Navegando Posts publicados em dezembro, 2009

Ciclo a Recomeçar

 Esperança. Pintura de Evilásio Cândido. Clique para ampliar.

Amor à vida no tempo
Corra bem ou corra mal…

Agostinho da Silva

Renovam-se esperanças. Para o maratonista preparado, a mente direciona-o ao objetivo final. Àquele que se propõe adentrar o ano apenas com o aparente entusiamo, percebe-se que o desânimo, a falta de perspectiva e a chama que se extingue impossibilitam-no de prosseguir. Isso se dá a cada ano. Metas que se estiolam, esperanças que fenecem continuarão a atormentar a humanidade não pouco após a passagem do ano. Há causas sensíveis para esse enfraquecimento mental.
Seria possível entender que, se projetos se apresentam unicamente individuais, mesmo que desideratos sejam atingidos terão faltado a irmanação, o pensar no coletivo, caminho solidário que equilibra e dá sentido à vida. Compreender o próximo como ser autêntico e não como metáfora ou alegoria. Integrá-lo ao pensamento e à consequente ação. Contrariamente, a volúpia para amealhar riquezas e pela “aparência” da eternidade, assim como a atração sem pejo pelo poder têm propiciado às “renovações”, que deveriam acontecer a cada ano, a malfadada aspiração ao erro, à corrupção, ao descalabro.
Neste ano que finda, quando escândalos de toda ordem assolaram essa estranha conexão político-empresarial em nosso país de contrastes tão violentos; em que a impunidade permaneceu a ser realidade escabrosa; onde aumentos estratosféricos proliferaram nos salários dos três poderes; no qual houve o episódio dos precatórios diante de governantes sem rubor; em que se cogitou a volta de uma “velada” censura aos meios de comunicação, uma aspiração de seus mentores para um tipo de Jdanovismo tropical; que motivou posicionamento de profissionais liberais em entrevistas, ostentando como galardão, compulsivamente, altos vencimentos recebidos, mormente na área médica; o povo, essa figura só lembrada às vésperas dos escrutínios, sofreu catástrofes de toda a ordem, mercê do absoluto descaso das autoridades. Inundações, tornados, secas, desmoronamentos, todas causas naturais em crescimento geométrico têm, como acréscimo ditado pelo desinteresse das autoridades, epidemias, desmatamento criminoso acelerado a provocar o desaparecimento de milhares de espécies da vida animal, insegurança absoluta a que é sujeito o cidadão, vergonhoso descaso pela educação e saúde públicas. Sem contar esse assalto representado pela carga tributária em permanente ascensão. A palavra imediata do governante de plantão com tendência a se eternizar, seja ele da situação ou da oposição, aponta a falha hoje para esquecê-la amanhã. As ações se perdem com o tempo. Nada acontece, tudo se repetirá ano após ano. Nada a fazer neste país propenso à ilusão e às promessas no denominado dia do Réveillon. Qual governante permanece a falar em tragédia por mais de um pronunciamento? Contudo, diuturnamente elogiam seus feitos, tantas vezes comprovados estranhos com o decorrer das estações. Também nesses casos nada acontece, e a impunidade mencionada, mãe de todos os vícios, aí está para sacramentar absolvições comprometedoras à opinião pública indefesa. Acrescentem-se as viseiras ideológicas que estabelecem o que deve ser dito às multidões passivas. Meu querido irmão Ives transmitiu-me frase tirada de um filósofo d’antanho e que se mostra tão propícia à nossa triste realidade: “Estupendência é a conjugação da estupidez política e a dependência ideológica”.
Se todos esses descalabros infestam nossos noticiários para desespero de nossos políticos, há que se mencionar a face boa da população, alheia aos escândalos e demagogias e que forma uma corrente que permanece. Apesar dos membros do governo, tem ela aspirações, entende o passar de cada ano como renovação salutar e é povoada por sonhos simples, de afeto ou de consumo. Esse povo não comete insanidade – há exceções -, paga seus tributos apesar de saber que o destino deles alimentará uma máquina inoperante e sobrecarregada. Essa gente ama a vida, educa na medida do possível seus filhos, mesmo sabendo que educação não é prioridade dos governantes. Compreende que a cada ano a prole cresce e as esperanças alimentarão aspirações condignas. Permanecerá em filas intermináveis a espera de atendimento de saúde ou outros mais. E é paciente. Até quando? E geralmente aquele que labuta nessa rotina necessária consegue estágios de felicidade junto à família, no trabalho, no convívio com o próximo. Desde Março de 2007 tenho apontado essas figuras humanas do cotidiano. São elas que fazem pulsar as noções do bem e do belo, independentes que são dessa insana procura da fortuna e do poder como movimentos compulsivos, ilusão absoluta. Carlinhos da pequena loja, a Mocidade de Valor que labuta em um hortifrúti, o amolador Constantino e Evilásio Cândido, dádiva que nos faz refletir sobre a mais autêntica Superação sem panfletarismo, este, a perpetuar outra ilusão, o holofote. Foram eles lições para meu próprio caminhar. Krishnamurti já observava em reflexões sobre um novo ano: “Todos teremos notado como um homem realmente feliz dissipa a penumbra e o desânimo em redor de si. Do mesmo modo, quando houvermos aprendido a corporificar os novos moldes e a nova atitude, então, para onde quer que sigamos, nossa influência e ventura far-se-ão sentir e animarão os outros que lutam por encontrar a felicidade”.
Seria benfazejo acreditar que propostas para o ano que entra possam ser ao menos tentadas com ardor. Nem sempre é possível atingir metas, mas a firme intenção representa o indício de que a chama continua acesa. Na medida que os anos passam, mais acentuadamente pode-se entender que objetivos propostos não perdem entusiasmo, apenas transfiguram-se. Para as novas gerações, essa transição no calendário deveria sempre pressupor crescimento. A globalização a buscar o imediatismo e a volúpia voltada à produção, ao lucro e ao consumo fazem esquecer valores que mereceriam o debruçar real, sem pieguismo, sem erudição panfletária a contestar palavras sacralizadas. J. Krishnamurti ainda observa: “A luz da Verdade só pode crescer à medida que nós crescermos. Podemos apressar ou retardar-lhe o processo; pode ser estimulado ou retido pelas circunstâncias e oportunidades exteriores. Porém, não esqueçais jamais que, em última análise, a descoberta de toda Verdade deve ser efetuada por nós mesmos para nós mesmos. Se para o conhecimento da vida dependermos de outras pessoas, de livros ou de conferências, jamais o encontraremos, posto que sejamos ajudados por esses processos segundo vias apropriadas. O desejo, o anseio pela verdade e pela espiritualidade devem nascer dentro de nós”.
Neste mais um ano desejo a todos os leitores, que me acompanharam nesse percurso semanal, renovação na continuidade ou na ruptura salutar. Importa sempre considerar esse caminhar em direção ao aperfeiçoamento em todos os sentidos. Seria essa a salvaguarda da existência. Na medida que houver o aprofundamento individual, mais o próximo estará presente. Pareceria esperançoso acreditar que o vislumbre do equilíbrio passe a ser integrante de nós mesmos.
Que ultrapassemos 2010 na paz, saúde e no convívio pleno.

And so it is year-end again. Looking back at 2009 in Brazil in retrospect, I see corruption scandals, bloody confrontations between drug gangs, a dramatic upswing in youth crime, a feeling of uncertainty about the future. But I see also family, friends, work and small pleasures that make me hope for the best in the coming months. That’s why I send you all greetings of the season and my best wishes for the New Year.

Como não pensar em Santa Cecília?

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O santo se constrói sobre o homem.
D. Henrique Golland Trindade (Matt Talbot)

Minha fé inquebrantável
espera ainda muito…
muito mais.

Norberto de Moraes Alves (Quintal de Sonhos)

Era uma tarde de primavera em Lisboa neste último Maio. Estava a conversar com minha amiga de tantas décadas, Idalete Giga, em um café no Chiado. A certa altura, já lá não me lembro a razão, o tema abordado relacionou-se aos contos de nossa juventude. A puerilidade de tantos deles, que as ávidas leituras transformavam em maravilhamento. Chegamos à nova geração formada pela internet. Temáticas outras fizeram estiolar determinado gênero de conto. Aquele que acalentou sonhos, a partir de nosso imaginário, permanecia em nossa conversa como tênue luz a ser vislumbrada com afeto. Nem questionamos valores, apenas, nostalgicamente, constatamos fatos. Ao cair da noite deveria dar o primeiro dos dois recitais consagrados à música portuguesa na lendária Academia de Amadores de Música. Nem sei bem como surgiu o nome de Santa Cecília nessa conversa informal. Bastou a lembrança, e Idalete prometeu-me um conto que estava a ser amorosamente germinado em sua mente privilegiada. Lembrei à amiga que mantive sempre sobre meu piano de estudos uma estampa de Santa Cecília que me foi oferecida pelo saudoso D. Henrique Golland Trindade em 1954. O ilustre prelado, arcebispo de Botucatu, era meu padrinho de crisma. Gostaria Idalete que minhas netas sentissem esse clima perdido em histórias outras que não contos de nossa geração. Serenamente o texto chegou, mas apenas alguns dias antes de 22 de Novembro, dia consagrado à Santa Cecília, padroeira da música. Como outros temas armazenados em meu baú mental aguardavam o vir a ser, pois igualmente cronológicos, não foi possível inserí-lo na oportunidade. Sob outra égide, Natal sem música perde um rito de fundamento. Daí ter associado o conto de Santa Cecília à efeméride natalina. Ao frequentador assíduo de meus posts, apresento a singeleza que é o conto de Idalete Giga. Aqueles de minha geração poderão associar, através do texto da amiga, lembranças de infinidade de contos cristãos que povoaram nossa imaginação. E segue o meu voto profundo de paz, a todos os leitores, para essa que é a mais expressiva celebração da cristandade.

O sonho de Santa Cecília

Para o meu querido Amigo José Eduardo

“Roma. Corria o ano 222 da era cristã. As incontáveis loucuras, devassidão e crueldades do imperador Heliogábalo tinham chegado ao fim. Mas a este ser cruel sucedeu outro igualmente cruel e sanguinário – Alexandre Severo. O maior divertimento deste facínora era assistir ao martírio dos cristãos lançados aos tigres e leões no sinistro e malcheiroso circo de Roma. Sempre que os arautos espalhavam pela cidade a notícia do espetáculo preferido do imperador, de todos os lados surgia gente estranha correndo para o mesmo local – o circo. Alguns vestiam túnicas negras e usavam tatuagens diabólicas espalhadas pelo corpo, especialmente na cara e nos braços. Quando o imperador entrava, triunfante, no circo, ia sempre acompanhado pelas suas concubinas e escravas. O circo ficava a abarrotar de povo sedento do sangue de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes que eram devorados brutalmente pelas feras, enquanto o mesmo povo lançava gritos a exigir mais mortes e mais sangue de cristãos.

Cecília era uma jovem romana muito bela que pertencia à nobre família dos Soletem. Vivia na cidade de Roma com seus pais. Era cristã desde a infância e desde muito cedo revelou dons extraordinários. Conseguia ler na memória da Natureza. Via através de tudo o que era opaco. Entrava facilmente noutras dimensões e mundos paralelos. Tinha frequentes visões de Anjos e de outros seres misteriosos que a acompanhavam sempre que se juntava com os seus amigos nas catacumbas da cidade. Aqui rezavam todos, cantando os mais belos hinos e salmos de louvor a Deus, acompanhados com harpas, cítaras e liras. Também recolhiam bens entre todos e depois, na calada da noite, distribuíam-nos pelos mendigos espalhados por toda a cidade. Cecília era a mais forte. Nada temia. Cobria-se com uma túnica esfarrapada para poder passar por mendiga e não se cansava de percorrer as ruas mais sujas e sombrias de Roma, levando alimentos , palavras de carinho e curando as chagas aos mendigos e crianças abandonadas. Quando a noite caía, todos ansiavam por ela. Todos a amavam, mas ninguém sabia donde vinha e quem era esta jovem tão bela que parecia vir do céu. Por isso, uns chamavam-na ‘a deusa misteriosa’ e outros ‘o lírio branco’, por aparecer sempre com uma túnica branca.

Numa noite fria e chuvosa de inverno, quando Cecília regressava das suas caminhadas, os pais esperavam-na, ansiosos. Depois de a saudarem amorosamente, o pai dirigiu-se-lhe, um pouco receoso:
- Cecília, nossa querida filha, tua mãe e eu temos uma surpresa para ti. O nobre soldado Valeriano ama-te muito e deseja desposar-te. Por isso, prometemos preparar o vosso casamento na Primavera, quando os campos começarem a florir.

Cecília estremeceu ao ouvir as palavras do pai, pois já tinha prometido ao seu Anjo Shealiah que se manteria virgem. Porém, não querendo entristecer os pais, embora contrariada, aceitou casar com Valeriano. Casou numa tarde perfumada de Maio. Valeriano não cabia em si de contente. Estava muito feliz por desposar uma jovem tão bela e tão bondosa. No fim da festa, Cecília e Valeriano foram transportados numa pequena liteira até à sua villa situada na via Ápia. Ficaram ambos sentados no jardim da casa, silenciosos e contemplando as flores durante algum tempo. Foi então que Cecília, caindo de joelhos aos pés de Valeriano, falou-lhe de Shealiah:
- O Anjo Shealiah apareceu-me no próprio dia em que nasci, dizendo que vinha de outro Universo, de outra dimensão, mandado por Deus para me proteger da maldade das criaturas humanas.

Valeriano, ao ouvir Cecília, pensou que ela tivesse enlouquecido, pois não compreendia aquela estranha linguagem. Pensou tratar-se de outro homem e quis, de imediato, enfrentá-lo. Mas Cecília tranquilizou-o, dizendo-lhe que Shealiah não tardaria a aparecer a ambos. Antes que a noite descesse, Shealiah surgiu num raio de luz intensíssimo trazendo consigo duas coroas, uma de lírios e outra de rosas. Envolveu os noivos com a sua luz e disse-lhes:
- Cecília, recebe esta coroa de lírios brancos perfumados. E tu, Valeriano, recebe esta coroa de rosas perfumadas. Enquanto permanecerem sobre a vossa cabeça, nunca hão-de murchar e a vossa fé jamais perecerá. Os vossos corações são puros, por isso verão a Deus.

Depois de pronunciar estas palavras, o Anjo desapareceu. Valeriano ficou tão emocionado que caiu, chorando, aos pés de Cecília e converteu-se à fé cristã nessa mesma noite.
Quando Tibúrcio, irmão de Valeriano, soube da sua conversão, quis procurá-lo na sua casa para o humilhar e troçar dele. Antes, porém, de entrar no jardim de Cecília, viu uma luz muito brilhante vinda do céu que o envolveu e o fez parar. Então ouviu uma voz suavíssima que lhe disse:
-Tibúrcio, porque queres humilhar e perseguir o teu irmão? Toma esta coroa de lírios e rosas e vai para junto de Cecília e Valeriano, que te esperam.

Tibúrcio não queria acreditar no que estava a acontecer com ele, mas logo que a luz desapareceu, entrou, já completamente transfigurado, na casa de Cecília. Ao chegar, encontrou Cecília e o irmão, de joelhos, rezando. Abraçou-os com grande ternura, relatando-lhes o seu encontro com a luz que o envolveu e a voz misteriosa que acabara de transfigurá-lo.

Passaram-se alguns dias. A notícia da conversão dos dois irmãos chegou rapidamente aos ouvidos do imperador, que ordenou de imediato que os acorrentassem e os obrigassem a adorar a estátua de Júpiter. Como ambos recusassem, foram presos e decapitados no mesmo dia.
Cecília sabia que o imperador não a pouparia. Por isso, estava pronta para morrer. Acabou por ser presa por ter dado sepultura, no seu jardim, a Valeriano e Tibúrcio, abandonados na prisão onde foram decapitados. Na noite em que foi presa, o carrasco Almáquio, enviado pelo imperador, tentou tirar-lhe a vida, por asfixia, com vapor de água a ferver no Caldarium da sua própria casa. Mas Cecília resistiu a todo este tormento. Por fim, caiu exausta e adormeceu. Foi durante a mesma noite que teve um sonho extraordinário. Viu surgir do céu uma pequenina luz que, pouco a pouco, foi crescendo até se transformar numa lira de cristal. Cecília ouvia sons belíssimos, como se alguém, invisível, estivesse tocando este instrumento que lhe era tão querido, tão familiar e que aprendera a tocar na sua infância. De repente, ouviu pronunciar o seu nome :
- Cecília, Cecília, coração puro, lírio abençoado do céu, eu sou o Mensageiro da Música Divina. Deus transformou-me numa lira de cristal e enviou-me a ti para que me guardes no teu coração e na tua alma. Serás para sempre, a inspiradora dos músicos cristãos.

Quando acordou, Cecília viu diante de si Shealiah segurando a lira que aparecera no seu sonho. Mas a sua visão durou pouco tempo. Começou a ouvir pesados passos e pancadas brutais na porta da sua casa. Era de novo Almáquio e dois guardas, que vinham decapitá-la por ordem do imperador. Cecília ainda resistiu a vários suplícios. Nenhum dos três carrascos conseguiu decapitá-la, apesar dos golpes desferidos. Morreu a cantar o Salmo 91 (Salmo de louvor a Deus que governa o destino dos homens com Sabedoria e Justiça). Quando a ouviram cantar o Salmo, Almáquio e os dois guardas ficaram tão impressionados com a sua coragem e resistência que caíram de joelhos, pedindo-lhe perdão. Cecília ainda levantou a mão para os abençoar e exalou, pouco depois, o último suspiro. Os três homens, já convertidos, choraram junto do seu corpo transfigurado.

No momento da sua morte , passava junto do jardim de Cecília um grupo de crianças que andavam a mendigar pela cidade. Eram as mesmas que Cecília amara e das quais cuidara com tanto carinho. Ao olhar para o céu, as crianças viram três Anjos levando Cecília. O Anjo da Morte segurava-lhe a mão direita. Shealiah sustentava a coroa de lírios brancos sobre a sua cabeça transfigurada e o Anjo Mensageiro da Música segurava a lira que se unia e confundia com o coração de Cecília. Só as crianças puderam ver os Anjos e a alma de Cecília elevando-se suavemente nos céus. Só as crianças puderam ver a sua coroa de lírios e a sua túnica branca esvoaçando, iluminada como um sol. Só as crianças puderam ouvir os sons da lira que o Mensageiro da Música tocava, cantando ao mesmo tempo este hino:

Cecília, coração puro
Lírio do céu perfumado
Tu és o porto seguro
Deste mundo conturbado

Quando o Anjo ficou silencioso, as crianças reconheceram a sua ‘deusa misteriosa’ que agora partia deixando-os sós. Então, começaram a chorar e choraram tanto que os três Anjos vieram consolá-las, dizendo-lhes:
-Não chorem, queridos pequeninos. Cecília não morreu. A sua alma viverá eternamente. As crianças pararam de chorar e para seu grande espanto começaram a ver uma chuva de pequeninas estrelas brilhantes que Cecília lhes mandava dos céus. Ao pousarem suavemente nas suas cabeças, transformaram as crianças nas mais belas flores que ficaram para sempre no jardim de Cecília.

Hoje, quem visitar Roma e for à Igreja onde era a casa de Santa Cecília, se tiver o coração puro sentirá o suave perfume de lírios e de rosas e ouvirá os sons da lira de cristal que ficaram suspensos para todo o sempre na memória invisível, mas real, da Natureza.”

Idalete Giga
17/Novembro/2009

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

Acúmulos da Escuta e do Olhar

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Quem adiante não olha,
atrás fica.

Setembro que enche o celeiro,
salva o rendeiro.

Adágios Açorianos

E em Setembro chegávamos a termo em mais uma coletânea a reunir 72 textos do blog, mesmo número de posts publicados no primeiro livro de Crônicas de um Observador. Reiteradas vezes observei que o blog passou a ser respiração, da mesma forma que a música sempre o foi, desde a remota infância. Todas as semanas ideias fluem naturalmente, pois há permanente observação, seja introspectiva, através de leituras, seja pela própria visão ou escuta de fatos. A permanência em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, proporciona-me a magia da rotina. Ela pode ser degustada de tantas formas diferentes. O dia a dia, esse cotidiano inexorável, é perenemente outro a cada amanhecer. São as notícias ouvidas pelo Rádio em três das principais emissoras da cidade, do acordar ao café da manhã, a atitude das pessoas do convívio, cada uma a apresentar diariamente outra face da rotina. Os posts reunidos tem certa atemporalidade. Não levam aos flashes característicos do imediatismo, tampouco se prendem às temáticas estanques. O olhar e a escuta não deixam de ver e de ouvir esse pulsar diário que a observação registra. Muitas vezes o baú mental fica prenhe de idéias que, compartimentadas, aguardam o vir a ser. Seria possível dizer que estar mais fixado em meu canto, a cuidar de estudos pianísticos e mais leituras após a aposentadoria, tenha-me proporcionado benfazejas reflexões. Os tempos do Eclesiastes são reais. Cuidar com carinho das viagens internacionais para recitais ou palestras, configura, sob outra égide, diversos temas que entram no blog motivados pelas impressões. Há sempre repertórios super qualitativos não frequentados que encantam a mente, mas que permanecem negligenciados. São tantos os motivos para esse descaso. Outras vezes, o inusitado, ou fato que merece anteceder ideia amadurecida, tem preferência. Em Crônicas de um Observador (II) , as mortes de dois diletos amigos causaram-me forte impacto. Não deu para esperar, daí terem os textos fluido de imediato.
A rotina das corridas ficou incorporada. Se correr é bom para a mente e para o corpo, tem sido a fonte da sedimentação das ideias. É quase sempre nesse compasso, ritmo rotineiro e prazeroso, que tudo acontece. Aos 71 anos, prefiro deixar tudo registrado na mente, verdadeiro exercício para a memória, e apenas lá pelas altas horas, tendo ela filtrado a essência do pensar, transmite ao teclado o post que corre desde logo por inteiro. Outras madrugadas e há o burilar frases, nessa incessante busca do encantamento que a escrita livre de amarras proporciona. Não se trata de privilegiar uma temática. Fosse esse o objetivo dos posts, procuraria um meio convencional, como revista ou jornal. A liberdade da escrita tem seus comprometimentos com as categorias do pensar e com o almejar a verdade, essa palavra envolta em infindáveis metáforas. E, sobretudo, sem quaisquer pressões. Pouco a pouco esse hebdomadário contato com o leitor transforma-se em ato de comunhão, seja qual for o tema. As narrativas continuam em flutuação. Música, Literatura, Impressões de Viagem, Personalidades e Cotidiano preenchem largamente os meus desideratos.

Uma das ilustrações do livro. Tim Heirman (Bélgica). Retrato de J.E.M. Óleo sobre madeira, 2009.

Em Crônicas de um Observador II a Música é um dos temas mais visitados. O contato diário com a matéria sonora torna-me seu cúmplice, e reflexões estão sempre em ebulição em minha mente. A permanência nessa ideia da impermanência repertorial proporciona à minha vida constante maravilhamento ao ler obras relevantes, primeiramente fora do piano e, em segunda etapa, junto ao teclado, conduzindo-me, com o passar do tempo – esse acúmulo inexorável – ao amadurecimento das essências musicais. Essa busca incessante não me distancia do repertório tradicional, revisitado com prazer, mas homeopaticamente. Todavia, preferencio as criações extraordinárias escondidas em bibliotecas, baús e espólios que, se sob um prisma, levam-me a uma constante renovação, sob égide outra fazem-me refletir a respeito de aspectos sociais que teimam em não se desviar das repetições de programas de concerto, mormente no que se refere ao piano. Nesse quesito, décadas somadas a outras décadas apontam para a impossibilidade de oxigenação. Ícones de que o homem não se desvia.
São inúmeros os livros percorridos anualmente. Leituras mais reflexivas acompanham-me pela madrugada, antes do sono. Na categoria Literatura está o mais longo post que escrevi. Os Últimos Intelectuais, livro de Russel Jacoby, relido em viagem, cerca de 15 anos após a primeira leitura, levou-me a pensar a respeito do papel da universidade hoje, o carreirismo acentuado, a luta pelo poder, a oferta de bolsas sem o debruçar maior sobre a qualidade e a visão voltada ao quantitativo nas várias esferas avaliativas. A queda qualitativa do quadro docente nas universidades públicas do Brasil e de vários centros alhures é sintoma preocupante. Jacoby é agudo em suas observações. Livros sobre música, sobre o medo do palco e outros sobre a temática budista e a do Himalaia foram algumas das temáticas visitadas.
O convívio humano tem sido o fator mais importante nas viagens empreendidas. Retornar aos lugares já visitados e conhecer outros, quando relações novas são acrescidas, proporcionam enriquecimento. Cidades e locais merecem sempre a atenção e, por mais que queiramos, apenas uma pequena parcela pode ser vista. Mesmo em uma vila, a cada retorno há muito a explorar. Monumentos, museus, a natureza nas várias estações e o afeto característico que é oferecido àquele que sente e faz música. A retribuição vem na transmissão da mensagem musical.
Lembranças especiais levam-me a alguma personalidade, conhecida ou não, que me marcou profundamente. O texto sobre Louis Saguer não apenas aborda seu arguto livro sobre a música portuguesa, como traz-me recordações desse grande professor, que me mostrou caminhos desconhecidos em reação ao pensar musical.
O cotidiano apresenta-se como a categoria mais frequentada em Crônicas… É um passeio mágico pela rotina transfigurada, o cruzar com gente do convívio ou o fato que teima em recrudescer ou estiolar. Personagens desse dia a dia, observação do que causa impacto, o simples fluir da correnteza têm seus encantos. Não escapam da retenção nesse baú mental que registra e espera o momento do resgate através da digitação morosa do pianista que emprega apenas dois dedos no teclado, para que a transição para o blog seja feita.
Magnus Bardela, discípulo e mestre, ensinou ao velho professor os meandros do blog. Ainda me ajuda nos momentos de impasse tecnológico, que não são poucos. Regina Pitta pacientemente faz revisões e abstracts. Os dois têm essa visão imediata, fundamental para aferições. Luca Vitali continua leitor dos pré-blogs. Imaginação imensa, quando um texto desperta sua curiosidade criativa vem o desenho via internet, espontâneo, de um verdadeiro artista da observação. Desenhos de minha filha Maria Fernanda e do ilustre Carlos Oswald, assim como a reprodução de óleo sobre madeira do artista belga Tim Heirman, enriquecem as ilustrações. O editor e amigo Cláudio Giordano da Pax e Spes cuidou com esmero de toda a preparação do presente livro. O estímulo desses amigos diletos e do leitor fiel representam a fonte da esperança. Continuemos cúmplices, como deixei registrado no primeiro blog em Março de 2007. A certeza de ter em você, leitor tantas vezes oculto, o partícipe, faz-me continuar. Há muito para contar. O tempo colabora.
Bem haja !

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A collection of seventy-two posts stored in my blog have been gathered in a book entitled Crônicas de um Observador II (Chronicles of an Observer II). Embracing various categories of thoughts or events (books, travels, personalities, everyday life and reminiscences), the book will be released on 15 December 2009 at the Brazilian Academy of Arts (Brooklin branch) at 8 p.m.