compositor de mérito, não se descarte a presença de obras menos interessantes. Esse fenômeno se dá em todas as áreas das artes e  a literatura. Nem todos os romances do escritor português Camilo Castelo Branco (1825-1890), entre algumas centenas, têm a mesma qualidade, assim como os romances, poesias e centenas de contos do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893). Poder-se-ia dizer o mesmo a respeito das mais de 500 Sonatas para cravo de Domenico Scarlatti (1685-1757) ou da imensa obra de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Todos os nomes referenciais deixaram algumas criações que, se apreendidas separadamente, não indicam a qualidade ímpar de tantas outras obras de grande expressão. Ao compor Hommage à Haydn para um caderno especial, que recebeu a contribuição de importantes compositores em tributo a Joseph Haydn por ocasião do centenário de sua morte em 1909, Claude Debussy tem a consciência de uma obra menor. Escreve ao seu editor Jacques Durand: “Caro amigo, esta peça é uma homenagem a Haydn, sendo mesmo a única finalidade aqui e em qualquer outro planeta”.

A propagação que se faz hoje relacionada às integrais tem outras razões. Grandes empresas ligadas à gravação realizam há tempos e insistem na edificação da opera omnia a envolver todos os gêneros de um compositor. Interesse pela qualidade das obras e dos intérpretes ou pelo lucro? Anos atrás entrei numa loja conceituada na Bélgica que mantinha uma secção unicamente dedicada à música erudita, clássica ou de concerto, espaço esse que tem diminuído acentuadamente em tantos países. Deparei-me numa prateleira, acima dos CDs individuais, com caixas tendo o formato de “paralelepípedos” maiores ou menores, com o nome do compositor abaixo de cada volume. Nessa prateleira estavam as integrais de J.S.Bach, Mozart e de tantos outros, interpretadas por músicos originários de todos os cantos do mundo. Inicialmente fiquei atônito. A preocupação das empresas gravadoras seria mais com o resultado final – lucro – do que com a seleção dos músicos, pois as listas dos intérpretes solistas ou camerísiticos, assim como dos conjuntos orquestrais ou vocais, apresentavam qualidades bem diferenciadas. Pressupõe-se que um comprador, ao adquirir um desses volumes, sai satisfeito por ter em casa a obra completa de um autor. Visitando um amigo belga possuidor da integral de J.S.Bach – compositor que se destacava naquela prateleira mencionada como o mais profícuo, com mais de uma centena de CDs – perguntei-lhe quais obras ouvira. Disse-me que alguns CDs que privilegiavam as criações mais conhecidas, friso, e que ao menos sabia que toda a obra de J.S.Bach lá estava para seu gáudio pessoal. Poderíamos acrescentar, J.S.Bach, um seu parceiro… Certamente meu amigo só conhecerá o “pico” da ponta do iceberg. Interessar-lhe-ia ir ao fundo do oceano? Se voltar a vê-lo, encontrarei pó sobre a coleção, mas ela lá estará, adormecida.

Sob outra égide, nomeia-se integral a reunião de obras de um compositor representando determinado gênero ou forma. Como exemplos, entre tantos, a apresentação ou gravação das 32 Sonatas de Beethoven, os dois livros do Cravo Bem Temperado de J.S. Bach, a coleção de um determinado gênero escolhido pelo compositor.

A importância de uma integral é inquestionável. Contudo, habituado ao déjà vu, o melômano busca o que conhece. Em tantos blogs anteriores observei essa prática, motivada por fatores os mais diversos, como a insistência das sociedades de concerto na repetição repertorial, a quase absoluta  inexistência de interesse pela escuta de composições que fogem da rotina, mesmo pertencentes a um autor referencial, o básico despreparo do público muitas vezes com “verniz” cultural, mas para o qual a presença numa sala de concerto configura um ato social praticado através da tradição.

Acredito firmemente que não é através de uma “imposição” do mercado que ampliaremos a escuta de obras esquecidas dos grandes autores. Selecionadas, têm elas de ser apresentadas paulatinamente, fazendo compreender ao público a importância dessas criações. Homeopaticamente entrariam em circulação. Não obstante, a rapidez com que se propagam “novidades” impede o aprofundamento e a conscientização. Fosse outra a atitude, dezenas de Cantatas de Bach, entre as mais de centena delas, poderiam estar nos repertórios. Privilegia-se sempre esse “pico” da ponta do iceberg. O Sistema sabe que a escuta “dispersa” não é alternativa para a retenção na memória de padrões sacralizados, como a melodia ou a simples referência a uma obra consagrada.

O projeto idealizado e concluído pela pianista Eudóxia de Barros e intérpretes convidados, a abordar segmento preciso da obra de Osvaldo Lacerda, é meritório e dá continuidade a integrais para piano de compositores como Heitor Villa-Lobos empreendidas pelos pianistas Anna Stella  Schic, Arthur Moreira Lima, e mais recentemente, Sônia Rubinsky. Outros autores brasileiros com produção mais reduzida já foram contemplados, sempre a ter um só pianista.

Continuo um adepto das integrais compartimentadas em segmentos, no caso específico, o piano. Fi-lo em recitais ao apresentar as integrais de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), Claude Debussy (1862-1915), Modest Moussorgsky (1840-1881) e Francisco de Lacerda (1869-1934), sendo que apenas gravei a integral de Rameau e obras relevantes dos outros três. Entendo que, para um estudioso, a integral indica o melhor caminho para o entendimento de todos os processos criados por um compositor. Essa assertiva ratifica a necessidade imperiosa de um debruçamento sobre o pensar de um criador. A leitura das missivas de um compositor tem fundamental importância. Tantos deixaram quantidade apreciável nesse mister. Estudos analíticos paralelos relacionados à obra, escritos por especialistas com amplo conhecimento do que se passa numa partitura, merecem constantes visitas, pois corroboram a compreensão fundamental que leva à interpretação consciente.

This post resumes the subject of the previous week, contrasting the terms “opera omnia” of a composer (a collection of all his works) with “selected works” (those selected by some criterion, such as the instrument for which they have been written). Though in my view the opera omnia does not sort out works of less importance, it is significant to shine a light on the very nature of a composer’s creative process.