O Olhar Poético e a Inexorabilidade

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Presentiment is that long shadow on the lawn
Indicative that suns go down;
The notice to the startled grass
That darkness is about to pass.

Emily Dickinson

Refletir sobre a morte é preocupação atávica. Civilizações antigas buscavam na hipotética imortalidade da alma compensação para o momento que todos os seres vivos têm de enfrentar. A esperança de uma continuidade em outra dimensão, crível através das religiões e seitas, inexistente para os céticos, é fonte inesgotável de sentimentos antagônicos.
A morte, a derradeira respiração, pode ser interpretada, para aqueles que acreditam em um Poder Maior, de maneiras diversas: alívio, tristeza, conformismo, categoria de felicidade ou de tragédia, a partir inclusive das geografias. As tantas religiões aí estão a perdurar e a proporcionar o alento, a incerteza ou o desespero. Faz parte da condição humana acatar conceitos. Entre os budistas, a morte é uma etapa a abolir o sofrimento, ou a conduzir o ser humano às reencarnações, para o aperfeiçoamento motivado pelo karma. As artes entenderam mais agudamente a inexorabilidade da finitude, e a história denota inúmeras associações de duas ou mais em debruçar reflexivo sobre o tema. À guisa de exemplos, mencionemos o compositor Modeste Mussorgsky (1839-1881) compondo Cantos e Danças da Morte, sobre poemas do Conde Koutouzov, e Catacombae e Con Mortuis in Lingua Mortua de Os Quadros de uma Exposição para piano, obra inspirada nas aquarelas de seu amigo Victor Hartmann. Ainda Jeanne Esmein apreendendo na gravura o sentido do poema de Louis Guillaume (1907-1971) L’arbre des Morts, em que, segundo lenda nórdica, é destinada ao nascido uma árvore que lhe será futuro esquife a levar corpo rio abaixo e “…L’arbre funèbre atteint la pleine mer…”

Gravura de Jeanne Esmein, para o poema de Louis Guillaume: L'arbre des morts.1960. Clique para ampliar.

Sob o pseudônimo de Pere Oliva, Joan Reventós i Carner (1927-2004) escreve poemas. O livro Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos (São Paulo, Paralaxe, 2008, 152 págs.) reúne coletânea do autor sobre a morte, poesias de sua própria criação por ele selecionadas, com a avaliação de três fiéis amigos. A obra catalã teve tradução cuidadosa do eclético Leopold Rodés i Garriga, amigo do poeta. O autor, no Prólogo, já adverte que “a morte é e sempre será um mistério. Por isso é território de poetas”. Acrescentaríamos, de artistas, entre tantos que se debruçam sobre o tema. Poderia ser mais um livro a abordar a finitude, não fosse Joan Reventós i Carner um pesquisador da morte, apresentando-a filtrada e em tantas vertentes, de maneira fluida, levando o leitor a reflexões. A divisão da obra em oito capítulos distintos – De onde venho? Para onde vou?, Medo de morrer, Como se fossem cantos, A morte concreta, Silêncios e solidão, O lugar dos mortos, Melodias da morte, Evocações vitais - demonstra preocupações transcendentes. Reventós i Carner atingiu estágio de sublimação poética, sem quaisquer concessões ao sentimentalismo banal e sem autocomplacência diante do inevitável.
Deixa-se atrair integralmente pela temática, que se torna obsessiva. Teve prévio conhecimento de poemas de outros autores focalizando o fim da existência. No Epílogo, faz sentir que tem consciência da decrepitude, o “ter de enfrentar o próprio envelhecimento. A vida tem uma fase em que o envelhecer fica mais evidente. É o processo mecânico, permanente e constante do organismo. O orgulho físico acaba com a chegada da feiúra no próprio corpo, a perda da memória, a insensibilidade ou a incapacidade.” O poeta já escrevera seus versos, e o texto do epílogo revela a certeza da morte à espreita.
Os Anjos não Sabem Velar os Mortos, verso de um dos poemas, apresenta a vontade de se entender a morte em sua acepção fulcral, flash único, fronteira absoluta a separar vida e finitude. O instante preciso do desenlace esbarra na impossibilidade de conhecê-lo previamente:

Quando chegará,
quando acontecerá,
não sei como será;
nisso não penso
nisso não confio,
nem falo.

Vladimir Jankélévich (1903-1985), em La Mort, considerava salvaguarda o fato de o homem não saber o seu momento final, apenas o condenado à morte. Essa mors certa, hora certa sed ignota, seria a única condição a conduzir à esperança. Hora precisa, desconhecida, podendo o ser humano estar ou não preparado. Imanência pragmatizando o mistério absoluto. Instante do acontecido, experiência única, intransferível, inflexível, passível de uma só passagem, para a interpretação racional da morte só existe cognição prévia, au délà tem-se a escuridão total.
Pere Oliva não vive na solidão. Preocupa-se com o desaparecimento do próximo, e o poema Nostalgias leva às recordações constantes: “A vida de ir de mortes a mortes é uma chuva constante de lembranças”. E esse desfilar natural, que todos presenciam no curso da existência, fá-lo pensar:

A morte dos outros me afeta:
E seu morrer, a sua morte,
São parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

O conhecimento do instante do apagar só é sentido por quem parte, inenarrável, preciso, absoluto e pessoal:

Somente para quem morre, morrer é experiência,
Subtraída do mundo da consciência.
Não a procureis em alguma vivência:
Desumanizar a morte, não traz clemência.

Reventós i Carner está permanentemente a flertar com aquilo que ele também denomina Muda, morte paciente à espera do fatal encontro, impalpável, impossível de sofrer desvio. Daí o temor expresso no poema Quisera superar o medo, nessa insistência hesitante “Quisera não temer nem desejar cousa nenhuma, para o meu último dia”, ou “Quisera focalizar o meu morrer sem opacidade nem amargura”. Dir-se-ia resignado com o destino, mas oferecendo uma “alternativa” à opção da não crença em Deus: “Dar o grande passo do sou ao não ser, para a escura ribanceira do meu esquecimento, diluindo-me no universo, absorvido”.
Nos versos de Ao modo de provérbios, deixa transparecer preocupações que o inquietam “Desde seu nascimento, o homem tem idade sobrando para morrer”. Penitencia-se diante da morte de outrem:

Não me perdôo a mim mesmo
não tê-lo visto outra vez.
É você quem some,
é nossa vez, hoje, de te perder.
És tu, irmão, quem finda.

E não entende o irrevogável:

Compreendo a fuga,
e o não mais estar aí.
Não sei compreender como o que fostes
não mais serás.

A senhora morte, companheira inesperada e não desejada, à espera do ser vivo desde o nascer, aparentemente oculta-se, mas posiciona-se em sua soberana presença ao sentir do moribundo os prováveis sintomas da dor, as posturas corporais as mais variadas, o arfar final e a convicção da inequívoca não adaptação a ela – Muda – por parte do ser que agoniza. A sua figura, que tanto assustou por séculos, foice às mãos, representaria a brutal fatalidade. Longe da irmã morte franciscana, de degrau para reencarnações, dos atos vividos à espera de um juízo final, Reventós i Carner convive com a realidade da despedida. O poema Viver é dizer adeus reflete enraizamentos bem anteriores à concretização do livro e, como se fosse uma recitação de prece:

É a ausência sem retorno,
É dizer adeus a todo instante.
É viver para dizer adeus.
É o câmbio de espaço e postura.
É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.

Mais do que poesias sobre a morte, o livro Os Anjos não Sabem Velar os Mortos traduz nossa absoluta imprecisão frente ao evento, mas num multidirecionamento de situações. Um livro singular que merece ser visitado.

Victor Hartmann, Catacumbae, aquarela. Clique para ampliar.

Clique para ouvir “Catacombae e Cum Mortuis in Lingua Mortua”, extraídos de “Quadros de uma Exposição”, de Modeste Mussorgsky, com J.E.M. ao piano. Gravação realizada em Mullem, na Bélgica em 2001.

The book “Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos” (Angels Don’t Watch over the Dead) is an anthology of Joan Raventós’ poems selected by the Catalan poet himself. It deals with death and its many faces: getting old, the fear of death, the concrete process of dying, death and remembrance, the place of the dead. A poetic reflection on the inevitable and imponderable experience shared by all human beings.