Dificuldades em Pensar Transições
Mesmo na certeza
de sermos iguais
perante a morte,
não é menos certo
que não somos iguais
defronte a morte.
Joan Reventós i Carner
O pensar a morte sempre despertou as mais variadas interpretações, a depender das religiões ou até das divagações não precisamente espirituais. Temor, resignação, paciência, ansiedade, compaixão, fé, revolta, todos são valores que podem aflorar nos momentos derradeiros para quem parte e para os que ficam em torno daquele ser humano prestes ao desenlace. São absolutamente naturais quaisquer das reações, e quase todos já presenciaram entes queridos partirem para a outra margem.
A possibilidade de se pensar em outras vidas, renascimentos infindáveis ou “categorias” do post mortem é objeto de livros sagrados das mais diversas religiões ou seitas e alimenta a imaginação dos humanos. Como se preparar para a morte? O que se passaria na verdade na linha demarcatória? Mistérios que acompanham a humanidade desde os mais remotos tempos. Como viver a vida a pensar no destino final, ou transitório, segundo os budistas tibetanos?
Anteriormente já comentáramos o ótimo livro de poemas de Joan Reventós i Carner Os Anjos não Sabem Velar os Mortos (post publicado aos 06/12/08). No final de um de seus mais expressivos poemas escreve: “É a razão desde o parto./É correr pela vida,/ Carregando sempre a morte.”
Tinha conhecimento de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 530 pgs.). Meu diletíssimo amigo Álvaro Guimarães, poucos meses antes de sua partida (vide Álvaro Guimarães – In Memoriam, 04/07/09) escreveu-me a dizer que recebera de uma amiga o precioso livro e que a sua leitura fazia-o melhor entender a difícil passagem que se aproximava. Adquiri a obra que se tornou não apenas meu livro de cabeceira, como motivo para troca de e-mails e telefonemas com Álvaro a respeito dessa possibilidade do vir a ser. Poucos dias após a sua morte, a dedicada esposa, Katrijn Friant, escrevia que ele passara para a outra margem. Tenho a mais absoluta convicção que a obra de Sogyal Rinpoche ajudou-o nessa complexa transição. Tendo finalizado a leitura nesses últimos dias, aspectos fulcrais que podem ajudar todo ser humano merecem ser difundidos, mais do que conteúdos doutrinários, pois sou admirador do pensamento budista-tibetano, mas leigo na matéria.
Abordar O Livro Tibetano do Viver e do Morrer pressupõe a vontade de aprofundar-se no tema, mesmo para o leitor não iniciado. Sogyal Rinpoche interpreta para os leigos o célebre Livro Tibetano dos Mortos, publicado em 1927 e acessível àqueles com conhecimento mais avançado da prática budista originária da região himalaia. Sogyal Rinpoche é mestre conceituado, discípulo que foi de dois iluminados tibetanos, Jamyang Khyentse Chökyl Lodrö (1896-1959) e Dilgo Khyentse Rinpoche (1910-1991), este último abordado em post bem anterior (Leituras sobre o Himalaia – II – Reflexão, Arte, Transcendência, Realidade, 14/12/07). Especializado na meditação budista, Sogyal Rinpoche percorre o mundo a difundir os conceitos da religião, a oferecer cursos nos quais, entre outros temas, a transição vida-morte e o preparar moribundos para a passagem são constantes. Frequenta hospitais, analisa depoimentos de especialistas e experiências daqueles prestes a morrer. A eliminação da carga carmática e a incessante procura do ser humano no desiderato de se chegar à compaixão tornam-se constantes na obra de Sogyal Rinpoche. Ensinamentos a partir da visão budista tibetana, frise-se.
Vida e morte têm outro sentido na mentalidade dos religiosos dessa região. No Tibete, como assevera o autor, as experiências pessoais de ensinamentos apreendidos da natureza essencial, original e mais profunda da mente não tendem a ser popularizados. Pressionado por alunos e amigos do Ocidente buscou difundi-los em seus cursos de maneira até certo ponto assimilável para um não iniciado. Afirma “A natureza da mente só pode ser apresentada por alguém que a tenha realizado por inteiro, e que traga consigo a bênção e a experiência da linhagem”. Diria que se trata de um longo aprendizado, difícil de ser compreendido por quem não penetre a fundo na prática e no desenvolvimento de técnica espiritual exegética. “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanencia – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”, considera Sogyal Rinpoche. O autor, numa visão ampla da espiritualidade, em vários contextos referentes ao viver e ao morrer não deixa de citar preceitos do cristianismo. Se o Cristo é mencionado várias vezes, assim também São Francisco de Assis, Thomas Merton e outros mais. Poder-se-ia considerar que não há radicalismo no livro, mas um discorrer sereno das profundas convicções budistas do autor frente à complexidade vida-morte.
Toda uma tradição que remonta há milênios faz com que a vida e a morte se fundam numa só compreensão durante a permanência física na terra. Forte convicção de renascimentos infindos, de cargas cármicas a determinar essas novas vidas, a crença em uma transição denominada bardo, mas com conotações outras de grande profundidade e complexidade. Sogyal Rinpoche observa “Bardo é uma palavra tibetana que quer dizer simplesmente ‘transição’, ou um intervalo entre o encerramento de uma situação e início de outra. Bar significa ‘entre duas coisas’, e do é ‘suspenso’, ou ‘lançado’ “. Contudo, o leitor não deve se iludir, pois a compreensão do Bardo é para iniciados, devido à sua profunda abrangência. Considere-se que para o budista tibetano as cargas carmáticas, os estados de serenidade ou angústia frente ao desenlace e até a postura física nos momentos que precedem a morte têm influência na maior ou menor permanência nessa transição morte-renascimento. Em outro contexto, mas tão absolutamente próximo, os versos mencionados de Reventós i Carner estariam a indicar a essência da existência de um budista tibetano.
Ratifico minha condição de leigo nesses temas tão significativos. Entretanto, alguns aspectos fulcrais contidos em O Livro Tibetano do Viver e do Morrer estarão a servir doravante como possíveis acúmulos à minha condição de católico: a coragem de apoiar, sem restrições, aquele em condição terminal – como ocorreu nos meses que precederam a morte de Álvaro – e buscar entender naturalmente esse nosso caminho de finitude, sem ansiedade ou temor.
A experiência do autor levou-o a trazer ao Ocidente práticas tibetanas, como o simples toque de mão, um carinho para aquele que vai morrer. Usar igualmente a técnica de obter do moribundo, através de palavras de reconforto, a possibilidade da reconciliação com aqueles que ficam e que até as horas ou instantes que precedem o falecimento com ele mantinham discórdia; assim como estimulá-lo na medida do possível, a imaginar fatos, paisagens, cores ou pensamentos que transmitam a paz. Para Sogyal Rinpoche, a morte física em situação de desespero, desalento absoluto ou rancor somente propiciará bardos tormentosos. Narra experiências daqueles que morrem na solidão extrema. Recorre à compaixão como elemento essencial e mesmo que não se conheça aquele que está para partir, deve-se tentar essas práticas de alívio. Considere-se que há sempre, à maneira de um leitmotiv, a constância dos renascimentos. Muitas dessas práticas budistas tibetanas são aplicadas diferentemente no Ocidente, mas visando também minimizar os difíceis momentos que antecedem o desenlace. Contudo, entre nós, há, para aqueles que ficam, uma percepção mais dramática do vazio deixado pelo que partiu. Possivelmente, menor resignação.
Um outro tema, muito controverso, é a eutanásia. Há conceituações budistas tibetanas flexíveis quanto ao ato da eliminação. A depender dos contextos, decisões consensuais determinariam atitudes que suprimiriam sofrimentos para quem parte e para os que permanecem. O suicídio, em contrapartida, é entendido como decisão a levar o infortunado ao bardo pleno de negatividade.
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer deve ser entendido como leitura preparatória. Budistas ou não podem retirar da competente obra de Sogyal Rinpoche ensinamentos que os ajudem a melhor aceitar a passagem inexorável. A leitura que empreendi só foi possível pela experiência trágica que dileto amigo atravessava. Contudo, ajudou-me a compreender mais satisfatoriamente a transição vida-morte.
This post is an account of my reading of “The Tibetan Book of Living and Dying”, written by the spiritual master Sogyal Rinpoche. A beautiful book, in which the Tibetan wisdom tries to teach us all – regardless of religion or nationality – how to transform suffering into peace. It is a guide for a dying person and also for the living, since death is the ultimate experience that awaits us.