“O Jardim das Fadas”

São José tenta compreender. Catedral de Autun, França, Séc. XII. Clique para ampliar.

“Cristo nasceu para nós, vinde adorá-lo!
– Aproximai-vos fiéis, correi triunfantes a Belém
para adorar o Rei dos Anjos que acaba de nascer!
–O esplendor eterno habitou a carne.
Vimos o Deus Menino envolto em panos.”

A aproximação do Natal sempre nos leva a reflexões. Quão distantes estamos da comemoração interiorizada sentida pela grande maioria da cristandade através dos milênios. A mercantilização das últimas décadas, em crescente geométrico, anestesia desideratos voltados ao nascimento de Jesus. Ele é comemorado na essência por tantos cristãos espalhados pelo mundo, mas observado por outros mais como uma data do calendário em que a corrida às compras é prioritária. Ouço o rádio e, como um nefelibata, aguardo o impossível, pois as estações de maior audiência entrevistam comerciantes e compradores. Rarissimamente a imprensa focaliza a causa da comemoração do Natal, sendo mais importante para ela o fluxo da 25 de Março e seu mar de consumidores do que a essência essencial da Natividade, os instantes místicos em que uma manjedoura abrigou o menino Jesus.
Estou a me lembrar de duas situações separadas por tantos séculos de diferença. Não continuaria, hoje, São José atônito com a triste realidade? Escultores do século XII realizaram a obra-prima que é a Catedral de São Lázaro em Autun, na Borgonha Romana, em França, e um sobressaiu-se através da maestria e da identificação: Gislebertus, que assinaria o nome e mais Hoc Fecit no tímpano do Cristo Ressuscitado, sendo também autor de diversos capitéis. Um destes chamou-me a atenção em 1959, quando visitei o templo extraordinário durante um longo e inesquecível dia de visitação: St. Joseph médite et cherche à comprendre. A mão direita do Santo a sustentar a cabeça. Que intuição mística teve o escultor que entendeu a dimensão da Natividade! O mistério a levar São José a refletir. O que estaria a pensar? Extraordinária figura de José, o carpinteiro esposo de Maria, que, segundo o Evangelho de São Mateus, soube compreender o apelo do Anjo do Senhor. Em sonho, o Arcanjo revelou-lhe que ele nada teria a temer, pois o menino que estava por nascer fora concebido do Espírito Santo, atribuindo ao bom homem a tarefa de dar o nome de Jesus à criança que viria ao mundo.
Em 1973, passando por Cambuí, em Minas Gerais, parei para tomar um café. Qual não foi o meu espanto quando um escultor popular, que vendia suas criativas peças em barro cozido, apresentou-me um presépio despojado, entre outras mais esculturas espalhadas no meio da calçada. A Natividade lá estava representada em sua síntese: José, Maria, o Menino Jesus e a manjedoura. Antes de adquiri-lo, indaguei-lhe o porquê de São José estar com a mão fechada sob o queixo. Respondeu-me, em sua ingenuidade, que certamente o Santo estaria a pensar: “O mundo nunca mais será o mesmo.” Esse presépio sempre me despertou perplexidade. Tantos séculos a separarem Gislebertus de nosso escultor popular que deixou apenas suas iniciais, ZJ, e as do Estado, MG! Tanta identidade que o tempo apenas estaria a dimensionar! Que fluxo mágico a ligar o pensamento de dois artistas!

Presépio popular, barro cozido, autor ZJ, Minas Gerais, 1973. Clique para ampliar.

No Natal de 2007 inseri um bonito e simples conto de D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu (Vide Velho Natal – Um Conto Singelo, 22/12). Ao ler o texto sobre Dito Pituba (Vide Pesquisa de Campo – Entendimento Através das Entranhas, 27/09/08), a minha dileta amiga, professora e competente gregorianista portuguesa Idalete Giga, escreveu-me que estava a pensar em um conto que seria dedicado às minhas netas. Ao lê-lo, entendi associações generosas de uma alma sensível. O texto atravessou o oceano via internet, e é com o maior gosto que eu o publico em meu blog, não sem antes desejar um Natal vivido na intensidade a todos os leitores que me prestigiam semanalmente. Que os miúdos tenham acesso à delicadeza desse conto escrito para eles… e para nós também, cristãos ou não.

“O Jardim da Fadas”

“Era uma vez um menino chamado Edu, que vivia numa linda cidade com seus pais e irmãos. Edu gostava muito de sua cidade, onde havia parques cheios de árvores, lagos com cisnes e nenúfares, flores de todas as cores, relvinha verde, baloiços, cavalinhos de montar e escorregas. Edu brincava todos os dias no parque com seus amiguinhos e amiguinhas. Mas o que ele mais gostava era de visitar seu avô Pituba, que morava muito, muito longe, no grande Vale de Abipará, pertinho de um lugar encantado que ele chamava de Jardim das Fadas. Quando chegava a Primavera, o Jardim das Fadas ficava todo iluminado. Em todo o Jardim havia flores mágicas, que brilhavam durante o dia e brilhavam ainda mais durante a noite. Havia também libelinhas azuis, renas, corças, cavalos de crina branca, girafas de pescoço comprido e muitos outros animais, tão pequeninos que só as Fadas os podiam ver. O avô Pituba conhecia todos os segredos do vale de Abipará e toda a magia do Jardim das Fadas. Pituba era um sábio. Inventava e construía brinquedos mágicos. Quando Edu ia visitar seu avô, pedia-lhe sempre um brinquedo diferente. E também o acompanhava nos passeios ao Jardim das Fadas. Era só neste Jardim que os brinquedos tinham magia. Por isso, era nele que Edu gostava de brincar e experimentar todos os brinquedos inventados pelo avô. Tinha um cavalinho de madeira que podia voar, uma linda bailarina que rodopiava no ar, um palhacito que tocava saxofone, e uma bandinha de música com a Branca de Neve e os Sete Anões. Cada anãozinho tocava um instrumento muito engraçado. Bastava que Edu segredasse baixinho uma palavra mágica ao ouvido da Branca de Neve, para que os anõezinhos começassem todos a tocar seus instrumentos.
Um belo dia, Pituba construiu um brinquedo muito especial para oferecer a Edu no dia de seu aniversário. Inventou um pianinho que tocava sozinho. Mas para que pudesse tocar, Edu tinha de cantar uma canção. Quando Edu cantava , o pianinho começava a tocar sozinho a mesma canção. Admirado com esta maravilha, Edu perguntou ao avô: – Vôvô, porque é que o pianinho sabe a minha canção e está tocando sozinho?
O avô Pituba, pegando na mão de Edu, respondeu-lhe: – Meu querido netinho, se você fechar os olhos e disser três vezes: ‘quero ver quem está tocando no meu pianinho’, vai ter uma bela surpresa! Mas tome atenção! Para que o pianinho não perca a magia tem de lhe cantar nova canção.
E assim foi. Edu ficou tão feliz que logo inventou esta canção:

Corre, corre, cavalinho
Voa, voa, sem parar
Leva-me ao Jardim das Fadas
Pois é lá que quero brincar !

O avô gostou muito da canção. Logo que chegaram ao Jardim das Fadas, Edu fez tudo direitinho como o avô lhe dissera. Então, fechou os olhos e viu seu pianinho subindo, subindo, subindo devagarinho até ficar suspenso no ar. De repente, viu aparecer uma linda Fada, que começou a tocar a canção do ‘Corre, corre cavalinho’ com a sua varinha mágica. Edu ficou tão contente que começou a falar com a Fada: – Olá, querida Fada! Como é seu nome?
A Fada parou de tocar, olhou carinhosamente para Edu, ficou um bocadinho em silêncio e respondeu: – Chamo-me Princesa da Luz.
- Ah! Já sei! É você que acende as estrelas do céu, à noitinha? – Perguntou Edu.
A Fada sorriu, deu-lhe um beijinho, escreveu no ar a palavra SIM com a sua varinha mágica e desapareceu.
Edu abriu os olhos e foi logo contar ao avô o que tinha acontecido.
-Vôvô, já sei quem toca no meu pianinho! É a Fada Princesa da Luz que também acende as estrelas do céu, à noitinha!
Pituba pegou Edu no seu colo e segredou-lhe baixinho: – Que bom ter falado com a Fada Princesa da Luz! Agora, tenho outra surpresa para você. Mas desta vez só pode abrir o presente quando chegar a casa, combinado? -Sim, vôvô!
Ao chegar a casa dos pais, Edu estava muito curioso e correu logo para seu quarto . Ao retirar o papel que embrulhava o presente, viu uma caixa com uma linda rena desenhada na tampa e pensou: – Ah, deve ser uma rena mágica que o vôvô construiu para eu brincar na noite de Natal. Então abriu a caixa e dentro dela estavam outras caixas mais pequeninas. Cada uma tinha um pedacinho de chifre da rena que mais parecia de um boneco articulado. Edu foi juntando e montando pacientemente, uma a uma, as várias peçinhas. Era um jogo muito engraçado!
Então, qual não foi o seu espanto quando viu que não era um boneco , mas Santo António com o Menino Jesus ao colo! Porém, faltava uma peça. Faltava a cabecinha do Santo. Edu pensou que a tinha perdido e começou a chorar.
Fechou os olhos e viu de novo a Fada Princesa da Luz que lhe disse: – Não chores querido Edu! Vôvô se esqueceu de colocar a caixinha que falta e me pediu para a dar a você.
E levantando sua capa azul transparente retirou a caixinha que estava junto de seu coração e a deu a Edu. Quando Edu a abriu com muito cuidado, lá estava a cabecinha de Santo António. Assim, pôde completar o lindo presente do avô Pituba.

Santo Antônio. Imagem atribuída a Dito Pituba (1848-1923). Chifre, 8cm. Clique para ampliar.

Passaram muitos, muitos anos. Hoje, Edu é um famoso pianista, conhecido em todo o mundo. Santo António com o Menino ao colo ficou, para sempre, o Santo protector de sua família. Quando olha para ele recorda com muita saudade o avô Pituba, o Vale de Abipará, os longos passeios ao Jardim das Fadas, todos os brinquedos mágicos de sua Infância e nunca, nunca mais esqueceu a linda Fada Princesa da Luz.” Paço d´Arcos, 30/Out./2008.

O leitor terá a plena compreensão da dimensão de Idalete Giga, autora do conto tão sutil, ao ouvi-la dirigir o Coro da Capela Gregoriana Laus Deo, em um belíssimo canto gregoriano a louvar a Natividade: Christus natus est nobis, venite adoremus.– Adeste fideles, laeti triumphantes: venite, venite in Bethlehem. Natum videte Regem Angelorum.– Aeterni Parentis splendorem aeternum: velatum sub carne videbimus: Deum infantem pannis involutum.

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

It’s Christmas season once more and random thoughts wander through my mind: commercial interests transforming the date into a secular holiday with its celebration of materialistic consumerism; two intriguing images of St. Joseph – distant 800 years in time – depicting the saint engrossed in thoughts, with a hand under his chin; Christmas stories. I want to include as the last post of 2008 a story written for my grandchildren by Idalete Giga, a very dear friend, teacher and Gregorianist living in Portugal. Though not exactly a Christmas story, it is suitable for the season. It’s entitled “O Jardim das Fadas” (The Fairy Garden). And to remind us all of the Nativity, readers of this blog can listen to a chant sang by the Laus Deo Gregorian Chapel Choir conducted by Idalete Giga.