Diferença que Faz Toda Diferença
Tempo bem empregado
curto parece.
Adágio açoriano
Nos dias que precedem o fim de mais um ano, sempre tenho a impressão de ver e sentir as pessoas mais apressadas, possivelmente em busca de soluções que não podem ultrapassar o dia 31 de Dezembro, hipotética data limite. Seria provável supor que, mais pela vida estressada do que pela euforia salutar, uma agitação contamina os estertores do ano. Caminhava em direção ao nosso canto de conversas (Vide Nélson, o Sábio, Nosso Cantinho Possível, 25/04/07), quando aluno da Universidade subia a minha rua. Após cumprimentos amistosos, perguntou-me o porquê de não mais ir ao Departamento. Expliquei-lhe a respeito da aposentadoria e de outros direcionamentos na minha vida musical, assim como novas janelas que se abrem alegremente nesta terceira idade. Indagou-me ainda se estava bem, e falei-lhe de minhas corridas. Contou-me que continuava os estudos regimentais sem problemas maiores e que estava esperançoso quanto ao futuro. Almejei-lhe o melhor.
Convidei-o a seguir, para alongarmos nossa conversa em casa. É sempre bom sentir o pulsar mental dos jovens. Aspirações, projetos e sonhos fazem parte da vida do estudante consciencioso. Através dele captamos a realidade presente e é impossível não lembrar de nossa juventude. Não tendo sido meu aluno individual, pouco contacto tive com o discípulo; portanto, nosso diálogo foi muito profícuo, pois inédito e pleno de interessantes reflexões. Em determinado momento falamos do tempo do compositor e aquele do intérprete. Como estamos a findar o ano, o tempo torna-se quase pleonasmo entre os assuntos. Contudo, o da criação e aquele da interpretação são configurações dentro do palpitar maior do tempo do calendário e merecem um pormenorizar. Mensurações quanto aos resultados nas duas categorias.
Tenho, há mais de vinte anos, externado a minha posição relacionada à transitoriedade do intérprete, sendo ele um corredor de prova de revezamento, e o compositor, um maratonista de percurso sem fim. Paradoxalmente, o compositor tem prazo fixo para a conclusão de uma obra, mesmo se considerada for aquela da contemporaneidade, o work in progres. Maior ou menor, esse tempo é real. Se determinadas composições podem ter representado muitos anos para a criação, outras como o Oratório Messias de G.F. Haëndel (1685-1759) ou os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky (1839-1881) foram escritas em semanas. Obra finda, ela fica fixada no papel pautado, e estará à disposição do intérprete. Se esse tempo finitus do compositor teve prazo limitado e certo, o mesmo não se dá com o tempo da edificação de uma composição pelo intérprete. Este, para que a obra se mantenha viva em sua memória e em sua atividade de instrumentista, tem de visitá-la com freqüência, o que tornará seu contacto com a criação do compositor muitíssimo mais longo do que aquele do próprio autor. Considerando-se a extrema facilidade de compor de Mozart (1756-1791) ou Schubert (1797-1828), que produziram muito e viveram pouco, certamente o contacto deles com o que era escrito durava pouco. Quando ouvi em DVD o grande pianista Mieczyslaw Horzowsky (1892-1993) aos noventa e tais anos executando no Carnegie Hall de Nova York a Sonata em ré maior (K.576) de Mozart, fui levado à reflexão dos tempos do compositor e do intérprete. Qual não foi a dedicação do pianista, durante décadas, para que essa Sonata se mantivesse plena em seus dedos? Quantas horas não desfilaram através dos decênios, a fim de que a criação de Mozart tivesse a interpretação ideal? No âmbito do autor, qual teria sido a duração exata da composição dessa Sonata? Tempo e tempo a refletirem a insondável compreensão de concepções frente à obra. Quantos milhares de pianistas já se debruçaram incontáveis horas durante suas existências para a manutenção em seu repertório desta bela Sonata e de quantidade imensa de tantas outras composições !
Pertinentemente, o aluno perguntou-me sobre o sentido de propriedade de obra concluída. Esse tema tem sido exaustivamente trabalhado em artigos, livros, tratados e, mais recentemente, em teses acadêmicas. Contudo, depois da composição finda e divulgada, passa ela a ser – obedecendo-se legislação que “protege” durante décadas sua “propriedade” – de domínio público. Ao intérprete cabe perpetuá-la, estudando-a convenientemente para apresentação, gravação ou puro entretenimento pessoal. Integrando doravante seu repertório, a obra aprendida será reestudada sempre que tiver de ser executada. Contando-se as vezes dessa imprescindível retomada, no caso de reapresentações ou gravação, tem-se a desmesurada proporção a separar o tempo da feitura e o da reprodução musical através da interpretação.
Veio por parte do aluno uma outra pergunta a levar ao pensar: “Professor, esse tempo real e presente na vida do intérprete tem sempre as mesmas características?” Ledo engano, comentei. Através da trajetória do instrumentista, o tempo da maturação, da transformação para o aperfeiçoamento, ou até para o desleixo, que também pode ocorrer, determina uma outra concepção de mensurabilidade. Estamos em permanente mutação ocasionada por fatores os mais variados. Seria lógico entender que a obra que faz parte de nosso repertório também sofra esses impactos. “Quais impactos” indagou-me? Em princípio não há mutações abruptas, assim como dificilmente o que nós somos no nosso de profundis sofre fortes alterações. Contudo, elas existem. No campo da interpretação, podemos modificar uma forma de respirar o discurso musical, no caso específico do pianista, mudanças de fraseado, de dedilhado que descobrimos mais cômodo após tantos anos e motivado muitas vezes pela própria transformação física de dedos e mãos. No campo pessoal e no musical, são os acúmulos de experiências vividas, verdadeiras salvaguardas para um músico. Tudo isso compreendendo outro debruçamento naquele período destinado à preparação de uma composição há tanto tempo a fazer parte de nosso repertório. Estudo onipotente e onipresente.
“Mas, professor, as alterações quanto à interpretação não poderiam também distanciar profundamente o executar de um pianista nas fases extremas de sua carreira?”, questionou-me o aluno. À pergunta arguta, respondi-lhe que não necessáriamente. Há em cada um de nós, intérpretes, idiomáticos de toda a sorte. Como exemplo, a minha gravação de Doumka de Tchaikowsky realizada em 1962 ao vivo no Conservatório de Moscou, tem muitíssimos elementos que fazem parte da minha interpretação hoje. Não a renego de forma alguma. Reconheço sim, que meu DNA lá está. Preferências quanto ao fraseado, às flutuações dinâmicas, ao gosto pelos baixos e pela respiração, à anima, persistem. Impressões digitais indeléveis. Cito esta peça, pois após quarenta e tais anos vou apresentá-la quando de minha tournée pela Bélgica em Fevereiro próximo. Aliás, tive o prazer de tocá-la para o aluno. Uma coisa certamente não mudou, ou seja, o meu encantamento pela obra.
E voltamos à idéia inicial, que mostra a criação, quando finda pelo compositor, metaforicamente uma espécie de erupção que cessa. “Erupção?”, interrompeu-me o jovem. Sim, respondi-lhe. O que mais não é o fluxo criativo do que o magma, essa substância ígnea que está nas profundezas da crosta terrestre e que é projetada para o exterior através de um vulcão, serpenteando incandescente pelas encostas da montanha em direção ao mar ou à planície? Ao emergir dos abissais subterrâneos para o exterior, fixando-se a seguir no solo ou mergulhando nas águas, transformar-se-á em rocha magmática e a perenidade se concretiza. Temos a metáfora em sua plenitude, pois a idéia que flui do cérebro de um compositor pode ser comparada a essa pasta que sai do interior da Terra e que se torna material sólido doravante. Nós, intérpretes, e aí reside uma das magias de nossa atividade, estaremos sempre a lidar com a criação terminada para o autor, mas em permanente ebulição em nossa mente. Diria, uma outra categoria de erupção. Se a composição seria esse magma consistente e firme, não seria a interpretação, em outra comparação voltada à erupção, um gêiser, esse esplendoroso jato fervente que em fluxo constante ou periódico sai do sub-solo e se projeta lindamente nas alturas, a ocasionar um alumbramento para nossa visão? Sempre em transformação. A missão do intérprete tem essa “aura” extraordinária, sendo a certeza do revezamento um fato inequívoco, pois um instrumentista será fatalmente sucedido por outro, que preservará a composição petrificada mas viva. Processo contínuo.
Conversamos outros assuntos, e despedimo-nos cordialmente. Como disse a ele que o teor de nossa conversa, que fluiu mercê do encaminhamento dos temas, iria certamente para um post a ser inserido no blog, o jovem realmente curioso e inteligente apenas pediu-me, ao sair, que não colocasse o seu nome, pois não era meu aluno. Não senti qualquer aspecto de descortesia de sua parte, simplesmente entendi. Respeito sua vontade.
Exemplo claro vivi dias após. Ao visitar meu dileto amigo Gilberto Mendes, nosso mais importante compositor erudito vivo, aos 18 de Dezembro, em Santos, ao piano discutimos sua última criação, Largo do Chiado, que deverei apresentar em primeira audição absoluta no mês de Maio em Portugal. Naqueles instantes, outro amigo, Jorge Mateus, fotografava a junção dos tempos: o do compositor que findara naquele dia a obra e o do intérprete que doravante teria outros tempos para manter a peça em seu repertório.
Fim de mais um ano. Foi bom refletir sobre tempos outros que não aquele do inexorável calendário. Nem por isso deixo de nele pensar, aproveitando essa aproximação de mais um ano, para enviar ao meu fiel leitor os votos sinceros de paz e saúde.
Some considerations on the time needed by a composer to create a complete piece of music, by an interpreter to keep the composer’s work alive and also on time as marked on the calendar, measuring the passage of events and announcing the arrival of a new year.
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