Acúmulos da Escuta e do Olhar

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Quem adiante não olha,
atrás fica.

Setembro que enche o celeiro,
salva o rendeiro.

Adágios Açorianos

E em Setembro chegávamos a termo em mais uma coletânea a reunir 72 textos do blog, mesmo número de posts publicados no primeiro livro de Crônicas de um Observador. Reiteradas vezes observei que o blog passou a ser respiração, da mesma forma que a música sempre o foi, desde a remota infância. Todas as semanas ideias fluem naturalmente, pois há permanente observação, seja introspectiva, através de leituras, seja pela própria visão ou escuta de fatos. A permanência em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, proporciona-me a magia da rotina. Ela pode ser degustada de tantas formas diferentes. O dia a dia, esse cotidiano inexorável, é perenemente outro a cada amanhecer. São as notícias ouvidas pelo Rádio em três das principais emissoras da cidade, do acordar ao café da manhã, a atitude das pessoas do convívio, cada uma a apresentar diariamente outra face da rotina. Os posts reunidos tem certa atemporalidade. Não levam aos flashes característicos do imediatismo, tampouco se prendem às temáticas estanques. O olhar e a escuta não deixam de ver e de ouvir esse pulsar diário que a observação registra. Muitas vezes o baú mental fica prenhe de idéias que, compartimentadas, aguardam o vir a ser. Seria possível dizer que estar mais fixado em meu canto, a cuidar de estudos pianísticos e mais leituras após a aposentadoria, tenha-me proporcionado benfazejas reflexões. Os tempos do Eclesiastes são reais. Cuidar com carinho das viagens internacionais para recitais ou palestras, configura, sob outra égide, diversos temas que entram no blog motivados pelas impressões. Há sempre repertórios super qualitativos não frequentados que encantam a mente, mas que permanecem negligenciados. São tantos os motivos para esse descaso. Outras vezes, o inusitado, ou fato que merece anteceder ideia amadurecida, tem preferência. Em Crônicas de um Observador (II) , as mortes de dois diletos amigos causaram-me forte impacto. Não deu para esperar, daí terem os textos fluido de imediato.
A rotina das corridas ficou incorporada. Se correr é bom para a mente e para o corpo, tem sido a fonte da sedimentação das ideias. É quase sempre nesse compasso, ritmo rotineiro e prazeroso, que tudo acontece. Aos 71 anos, prefiro deixar tudo registrado na mente, verdadeiro exercício para a memória, e apenas lá pelas altas horas, tendo ela filtrado a essência do pensar, transmite ao teclado o post que corre desde logo por inteiro. Outras madrugadas e há o burilar frases, nessa incessante busca do encantamento que a escrita livre de amarras proporciona. Não se trata de privilegiar uma temática. Fosse esse o objetivo dos posts, procuraria um meio convencional, como revista ou jornal. A liberdade da escrita tem seus comprometimentos com as categorias do pensar e com o almejar a verdade, essa palavra envolta em infindáveis metáforas. E, sobretudo, sem quaisquer pressões. Pouco a pouco esse hebdomadário contato com o leitor transforma-se em ato de comunhão, seja qual for o tema. As narrativas continuam em flutuação. Música, Literatura, Impressões de Viagem, Personalidades e Cotidiano preenchem largamente os meus desideratos.

Uma das ilustrações do livro. Tim Heirman (Bélgica). Retrato de J.E.M. Óleo sobre madeira, 2009.

Em Crônicas de um Observador II a Música é um dos temas mais visitados. O contato diário com a matéria sonora torna-me seu cúmplice, e reflexões estão sempre em ebulição em minha mente. A permanência nessa ideia da impermanência repertorial proporciona à minha vida constante maravilhamento ao ler obras relevantes, primeiramente fora do piano e, em segunda etapa, junto ao teclado, conduzindo-me, com o passar do tempo – esse acúmulo inexorável – ao amadurecimento das essências musicais. Essa busca incessante não me distancia do repertório tradicional, revisitado com prazer, mas homeopaticamente. Todavia, preferencio as criações extraordinárias escondidas em bibliotecas, baús e espólios que, se sob um prisma, levam-me a uma constante renovação, sob égide outra fazem-me refletir a respeito de aspectos sociais que teimam em não se desviar das repetições de programas de concerto, mormente no que se refere ao piano. Nesse quesito, décadas somadas a outras décadas apontam para a impossibilidade de oxigenação. Ícones de que o homem não se desvia.
São inúmeros os livros percorridos anualmente. Leituras mais reflexivas acompanham-me pela madrugada, antes do sono. Na categoria Literatura está o mais longo post que escrevi. Os Últimos Intelectuais, livro de Russel Jacoby, relido em viagem, cerca de 15 anos após a primeira leitura, levou-me a pensar a respeito do papel da universidade hoje, o carreirismo acentuado, a luta pelo poder, a oferta de bolsas sem o debruçar maior sobre a qualidade e a visão voltada ao quantitativo nas várias esferas avaliativas. A queda qualitativa do quadro docente nas universidades públicas do Brasil e de vários centros alhures é sintoma preocupante. Jacoby é agudo em suas observações. Livros sobre música, sobre o medo do palco e outros sobre a temática budista e a do Himalaia foram algumas das temáticas visitadas.
O convívio humano tem sido o fator mais importante nas viagens empreendidas. Retornar aos lugares já visitados e conhecer outros, quando relações novas são acrescidas, proporcionam enriquecimento. Cidades e locais merecem sempre a atenção e, por mais que queiramos, apenas uma pequena parcela pode ser vista. Mesmo em uma vila, a cada retorno há muito a explorar. Monumentos, museus, a natureza nas várias estações e o afeto característico que é oferecido àquele que sente e faz música. A retribuição vem na transmissão da mensagem musical.
Lembranças especiais levam-me a alguma personalidade, conhecida ou não, que me marcou profundamente. O texto sobre Louis Saguer não apenas aborda seu arguto livro sobre a música portuguesa, como traz-me recordações desse grande professor, que me mostrou caminhos desconhecidos em reação ao pensar musical.
O cotidiano apresenta-se como a categoria mais frequentada em Crônicas… É um passeio mágico pela rotina transfigurada, o cruzar com gente do convívio ou o fato que teima em recrudescer ou estiolar. Personagens desse dia a dia, observação do que causa impacto, o simples fluir da correnteza têm seus encantos. Não escapam da retenção nesse baú mental que registra e espera o momento do resgate através da digitação morosa do pianista que emprega apenas dois dedos no teclado, para que a transição para o blog seja feita.
Magnus Bardela, discípulo e mestre, ensinou ao velho professor os meandros do blog. Ainda me ajuda nos momentos de impasse tecnológico, que não são poucos. Regina Pitta pacientemente faz revisões e abstracts. Os dois têm essa visão imediata, fundamental para aferições. Luca Vitali continua leitor dos pré-blogs. Imaginação imensa, quando um texto desperta sua curiosidade criativa vem o desenho via internet, espontâneo, de um verdadeiro artista da observação. Desenhos de minha filha Maria Fernanda e do ilustre Carlos Oswald, assim como a reprodução de óleo sobre madeira do artista belga Tim Heirman, enriquecem as ilustrações. O editor e amigo Cláudio Giordano da Pax e Spes cuidou com esmero de toda a preparação do presente livro. O estímulo desses amigos diletos e do leitor fiel representam a fonte da esperança. Continuemos cúmplices, como deixei registrado no primeiro blog em Março de 2007. A certeza de ter em você, leitor tantas vezes oculto, o partícipe, faz-me continuar. Há muito para contar. O tempo colabora.
Bem haja !

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A collection of seventy-two posts stored in my blog have been gathered in a book entitled Crônicas de um Observador II (Chronicles of an Observer II). Embracing various categories of thoughts or events (books, travels, personalities, everyday life and reminiscences), the book will be released on 15 December 2009 at the Brazilian Academy of Arts (Brooklin branch) at 8 p.m.